A Súmula n. 277 e a Defesa da Constituição

AutorAugusto César Leite de Carvalho - Kátia Magalhães Arruda - Mauricio Godinho Delgado
Ocupação do AutorMinistros do Tribunal Superior do Trabalho.
Páginas79-90

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Introdução

O Direito é um processo de contínua construção e aperfeiçoamento, que busca pilares na matriz jurídica anterior sem perder a noção da necessidade de inovar em vista do novo contexto histórico e constitucional que se afirmou.

Nessa medida, a renovação interpretativa do Direito do Trabalho, fundada no marco constitucional de 1988, constitui também uma homenagem à melhor tradição justrabalhista das décadas precedentes, uma vez que a Constituição da República despontou como a imagem ampliada do espírito de justiça social e de dignidade humana que sempre inspirou o clássico ramo jurídico trabalhista.

Nesse quadro, os autores deste artigo compreendem como próprio e justificado dedicá-lo ao jurista Arnaldo Süssekind, por ser a mais precisa expressão do clássico Direito do Trabalho brasileiro que, por meio da Constituição da República, foi melhor compreendido na recente inovação jurisprudencial da Súmula n. 277 do Tribunal Superior do Trabalho.

Efetivamente, no período de 10 a 14 de setembro de 2012, os ministros do Tribunal Superior do Trabalho participaram da Semana Jurídica, com o fim de analisar e atualizar a sua jurisprudência, em particular as súmulas, orientações jurisprudenciais e precedentes normativos.

Tais modificações não ocorreram de forma aleatória. São fruto de inúmeros debates, que envolvem análises dos precedentes dos vários verbetes, bem como possíveis alterações nas normas constitucionais e legais.

É tal o papel de uma corte uniformizadora de jurisprudência: ao tempo em que padroniza as suas decisões, propõe-se a revisitá-las periodicamente para verificar se subsistem os seus fundamentos.

A maioria dos ministros, por ocasião de mencionada Semana Jurídica, ajustou a Súmula n. 277 para que ela expressasse a seguinte orientação:

"As cláusulas normativas dos acordos coletivos ou convenções coletivas integram os contratos indivi- duais de trabalho e somente poderão ser modifica-

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das ou suprimidas mediante negociação coletiva de trabalho."

É importante verificar que tal compreensão não foi propriamente inovada na semana institucional do TST. É fato que a Subseção de Dissídios Individuais e as oito turmas observavam, como é praxe em uma corte jurisdicional de uniformização, a jurisprudência outrora construída a propósito das relações individuais de trabalho, mas também o é que a Seção de Dissídios Coletivos já vinha a reclamar, faz algum tempo, a análise do tema na perspectiva da ultra--atividade. A propósito, desde abril de 2008 (mais de quatro anos antes da nova redação da Súmula n. 277, portanto), a SDC-TST já possuía interpretação firme e reiterada acerca da ultra-atividade das regras da sentença normativa, admitindo a vigência desse diploma jurídico especial até que novo diploma coletivo, judicial ou privado (sentença normativa, convenção coletiva de trabalho ou acordo coletivo de trabalho), produza sua revogação expressa ou tácita, respeitado, porém, o prazo de quatro anos de vigência.

Além do mais, com a nova redação da súmula, o TST não mais do que assentou o entendimento consagrado, desde a Emenda Constitucional n. 45, de dezembro de 2004, no art. 114, § 2º, da Constituição Federal.

1. Conceito e modelos de ultra-atividade

A norma coletiva de trabalho é ultra-ativa, ou reveste-se de ultra-atividade, quando continua eficaz após o seu termo final de vigência. Se uma categoria profissional e a representação patronal definem quais os direitos que devem ser assegurados a certos trabalhadores a partir da data inicial de vigência de uma convenção ou acordo coletivo, o advento da data derradeira de vigência dessa norma não lhe retirará a eficácia.

Mas a ultra-atividade segue ao menos dois mode-los, que se distinguem pelo seu caráter condicionado ou incondicionado: a ultra-atividade incondicionada dá-se em alguns países nos quais uma conquista obreira obtida mediante negociação coletiva não pode ser jamais suprimida, incorporando-se definitivamente ao patrimônio dos trabalhadores; noutros países, a ultra-atividade da cláusula resultante de negociação coletiva está condicionada à inexistência de norma coletiva posterior que a revogue, ou seja, a cláusula normativa pode ser suprimida ou quiçá ter o seu alcance reduzido mediante norma coletiva superveniente, imunizando-se o seu conteúdo somente quanto à incidência das alterações individuais do contrato de trabalho.

