Proeminência e Crise do Judiciário no Estado Constitucional Democrático: Perspectivas de Superação de uma Realidade Paradoxal Através de um Agir Comunicativo

AutorKatia Leão Cerqueira - Liton Lanes Pilau Sobrinho
CargoMestranda em Direito na Universidade de Santa Cruz do Sul. Especializanda em Direito Imobiliário/Direito Notarial e Registral (UNISC) - Doutor em Direito (UNISINOS). Mestre em Direito (UNISC)
Páginas6-13

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A partir do advento do Estado Democrático de Direito, tem-se uma redefinição da relação entre os poderes do Estado, e o papel de proeminência, nesse novo contexto, é conferido ao Poder Judiciário, que passa a ser o principal garantidor da efetivação dos direitos fundamentais cristalizados no texto constitucional e, por conseguinte, principal guardião das liberdades e da cidadania, consagrando-se, portanto, como uma instituição imprescindível em um Estado que se afigure democrático e que pretenda promover, e não apenas proclamar, os direitos dos cidadãos.

Entretanto, diante das constantes mutações que marcam a sociedade moderna e do aumento quantitativo e qualitativo da complexidade conflitiva produzida pela sociedade globalizada, cada vez mais dinâmica e fragmentada, o Poder Judiciário, enquanto estrutura hierarquizada, fechada e orientada por uma lógica legal-racional, passa a não mais atender, com celeridade e eficiência, às crescentes demandas sociais, cada vez mais multifa-cetadas. Esse contexto paradoxal traduz, pois, a necessidade de uma reflexão mais ampla, que envolva não apenas os poderes instituídos, mas também a sociedade, na busca de alternativas e soluções apropriadas.

Diante de tal quadro, mister que se repense fórmulas alternativas à viabilização da participação ativa e responsável dos diversos atores sociais, pois o fortalecimento do Judiciário requer a participação conjunta de toda a sociedade, no sentido de uma responsabilidade compartilhada. É nesse sentido, pois, que se pretende analisar a perspectiva teórico-comunicativa habermasiana enquanto possibilidade ao fortalecimento do Judiciário, notadamente através da ampliação dos espaços públicos dialógicos fundados em um agir comunicativo, em que o diálogo volte-se para o entendimento e para o consenso.

2. Proeminência e crise do Judiciário no Estado Constitucional Democrático: uma realidade paradoxal

A partir do advento do Estado Democrático de Direito, ancorado na perspectiva de ampla e efetiva proteção e concretização dos direitos fundamentais, a Constituição passa a incorporar valores que funcionam como diretrizes para a vida em comum, assumindo, portanto, um caráter principiológico. Nesse contexto, o acesso à justiça torna-se pedra fundamental do Estado Democrático de Direito e como um dos componentes do núcleo da dignidade humana1, eis que dele depende a efetividade dos direitos cristalizados no texto constitucional e através dele é que se assegura a satisfação dos direitos fundamentais dos cidadãos, podendo, portanto, "ser encarado como o requisito fundamental - o mais básico dos direitos humanos - de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretende garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos"2.

Diante de tal quadro, dá-se uma redefinição na relação entre os poderes do Estado, e o protagonista, neste novo cenário, passa a ser o Judiciário, desenhado como uma "alternativa para o resgate das promessas da modernidade, onde o acesso à justiça assume um papel de fundamental importância, através do deslocamento da esfera de tensão, até então calcada nos procedimentos políticos, para os procedimentos judiciais"3.

Nessa perspectiva, o juiz passa a, mais que buscar sancionar as partes em conflito, arbitrar esse conflito, robustecendo os esque-mas de busca de composição das partes litigantes, ainda que uma delas seja o próprio Estado4. O juiz, torna-se, assim, um verdadeiro sujeito ativo do processo político5, um verdadeiro "engenheiro social"6. Ademais, diante do caráter aberto conferido aos textos normativos e das aceleradas complexidades sociais do momento da decisão para um futuro próximo, não há como o legislador prever e fixar todas as nuances fáticas da aplicação da lei. Desse modo, cabe ao intérprete (juiz) preencher esses conteúdos normativos abertos. Daí que, para Cittadino, a expansão do poder judicial representa um reforço da lógica democrática7. Tem-se, pois, no contexto do Estado Constitucional Democrático, a figura do Poder Judiciário como principal garantidor da efetivação dos direitos fundamentais e, por conseguinte, como principal guardião das liberdades e da cidadania.

De fato, as diretrizes democráticas culminaram na necessidade de concretização dos valores e fins constitucionais, fazendo com que o papel do juiz, já não mais indiferente, seja o de um "vivo vigilante intérprete dos tempos, que tanto melhor sabe cumprir a sua função quanto melhor alcance sentir a exigência humana da história e traduzi-la em fórmulas apropriadas de ordenada convivência"8. Nesse campo de direções, em que o acesso à justiça tornou-se um imperativo à garantia de satisfação dos demais direitos fundamentais, e em que o direito principiológico vinculado ao caso concreto tornou-se um impositivo democrático, in-conteste a importância da atuação jurisdicional para o próprio desenvolvimento do Estado Democrático de Direito.

