O direito ao silêncio e à presença de advogado nas comissões parlamentares de inquérito

AutorGuilherme Rodrigues Abrão
CargoMestrando em Ciências Criminais (PUC/RS) Secretário e Coordenador Adjunto do Dpto. Científico do Instituto Brasileiro de Direito Processual Penal - IBRAPP
Páginas17-20

Page 17

Introdução

Em uma sociedade democrática1, especialmente estabelecida e regida por uma Constituição, a qual, inclusive, prevê a divisão, ainda que atuem de forma independente e harmônica entre si, dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário (nos moldes do artigo 2º da Constituição Federal2), as comissões parlamentares de inquérito ganharam – e vêm ganhando – cada vez mais força, inclusive, tendo amplo e crescente destaque na mídia.

Cabe ressaltar que é preciso que se reconheça a necessária e salutar convivência harmônica e independente dos três Poderes, ainda que tal convivência se dê de forma integrada, sendo que em determinadas situações é até mesmo possível verificar pequenas interferências controladas de um Poder sobre outro, ou seja, na verdade, um exercício regular de preservação do Estado Democrático, o qual os constitucionalistas denominam de medida de freios e contrapesos, isto é, o próprio poder freando o poder.

E é nesse sentido que as comissões parlamentares de inquérito se encaixam, uma vez que representam importante instrumento de investigação ao alcance dos parlamentares, portanto do Poder Legislativo, inclusive, contando com previsão constitucional, conforme será abordado ao longo deste artigo.

Dessa forma, verifica-se que compete ao Poder Legislativo, além de sua atividade legiferante, inerente, portanto, à sua própria essência, a tarefa de proceder à fiscalização, controle e investigação dos atos emanados do Poder Executivo e da Administração Pública em geral, sem que isto represente violação ao princípio da separação dos poderes.

Mas, tal tarefa investigativa, ainda que exercida por quem não tem tal missão por atividade principal e costumeira, deverá guardar respeito aos limites e aos princípios constitucionais que preservam, em sentido amplo, a dignidade do cidadão. E aqui se inclui, portanto, que perante as comissões parlamentares de inquérito, o direito constitucional ao silêncio e o direito de ser assistido por advogado (além de outros) deverão ser observados.

1. As comissões parlamentares de inquérito

É evidente que as comissões parlamentares de inquérito (CPIs) têm importância fundamental em um Estado Democrático e Constitucional de Direito3, pois constituem-se em verdadeiro instrumento de controle, fiscalização e investigação da atividade estatal por parte do Poder Legislativo, sendo que tal atividade não representa qualquer afronta ao princípio da separação dos poderes, ao contrário. É isto o que Meirelles afirma:

“No regime constitucional de separação de funções, como o nosso, os Poderes do Estado não se confundem nem se subordinam, mas se harmonizam, cada qual realizando sua atribuição precípua e desempenhando restritamente outras que a Constituição lhes outorga para uma recíproca cooperação institucional.”4

Assim, as comissões parlamentares de inquérito, surgidas no direito inglês (investigating committees) em torno do século XII ou XIII, ganharam previsão constitucional, pela primeira vez, no Brasil já em 1934, sendo que, atualmente, encontram guarida no artigo 58, § 3º da Carta Política de 1988, o qual dispõe:

“Art. 58. O Congresso Nacional e suas Casas terão comissões permanentes e temporárias, constituídas na forma e com as atribuições previstas no respectivo regimento ou no ato de que resultar sua criação.

(…) § 3º. As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores.”

Note-se a relevante função das comissões parlamentares de inquérito na investigação, controle e fiscalização da atividade estatal, uma vez que, conforme o próprio texto constitucional, possuem poderes de investigação próprios das autoridades judiciais. Daí que, dada a amplitude de tais poderes, é possível perceber o instituto aqui trabalhado como sendo um verdadeiro instrumento, um órgão, ao alcance do Poder Legislativo, para que investigue fato determinado e dê encaminhamento de suas conclusões à autoridade competente5.

Ademais, é crível afirmar que as comissões parlamentares de inquérito possuem natureza jurídica ampla, pois constituem-se em instrumento jurídicopolítico, cuja base é constitucional, e ainda têm caráter penal, em face de representarem um instrumento de investigação de irregularidades e ilícitos praticados por agentes públicos e particulares, ainda que não tenham competência para condenar e aplicar qualquer tipo de sanção.

