Natureza jurídica da residência médica e a atuação do ministério público do trabalho

AutorDiego Jimenez Gomes
CargoAdvogado Trabalhista, pós-graduado em Direito do Trabalho e Previdência Social pela Universidade de São Paulo
Páginas243-273

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Introdução

Costuma-se dizer que a residência médica é a melhor forma de um egresso do curso de medicina poder se especializar, porque associa um programa prático, com trabalho médico efetivo, sob a necessária supervisão dos preceptores.

Em termos legais (Lei n. 6.932/1981 e do Decreto n. 80.281/1977), a residência é considerada um período de ensino de pós-graduação especializado, com treinamento em serviço, sob responsabilidade das instituições de saúde e orientação de profissionais médicos de elevada qualificação e responsabilidade.

Diante da omissão legislativa a respeito da natureza jurídica do instituto, jurisprudência e doutrina laborais, baseados fundamentalmente em uma interpretação literal da legislação acima mencionada, começaram a se manifestar no sentido de que a residência médica constitui apenas um curso de pós-graduação, sem a existência de qualquer vínculo de trabalho a ser considerado.

Esse entendimento, além de contrariar a própria essência do modelo de residência, que pressupõe a existência do trabalho efetivo como meio de concretização do aprendizado, fecha as portas da Justiça do Trabalho para apreciar a matéria, facilitando a exploração do labor desses profissionais como mão de obra barata e qualificada.

Diante desses fatos, o presente trabalho objetiva desvendar, em abstrato, a verdadeira natureza jurídica do vínculo entre os médicos-residentes e as instituições de saúde, indicando como os principais dispositivos da Lei n. 6.932/1981 deverão ser interpretados à luz da natureza jurídica fixada.

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Por derradeiro, analisar-se-á também como a residência médica vem sendo aplicada no Brasil e a importância da atuação do Ministério Público do Trabalho para tutelar a dignidade e os direitos sociais desses trabalhadores.

1. Breves considerações sobre a residência médica
1.1. Origem: a experiência norte-americana

Atribui-se a Wiliam Halsted o desenvolvimento acadêmico do primeiro Programa de Residência Médica (PRM), implantado em 1889, no Departamento de Cirurgia da Universidade de John's Hopkins, em Baltimore, nos Estados Unidos1.

Halsted, após assumir a função de chefe do Departamento de Cirurgia, teria nomeado quatro ex-internos para trabalharem como médicos--residentes, em períodos entre quatro a seis anos, com o acúmulo progressivo de responsabilidades, auxiliando na realização de cirurgias e no tratamento de doentes no pré e pós-operatório2. A vinculação dos médicos ao Programa se dava de maneira bastante intensa, obrigando-os a residirem no hospital, o que explica a disseminação do termo "residência médica"3.

Em 1917, os programas tiveram sua importância reconhecida pela Associação Médica Americana, sendo que sua institucionalização nos Estados Unidos "se consolidou em 1933, quando a obtenção do certificado de Residência passou a ser exigência para o exercício da Medicina"4.

1.2. Residência médica no Brasil

Seguindo as experiências norte-americanas, o primeiro modelo de residência médica no Brasil teria sido implantado em 1944, na especialidade de ortopedia no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP5.

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Ao analisar o modelo brasileiro, Ruy Geraldo Bevilacqua assevera que a residência médica passou por quatro períodos distintos, a saber: Romântico-elitista (1944 a 1955), caracterizado por baixa remuneração e com procura apenas dos profissionais idealistas que tinham meios extraordinários para garantir os estudos após a faculdade; Consolidação (1956 a 1970), em que o treinamento passou a ser considerado uma necessidade premente pela maioria dos médicos recém-formados; Expansão do Ensino Superior, cuja principal característica foi a criação de inúmeras escolas médicas, aumentando a quantidade de médicos recém-formados e, finalmente, Comissão Nacional de Residência Médica (de 1977 em diante), que se caracteriza pelo início da normatização da residência6.

Essa normatização teria sido fruto de intensas reivindicações dos jovens médicos por melhores condições de trabalho e pela necessidade de se criar alguma regulamentação para combater Programas de Residência desvirtuados. É nesse contexto que a Presidência da República editou o Decreto n. 80.281/ 1977, criando a Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM).