Há que se considerar, contudo, que a sociedade moderna é marcada por constantes transformações

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e complexidades, e ao passo que a sociedade evolui em seus aspectos sociais, políticos, econômicos e tecnológicos, evolui também a complexidade dos conflitos por ela produzidos. Ademais, com a consagração de novos direitos pela Carta Constitucional de 1988, dá-se um aumento significativo de li-tigiosidade e, consequentemente, da demanda por justiça na sociedade brasileira9. Por conseguinte, o Judiciário passa a ser requisitado de forma mais ampla e passa a ser entendido, de certo modo, como a "porta de salvação", como a "solução para todos os males". Diante da sobrecarga de causas, a ativi-dade jurisdicional se torna lenta e, não raras vezes, pouco efetiva.

Assim, contemporaneamente, o Poder Judiciário encontra-se desprovido das condições estruturais e materiais necessárias para atender, com celeridade, ao crescente aumento de demandas que lhe são conferidas. Percebe-se, portanto, a "retração e o descompasso entre a função jurisdicional do Estado e a complexidade conflituosa atual"10. Nessa perspectiva, a crise que permeia o Judiciário resulta do próprio enfraquecimento do Estado, de sua fragilidade e de sua gradativa perda de soberania.

Com propriedade leciona Rogério Leal que a ineficiência do Poder Judiciário "decorre da incompatibilidade estrutural entre sua arquitetura e a realidade socio-econômica a partir da qual e sobre a qual tem de atuar"11. Na doutrina do autor, os problemas no âmbito do Poder Judiciário brasileiro não são apenas de ordem subjetiva, mas também de ordem estrutural.

"(...) há problemas que não são só de ordem subjetiva no âmbito do Poder Judiciário, envolvendo apenas a figura do magistrado, suas convicções e julgamentos, mas de ordem estrutural, até em face de ele apresentar uma estrutura piramidal e uma forma buro-crática de administração instalada com todos os seus paradigmas. O modo de atuação do Judiciário, de forma estratificada, com o conhecimento cada vez mais especializado e individualizado, não permite a integração da problemática em termos do todo, mas sim em fragmentos de gestão. Em função da burocratização da Administração Judiciária, tanto no que concerne à ati-vidade-meio quanto à atividade-fim, reina uma situação de conformismo e estagnação intelectual que dificulta a sua transformação."12

Na análise de Grinover, a sobrecarga dos tribunais, o custo e a morosidade dos processos, a burocratização da justiça e de seus procedimentos são fatores que contribuem para o distanciamento, cada vez maior, entre o Judiciário e seus usuários, bem como para a obstrução das vias de acesso à justiça13. Ao discorrer sobre a crise deflagrada, a autora assevera que

"(...) a crise da Justiça está na ordem do dia: dissemina-se e serpenteia pelo corpo social, como insatisfação dos consumidores de Justiça, assumindo as vestes do descrédito nas instituições; atinge os operadores do direito e os próprios magistrados, como que impotentes perante a complexidade dos problemas que afligem o exercício da função jurisdicional; desdobra-se em greves e protestos de seus servidores; ricocheteia, enfim, pelas páginas da imprensa e ressoa pelos canais de comunicação de massa, assumindo dimensões alarmantes e estimulando a litigiosidade latente. (...) Acrise que se generaliza apresenta vários aspectos: a crise estrutural, a crise institucional do equilíbrio entre os poderes, a mentalidade dos operadores da justiça, inadequação dos controles sobre o exercício da função jurisdicional."14

De fato, a função jurisdicional, ainda monopolizada pelo Estado, já não é capaz de atender à crescente conflituosidade produzida pela sociedade dinâmica e complexa. Ademais, "as questões atinentes ao caráter técnico-formal da linguagem utilizada em rituais e procedimentos judiciais permea-dos por aspectos burocráticos determinam a lentidão e o acúmulo de demandas"15. Nesse sentido, Dallari salienta que a solenidade dos ritos e a linguagem rebuscada dos julgadores nos tribunais "praticamente permanecem os mesmos há mais de um século"16.

Em decorrência das pressões centrífugas da globalização e diante dos novos conflitos metaindividuais ou mesmo intersubjetivos clássicos multiplicados, mister que o Judiciário - enquanto estrutura hierarquizada, fechada e orientada por uma lógica legal-racional - amplie os limites de sua jurisdição, modernize suas estruturas organizacionais e reveja seus padrões funcionais17. Ao abordar os problemas que atu-almente comprometem o adequado funcionamento do aparelho judiciário, culminando em uma verdadeira crise de funcionalidade, Celso de Mello menciona que

(...) a gravidade dessa situação de crise constitui um dos tópicos de reflexão concernentes à presente agenda política nacional, em cujo contexto se buscam novas fórmulas que não só viabilizem o...

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