Impende mencionar que além da previsão constitucional sobre tais comissões, há na legislação infraconstitucional apenas três leis que versam sobre o tema, sem que haja maiores disposições a respeito de seus procedimentos. Inclusive, a Lei 1.579/52, que veio a regulamentar as comissões de inquérito ainda naPage 18Constituição de 1946, continua em vigor, tendo sido recepcionada pela Constituição Federal de 1988. Mas, lamentavelmente, tal diploma legal deixa a desejar acerca de maiores considerações, bem como diante dos procedimentos que devem, ou deveriam, ser adotados nas comissões. O mais relevante de tal diploma talvez se encontre no que está disposto nos artigos 3º e 6º, respectivamente:

“Art. 3º. Indiciados e testemunhas serão intimados de acordo com as prescrições estabelecidas na legislação penal.

Art. 6º. O processo e a instrução dos inquéritos obedecerão ao que prescreve esta Lei, no que lhes for aplicável, às normas do processo penal.”

Já a Lei 4.595/64, que criou o Conselho Monetário Nacional e instituiu dispositivos sobre a política e normas reguladoras das instituições monetárias, bancárias e creditícias, foi alterada pela Lei Complementar 105/01, a qual permite que as comissões parlamentares de inquérito obtenham informações e documentos sigilosos que necessitarem, diretamente das instituições financeiras6 . Portanto, lamentavelmente sem autorização judicial, o que certamente é merecedor de crítica7 .

Por fim, a Lei 10.001/00 apenas disciplinou acerca da prioridade nos procedimentos a serem adotados pelo Ministério Público e por outros órgãos, autoridades judiciais e administrativas, no que diz respeito às conclusões dos trabalhos das comissões parlamentares de inquérito.

Assim, a legislação infraconstitucional referente ao tema é limitada e não regula de forma clara, segura e detalhada os procedimentos, ou o rito, que os trabalhos de investigação desempenhados pelas comissões de inquérito devem (ou deveriam) observar. Ante esse silêncio da legislação, os regimentos internos das Casas Legislativas se tornam o verdadeiro “manual” de procedimentos e formas acerca do funcionamento de tais comissões. E, não muitas vezes, se torna, lamentavelmente, algo similar a um “manual dos inquisidores”.

Os pressupostos para instauração das comissões parlamentares de inquérito, conforme disposto na Constituição (art. 58, § 3º), constituem requisitos indispensáveis para sua criação: se exige que seja criada a partir do requerimento de um terço de parlamentares, sua duração é por prazo certo8 a fim de que tais comissões não sejam eternizadas, bem como será criada para investigar fatos determinados e de relevante interesse público e não meras conjecturas, fatos vagos, genéricos e imprecisos9. E, ao fim e ao cabo dos trabalhos, as conclusões dos parlamentares deverão ser encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilização civil/penal dos infratores, se for o caso.

2. Os poderes de investigação

Inegavelmente, para que os parlamentares possam desempenhar a atividade investigativa é preciso que tenham poderes de investigação, até mesmo para que as comissões parlamentares de inquérito tenham, portanto, viabilidade e razão de existir. Mas, desde já é preciso salientar que tais poderes não podem (ou não poderiam) ser amplos e absolutos10. Dessa forma, a atividade investigativa, ainda que desempenhada pelas comissões parlamentares de inquérito, devem sim respeitar os preceitos constitucionais elencados na Carta de 198811.

Os poderes de investigação inerentes aos parlamentares, quando do trabalho nas comissões de inquérito, vêm elencados nos regimentos internos das Casas Legislativas12, bem como a própria Lei 1.579/52, em seus artigos 1º e 2º, respectivamente, estabelece:

“Art. 1º. As Comissões Parlamentares de Inquérito, criadas na forma do art. 53 da Constituição Federal, terão ampla ação nas pesquisas destinadas a apurar os fatos determinados que deram origem à sua formação.

Art. 2º. No exercício de suas atribuições, poderão as Comissões Parlamentares de Inquérito determinar as diligências que reportarem necessárias e requerer a convocação de Ministros de Estado, tomar o depoimento de quaisquer autoridades federais, estaduais ou municipais, ouvir os indiciados, inquirir testemunhas sob compromisso, requisitar de repartições públicas e autárquicas informações e documentos, e transportar-se aos lugares onde se fizer mister a sua presença.”

Mas, lamentavelmente, o artigo 58, § 3º, da Constituição Federal de 1988 ampliou tais poderes ao mencionar que tais comissões terão “poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas”, revelando um alargamento dos poderes de investigação confiados às comissões de inquérito, sendo penosa e árdua a tarefa de conciliar a atividade de investigação dos parlamentares com o real alcance e abrangência dos poderes de investigação próprios das autoridades judiciais.

Menos mal que o...

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