A necessidade de uma releitura universalizante do conceito de subordinação

AutorLorena Vasconcelos Porto
CargoProcuradora do Trabalho (PRT da 11ª Região)
Páginas214-245

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1. A necessidade da expansão do conceito de subordinação

O conceito de subordinação é essencial para o Direito do Trabalho, pois é decisivo para a afirmação da existência da relação de emprego. Nesse sentido, ele representa a “chave de acesso” aos direitos e garantias trabalhistas, os quais, em regra, são assegurados em sua plenitude apenas aos empregados.

Na época do surgimento do Direito do Trabalho, a partir da segunda metade do século XIX, o modelo econômico vigente —

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centrado na grande indústria — engendrou relações de trabalho de certo modo homogêneas, padronizadas. O operário trabalhava dentro da fábrica, sob a direção do empregador (ou de seu preposto), que lhe dava ordens e vigiava o seu cumprimento, podendo eventualmente puni-lo. Essa relação de trabalho, de presença hegemônica na época, era o alvo da proteção conferida pelo nascente Direito do Trabalho. Desse modo, foi com base nela que se construiu o conceito de contrato (e relação) de trabalho e, por conseguinte, o do seu pressuposto principal: a subordinação.

Assim, o conceito em tela foi identificado com a presença constante de ordens intrínsecas e específicas, com a predeterminação de um horário rígido e fixo de trabalho, com o exercício da prestação laborativa nos próprios locais da empresa, sob a vigilância e controle assíduos do empregador e de seus prepostos. Trata-se da acepção clássica ou tradicional da subordinação, que podemos sintetizar como a sua plena identificação com a ideia de uma heterodireção patronal, forte e constante, da prestação laborativa, em seus diversos aspectos.

A adoção do critério da subordinação jurídica, em sua matriz clássica, levava a excluir do campo de incidência do Direito do Trabalho vários trabalhadores que necessitavam da sua tutela, mas que não se enquadravam naquele conceito parcial e restrito. Conforme assinalavam alguns críticos, este não cumpria plenamente a sua finalidade essencial, pois não era capaz de abranger todos os trabalhadores que necessitam — objetiva e subjetivamente — das tutelas trabalhistas.

Por essa razão, a jurisprudência, impulsionada pela doutrina, em notável atividade construtiva, acabou por ampliar o conceito de subordinação, e, consequentemente, expandiu o manto protetivo do Direito do Trabalho, ao longo do século XX e até meados do final da década de 1970. Esse período coincidiu com a própria “era de ouro” do capitalismo nos países desenvolvidos ocidentais, nos quais foram consolidados modelos de Estados de Bem-Estar Social1.

As transformações ocorridas nas últimas décadas, notadamente os avanços tecnológicos, a reestruturação empresarial e o aumento da competitividade, inclusive no plano internacional, geraram mudanças

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no mundo do trabalho. Um número cada vez maior de relações trabalhistas, sobretudo aquelas presentes nos novos setores, como as prestações de serviços nos campos da informação e da comunicação, se afasta progressivamente da noção tradicional de subordinação, apresentando, aparentemente, traços de autonomia. Do mesmo modo, o poder empregatício se exerce de maneira mais sutil, indireta, por vezes quase imperceptível.

Em razão dessa aparente autonomia, tais trabalhadores não se enquadram na noção tradicional de subordinação, sendo qualificados como autônomos. O resultado é que eles continuam sem liber-dade, como no passado, mas passam a ter que suportar todos os riscos, advindos da sua exclusão das tutelas trabalhistas. Percebe-se, assim, que a manutenção do conceito tradicional de subordinação leva a grandes distorções, comprometendo a própria razão de ser e missão do Direito do Trabalho; por isso a ampliação desse conceito é uma necessidade premente e inadiável.

Todavia, paradoxalmente, no momento em que a expansão da subordinação se tornou mais imprescindível, ela passou a ser restringida, reduzida, por obra da jurisprudência, do legislador e da doutrina. Essa tendência, observada, sobretudo, a partir do final da década de 1970, se insere em um fenômeno ainda maior — a tentativa de desregulamentação do Direito do Trabalho — que encontra fundamento na ascensão e hegemonia da doutrina ultraliberal, ocorrida na mesma época.

Essa restrição, no entanto, afronta diretamente os mandamentos das Constituições sociais, promulgadas, sobretudo, após a II Guerra Mundial. Na desigual sociedade capitalista em que vivemos o Direito do Trabalho é um instrumento essencial para a distribuição de riqueza e de poder, o que atende aos postulados da dignidade da pessoa humana, da busca da justiça social e da democratização da sociedade. Não por acaso tais Constituições atribuem extrema relevância ao valor trabalho.