Estudando a matéria, Roberto Pessoa e Rodolfo Pamplona referem-se a Argentina, Bélgica, México, Paraguai, Venezuela e Uruguai como estados nacionais que adotam a ultra-atividade absoluta ou incondicionada1. A experiência brasileira conduziu o nosso e outros ordenamentos, como adiante se verá, a um caminho diferente, no qual se faculta à vontade coletiva alguma disposição de direitos laborais, com vistas à preservação do emprego em condições de permanente razoabilidade2. Não se trata, em princípio, de reduzir ou suprimir direitos, mas de permitir-lhes alguma plasticidade a fim de ajustá-los às mudanças naturais do ambiente de empresa e da estrutura empresarial, sempre com vistas ao equilíbrio contratual - o bastante para a jurisprudência exigir contrapartidas, em favor dos trabalhadores, quando é instada, por exemplo, a validar cláusulas que reduzem salário ou prorrogam jornadas3.

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Parte da doutrina brasileira, há tempos, já defendia a necessidade de a jurisprudência trabalhista reconhecer a superioridade do critério de aderência contratual das normas coletivas limitada por revogação, em contraponto ao critério de aderência contratual limitada pelo prazo, que era seguido pela jurisprudência do TST desde 1988. Argumentava-se que o novo critério era o que melhor expressava os avanços da nova Constituição da República, ao conferir novo status à negociação coletiva trabalhista, sufragando ainda estímulos reais para que as partes coletivas - sindicato de trabalhadores e empresas ou sindicatos de empregadores - realmente se sentissem instigadas a buscar a negociação coletiva e celebrar novos instrumentos normativos. Considerado esse novo e superior critério, o instrumento coletivo negociado permaneceria eficaz, quanto aos contratos de trabalho existentes, até que novo instrumento coletivo negociado despontasse, revogando-o expressamente ou de modo tácito. Agregava-se, finalmente, o argumento no sentido de que apenas o critério da aderência contratual das normas coletivas limitada por revogação é que iria garantir a real efetividade ao princípio da equivalência entre os contratantes coletivos, inerente ao Direito Coletivo do Trabalho4.

2. Evolução histórica da Súmula n 277 e a nova redação no contexto constitucional. Os precedentes do STF sobre a ultra-atividade

A Súmula n. 277 não se referia, inicialmente, às convenções e acordos coletivos de trabalho, mas somente às sentenças normativas, pois seu texto predizia até 2009: "As condições de trabalho alcançadas por força de sentença normativa vigoram no prazo assinado, não integrando, de forma definitiva, os contratos". Tal orientação estava em consonância com o art. 868, parágrafo único, da CLT5 e, no plano infraconstitucional, pareceu razoável ao TST, naquela quadra histórica, que se atribuísse igual efeito às convenções e acordos coletivos com base no art. 613, IV, da CLT6.

Adveio o art. 114, § 2º, da Constituição a explicitar, porém, em sua primeira dicção: "Recusando-se qualquer das partes à negociação ou à arbitragem, é facultado aos respectivos sindicatos ajuizar dissídio coletivo, podendo a Justiça do Trabalho estabelecer normas e condições, respeitadas as disposições convencionais e legais mínimas de proteção ao trabalho".

O art. 1º, § 1º, da Lei n. 8.542/1992 esclareceu, em seguida, que as cláusulas de convenção ou acordo coletivo de trabalho somente poderiam ser modificadas por norma igualmente coletiva, afirmando o Ministro Marco Aurélio, em liminar concedida na ADI n. 1.8497, quando instado a manifestar-se sobre medida provisória que derrogava a ultra-atividade assim consolidada, que o disposto em citada lei "mostrou-se em plena harmonia com o Diploma Máximo. Ora, a revogação ocorrida tem, a esta altura, o sabor de afastar do cenário jurídico-constitucional a regulamentação de normas constitucionais pelo poder competente".

A Lei n. 8.542 foi revogada pela Lei n. 10.192/2001, que instituiu nova política salarial sem afirmar a provisoriedade das normas coletivas - ou seja, a ultra-atividade teria sido abolida, no plano infra-constitucional, por lei que dela não tratava. Em seguida, a Emenda Constitucional n. 45, de 2004, reafirmou a ultra-atividade condicionada, ao conferir nova redação ao art. 114, § 2º, da Constituição: "Recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de

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proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente".

Sem embargo, a orientação contida na antiga redação da Súmula n. 277 do TST, em vigor desde 2009 até setembro de 2012, assim se traduzia:

"SENTENÇA NORMATIVA. CONVENÇÃO OU ACORDO COLETIVOS. VIGÊNCIA. REPERCUSSÃO NOS CONTRATOS DE TRABALHO (redação alterada na sessão do Tribunal Pleno em 16.11.2009) - Res. n. 161/2009, DEJT 23, 24 e 25.11.2009.

I - As condições de trabalho alcançadas por força de sentença normativa, convenção ou acordos coletivos vigoram no prazo assinado, não integrando, de forma definitiva...

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