Forma e unidade como condições de uma ciência pura: a influência do neokantismo de Marburgo no 'primeiro' Hans Kelsen

AutorPaulo Sávio Peixoto Maia
CargoMestre em Direito, Estado e Constituição pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB).
Páginas195-224
Forma e unidade como condições de uma ciência
pura: a influência do neokantismo de Marburgo no
“primeiro” Hans Kelsen
Paulo Sávio Peixoto Maia1
Resumo: Um dos traços mais marcantes da
longa trajetória intelectual de Hans Kelsen foi
a busca pela construção de um conhecimento
jurídico puro, isento de qualquer consideração a
respeito do conteúdo do direito. A compreensão
desse leitmotiv depende do exame da primeira
fase metodológica de Kelsen, aquela em que
o neokantismo de Marburgo aparecia como
sua principal referência. É então que surge,
em Kelsen, a redução da normatividade à
pertinência a um sistema lógico dotado de
unidade e coerência. Só assim o conhecimento
jurídico poderia ser considerado válido,
científico; um argumento que se fará muito
presente no restante da atividade intelectual de
Kelsen. Dessa forma, entender esse “primeiro”
Kelsen, aquele Kelsen neokantiano, acaba por
ser uma pré-condição para uma compreensão
mais completa da obra do jurista de Viena.
Palavras-chave: Kelsen. Neokantismo.
Sistema.
Abstract: One of the most leading features of
Hans Kelsen’s long intellectual trajectory was
the persecution for the construction of a pure
juridical knowledge; free from any kind of
consideration in what concern its content. The
comprehension of this leitmotiv depends on
the exam of the Kelsen’s first methodological
phase, the one that the neo-kantism was his
main reference. Insomuch appears Kelsen’s
reduction of the normativity in the pertinence to
a logical system endowed with unity, coherence.
Only in this way the juridical knowledge
may be considered as valid and proper to the
science; an argument that will be very present
in the rest of Kelsen’s intellectual activity.
Thereby understanding this “first” Kelsen, the
neo-kantian one, results to be a precondition to
a more complete comprehension of the work of
the Vienna’s jurist.
Keywords: Kelsen. Neo-kantism. System.
1 Mestre em Direito, Estado e Constituição pela Faculdade de Direito da Universidade
de Brasília (UnB). Professor de Direito Constitucional na Universidade de Fortaleza
(UNIFOR), onde coordena sua Divisão de Pós-Graduação Stricto Sensu. Professor na
Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará (ESMEC – TJ/CE). Advogado.
E-mail: paulosaviomaia@yahoo.com.br
Forma e unidade como condições de uma ciência pura: a influência do neokantismo de Marburgo no “primeiro” Hans Kelsen
196 Seqüência, no 60, p. 195-224, jul. 2010.
Introdução
A construção de um sistema jurídico dotado de unidade, completude
e coerência marcou a longa trajetória intelectual de Hans Kelsen. Imbuído
desse propósito, o jurista de Viena erigiu um vasto plexo conceitual, que
fez fortuna no século XX, que o colocou como uma referência necessária
da teoria do direito, tal como se ele “falasse direto ao coração do jurista”,
como aduziu Paolo Grossi (GROSSI, 2004, p. 70). Para o Brasil, essa
intuição mostra-se ainda mais verificável. A impostação formalista,
que busca exorcizar a todo custo qualquer influência da sociologia e da
história do direito, a pretexto de tal enfoque ser uma inafastável pré-
condição para “se fazer ciência”, fornece uma fórmula de escape que
sempre foi tentadora a muitos juristas nacionais (LIMA, 1996, p. 96).
Essa preocupação pela unidade e sistematicidade tem a sua gênese
tão logo Kelsen apresenta suas primeiras linhas. Nesse período inicial,
nessa primeira fase teórica de Kelsen, situada entre 1911-1934,2 o
neokantismo evidencia-se como a influência teorética mais pronunciada de
suas obras.3 A dimensão neokantiana das teses de Kelsen é muito presente
não só nas soluções que ele oferece para os impasses da teoria do direito
2 Não é possível entrar em detalhes, aqui, acerca da controvérsia que paira sobre a
periodicização da Teoria Pura, de Kelsen, que é disputada com af‌i nco pelos teóricos do
direito. Cf., para o assunto, e com um bom levantamento do “estado da arte” da polêmica,
Paulson (1999, p. 351-364).
3 Obviamente, problematizar quais são as fontes intelectuais de um autor como Kelsen é
procedimento complexo. E até por isso é que se sabe que uma completude, nesse particular,
é de consecução impossível. Assim, ao se apontar o neokantismo de Marburgo como uma
inf‌l uência na teoria do direito de Kelsen o que se faz, na verdade, não é recordar uma
inf‌l uência, como se ela já existisse e estivesse à espera de um redescobrimento. Quando
se aponta uma inf‌l uência, ao contrário, está-se a construir uma inf‌l uência. Constrói-se
porque se está a selecionar sentido. Daí a necessidade de assumir a contingência de tal
escolha. De se ressaltar também que, por outro lado, não é porque Kelsen, a próprio
punho, declara ser adepto da teoria do conhecimento neokantista que outros enfoques que
divirjam disso possam ser tido por inválidos. Um texto, após publicado, não mais pertence
ao autor que o concebeu. Precisamente por isso, nada impede que observadores realizem
descrições diversas de uma “interpretação autêntica”. Nesse sentido, são interessantes
as considerações de Henrique Simon que situam Kelsen não no ambiente intelectual de
Marburgo, mas do neopositivismo do Círculo de Viena. Um ponto de vista que, por ter

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