Podemos citar o exemplo da Constituição Federal de 1988, que, após afirmar que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito, elenca, entre os seus fundamentos, a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho (art. 1º) e, entre os seus objetivos fundamentais, a construção de uma sociedade

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livre, justa e solidária, a redução das desigualdades sociais e a promoção do bem de todos (art. 3º). Esses valores são reafirmados ao longo do texto constitucional, como no art. 170, caput e inciso VIII, e no art. 193.

Desse modo, para se atender aos mandamentos das Constituições sociais, que propugnam a criação, onde não exista, e o fortalecimento e consolidação, onde já existente, de um Estado de Bem-Estar Social, é imprescindível o papel exercido pelo Direito do Trabalho. Este comprovou historicamente, nos países desenvolvidos, ser um instrumento extremamente eficaz para a distribuição de riqueza e poder na sociedade capitalista.

Para cumprir esse papel, é fundamental expandir o campo de incidência das normas trabalhistas, para que elas possam abranger, o máximo possível, os trabalhadores hipossuficientes, que delas necessitam. Nesse sentido, é essencial a ampliação da noção de subordinação, elemento qualificador por excelência da relação de emprego. A restrição desse conceito — que vem sendo operada nos últimos tempos, ao contrário, viola frontalmente os mandamentos das Constituições sociais, como a brasileira, pois restringe o âmbito de incidência de um instrumento primordial para o alcance das finalidades constitucionais: o Direito do Trabalho.

A necessidade de tutela do empregado advém da sua hipossuficiência. Ocorre que, se em épocas anteriores o trabalhador hipossuficiente enquadrava-se, invariavelmente, na noção de subordinação clássica, isto não ocorre mais na atualidade. Há um número cada vez maior de trabalhadores que nela não se enquadram, mas que necessitam da proteção do Direito do Trabalho e fazem jus a ela. Daí por que é tão necessário ampliar o conceito tradicional de subordinação.

Nesse sentido, é interessante analisar algumas propostas que vêm sendo formuladas nos últimos tempos, notadamente pela doutrina mais avançada, em diversos países. Embora estas se diferenciem significativamente entre si, é possível identificar o objetivo comum de estender o campo de incidência do Direito do Trabalho, seja integral-mente, seja apenas parcialmente. Cuidaremos de analisar algumas dessas propostas e, em seguida, de traçar as linhas de uma possível releitura extensiva e universalizante do conceito de subordinação.

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2. A releitura do conceito de subordinação pela via interpretativo-jurisprudencial

Ao contrário do que propugna a maioria dessas propostas, que analisaremos abaixo, cremos ser prescindível a intervenção do legislador para a releitura da subordinação. Esta pode perfeitamente ser operada pela jurisprudência, como, aliás, vinha sendo feito ao longo do século XX até meados do final de década de 1970. A jurisprudência sempre exerceu o papel imprescindível de atualizar as normas jurídicas por meio da interpretação, adaptando o seu sentido aos novos tempos, sem necessidade da intervenção do legislador. É exatamente o que propomos em relação ao conceito de subordinação.

A “elasticidade” da noção de subordinação, isto é, a possibilidade de que esta seja objeto de uma releitura extensiva por parte da jurisprudência, sempre foi reconhecida pelos juslaboristas mais ilustres. Paulo Emílio Ribeiro de Vilhena, por exemplo, observa que “a subordinação é um conceito dinâmico, como dinâmicos são em geral os conceitos jurídicos se não querem perder o contato com a realidade social a que visam exprimir e equacionar”. De fato, caso ocorra esse descolamento entre o conceito e a realidade, ele perde a sua funcionali-dade, a sua razão de ser, tornando-se inútil, obsoleto, inócuo. Para a necessária evolução interpretativa dos conceitos jurídicos, o autor ressalta a importância da doutrina, que tem o papel de “fornecer ao aplicador do Direito do Trabalho aqueles elementos fundamentais sobre que, no apanhar dos fatos, sintoniza o status subjectionis ou a autonomia do prestador de serviços”2.

Os dispositivos que definem a relação de emprego e seus elementos fático-jurídicos (como os arts. e , da CLT) devem ser interpretados de forma teleológica, isto é, a noção de trabalhador subordinado deve ser elaborada em conformidade com as finalidades concretas de tutela perseguidas pelas normas trabalhistas. Essa releitura fundamenta-se nos próprios princípios do Direito do Trabalho

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—, que devem orientar e guiar a interpretação de todas as normas do ordenamento...

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