Sobre esse "quarto período" evolutivo, destacam-se as considerações de Luiz Antonio Nogueira Martins:

O movimento dos residentes reivindicava a regulamentação da RM pelo MEC e o estabelecimento de um nível mínimo de remuneração pelos serviços prestados. A ênfase atribuída a cada uma dessas reivindicações variou ao longo da evolução do movimento. Vale assinalar que, ao deflagrarem um movimento nacional em torno dessas reivindicações, os residentes utilizaram formas inéditas de mobilização dentre os médicos, como a paralisação geral da categoria. Assim, esses jovens heróis escreveram as páginas da história da primeira greve dos médicos no Brasil.7

Após o Decreto n. 80.281/1977, foi aprovada, em 7 de julho de 1981, a Lei n. 6.932.

Ambos os documentos formam o arcabouço jurídico que regula hodier-namente a residência médica no Brasil e serão, doravante, analisados.

2. Legislação vigente sobre a residência médica

O Decreto n. 80.281/1977, em seu art. 1e, define a residência médica como "modalidade de ensino de pós-graduação destinada a médicos, sob

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forma de curso de especialização, caracterizada por treinamento em serviço em regime de dedicação exclusiva, funcionando em instituições de saúde, universitárias ou não, sob a orientação de profissionais médicos de elevada qualificação ética e profissional"8.

O mencionado Decreto cria também a Comissão Nacional de Residência Médica (CNMR), vinculada ao âmbito do Departamento de Assuntos Universitários do Ministério da Educação e Cultura, com atribuições elencadas no seu art. 2e, destacando-se, entre outras, o credenciamento e avaliação dos Programas de Residência Médica (PRM); a definição das normas gerais que esses programas deverão observar, bem como o dever de suspender ou sugerir modificações para os programas que não estiverem em consonância com as normas da Comissão.

Tem-se, portanto, que o diploma legal atribuiu à Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM) um verdadeiro poder disciplinador acerca da matéria, sendo que, dentre os temas já regulamentados, a maioria diz respeito ao procedimento e às exigências para credenciamento e recre-denciamento dos programas, regulamentação das especialidades, exigências para o processo seletivo, bem como seu funcionamento e divisão administrativa9.

Assume papel de destaque a Resolução n. 2, de 7 de julho de 2005, que explicitou a necessidade de um sistema de integração e fiscalização dos programas, interligando a Comissão Nacional de Residência Médica, as Comissões Estaduais (CEREMs), as Coordenadorias Regionais e as Comissões de Residência Médica (COREMES).

Vejamos as principais características de cada uma delas.

As Comissões Estaduais de Residência Médica (CEREMs), criadas pela Resolução n. 1/1987, são órgãos subordinado à CNRM, tendo, entre outras funções, as atribuições de prestar assessoria pedagógica e manter contato com os Programas de Residência Médica, de acompanhar o processo de credenciamento e estimular a criação de novos programas, além de funcionar como consultor e interlocutor dos mesmos junto à CNRM.

As Coordenadorias Regionais, por sua vez, foram criadas meidante a Resolução n. 8/1981 e, segundo consta da recente Resolução n. 2/2005, devem funcionar como consultores permanentes das Comissões Estaduais de Residência Médica, representar a CNRM sempre que designado e

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comparecer, quando convidado, às suas reuniões, inclusive com direito à voz no plenário.

Finalmente, a Comissão de Residência Médica (COREME) é a representante, em cada hospital, da CNMR. Tem a incumbência de garantir o cumprimento da legislação relativa à residência médica e é composta por representantes dos médicos-residentes, preceptores e da direção da instituição, sendo que "todos os problemas relativos à residência médica, como preceptoria, direitos e deveres dos médicos-residentes (...) devem passar pela COREME antes de remeter-se a instâncias superiores, como as Comissões Estaduais e Nacional de Residência Médica"10.

Desse modo, visualiza-se a criação de diversos órgãos e em várias esferas para a tutela da matéria relacionada aos médicos-residentes. Há um órgão superior de âmbito Nacional (CNMR), órgãos regionais (Coor-denadorias), estaduais (CEREM) e também de âmbito local (COREMES).

Resta ainda analisar a Lei n. 6.93211, sancionada em 7.7.1981, que mantém a definição da residência médica nos mesmos termos do Decreto n. 80.281/1977, com exceção da exigência de "dedicação exclusiva", que foi suprimida.

A Lei de 1981 também destaca, entre outros assuntos, a proibição do uso da expressão "Residência Médica" para qualquer Programa que não tenha sido previamente aprovado CNRM (art. 1e, § 2e), a exigência de processo seletivo para o ingresso nas instituições médicas (art. 2e), além de assegurar alguns direitos aos médicos-residentes, como bolsa de estudo paga mensalmente (art. 4e...

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