Modelo de ajuste nos governos petistas em meio a ideologia da conciliacao de classes: chao historico do Golpe de 2016 no Brasil Contemporaneo/Model of adjustment in PT administrations amid the ideology of class conciliation: historical ground of the 2016 coup in contemporary Brazil.

AutorCarvalho, Alba Maria Pinho de

Introducao

O golpe parlamentar, midiatico e juridico que depos a presidenta eleita Dilma Rousseff (Partido dos Trabalhadores--PT), alcando o ate entao vice-presidente Michel Temer (Movimento Democratico Brasileiro--MDB) ao comando do Executivo Federal, representa uma ofensiva restauradora do neoliberalismo, no contexto de aprofundamento da crise brasileira contemporanea (RODRIGUES JR.; CARVALHO, 2018). E o esgotamento do modelo social-liberal de conciliacao de classes, encarnado pelos governos petistas, que assumem manter as politicas de ajuste ao capitalismo financeirizado, articulando-as as politicas de enfrentamento a pobreza e, em um segundo momento, tambem hibridizando-as com o chamado neodesenvolvimentismo. E a debacle da ideologia que circunscreve o modelo de ajuste petista, a marcar o cenario de meados da segunda decada do seculo XXI, a partir da ofensiva das proprias elites.

O Governo Temer implementa uma agenda regressiva, ao por em pratica o desmonte de direitos sociais e trabalhistas, em um ritmo deveras avassalador, intensificando a superexploracao da forca de trabalho--caracteristica estrutural das formacoes historico-sociais dependentes (MARINI, 2005). A rigor, este governo emergente do Golpe de 2016 agrava os processos de "dependencia redobrada", no dizer de Leda Paulani (2012b).

Neste contexto do Golpe 16, nos percursos de desmonte do Estado democratico de direito, emerge, na cena politica brasileira, a chamada "nova direita", com significativas articulacoes com a direita tradicional, no ambito do Executivo, do Legislativo e do Judiciario. Esta respalda-se nos espacos da considerada "grande midia" e com ocupacao dominante nas redes sociais, em uma alianca com Igrejas cristas neopentecostais, difusoras de um fundamentalismo religioso, a beirar um "fascismo sociocultural". Assim, forcas de extrema-direita conseguem ganhar as eleicoes presidenciais de 2018, alcadas, entao, a presidencia da Republica, com expressiva forca na Camara Federal e no Senado, bem como com o recorrente apoio do Judiciario. Este avanco da extrema-direita tambem se revela em nivel de segmento expressivo de Estados da Federacao brasileira.

E este o contexto do fenomeno sociopolitico designado por "bolsonarismo", caracterizado, justamente, pelo radical desmonte do Estado democratico de direito, para alem de qualquer pacto liberal civilizatorio. E a implementacao de um capitalismo selvagem, nos marcos do ultraneoliberalismo, destituindo quaisquer modos de regulacao democratica e buscando, de todas as formas, esvaziar e/ou eliminar espacos institucionais de expressao de forcas democraticas da sociedade civil. A nosso ver, este momento-limite da historia brasileira de dominancia da extrema-direita e o coroamento, a culminancia do Golpe de 2016, urdido no chao historico da crise brasileira contemporanea.

Para o desvendamento analitico deste cenario-limite da vida brasileira, marcado pela negacao de quaisquer mediacoes com a propria democracia liberal, precisamos fazer um recuo historico no tempo, remontando a decada de 1990, quando do ajuste do Brasil ao capitalismo financeirizado, a prolongar-se por quase 30 anos (1990-2019). E a experiencia de ajuste brasileiro, nos seus diferentes ciclos (CARVALHO; MILANEZ; GUERRA, 2018; CARVALHO, 2017a, 2017b). Para efeito de nossa analise, centramos o olhar nos ciclos de ajuste dos governos petistas, para circunscrever dimensoes fundantes da crise brasileira e do Golpe de 2016.

Indiscutivelmente, a crise contemporanea brasileira constitui o chao historico onde se gesta, toma amplitude e se consolida o Golpe 2016 (CARVALHO, 2018). Esta crise, deflagrada em 2013, a partir das chamadas "Jornadas de Junho" de contestacao aos ciclos de ajuste petista, constitui, antes de tudo, uma expressao peculiar, no contexto do Brasil do Ajuste, da crise do capital, manifesta em 2008. Tal crise e caracterizada como crise do proprio sistema do capital, de carater sistemico, de longa duracao e de amplitude global (1). Nesta perspectiva, avalia Carta Maior (2011, p. 1) que se trata de uma "crise estrutural profunda e cada vez mais grave que necessita da adocao de remedios abrangentes, a fim de alcancar uma solucao sustentavel". Em verdade, ao longo de mais de dez anos (2008-2019), o sistema do capital nao conseguiu uma solucao para esta crise, que se prolonga e se desdobra em novas configuracoes, deslocando-se geograficamente dos paises centrais para a periferia (HARVEY, 2011). Assim, na segunda decada dos anos 2000, tal crise estrutural do capital chega a America Latina e, em particular, ao Brasil.

Especificamente, a crise contemporanea brasileira e o esgotamento da versao petista do modelo de ajuste, com base na conciliacao de classes, expressa nos dois governos Lula e no primeiro governo de Dilma Rousseff. Assim, impoem-se as configuracoes deste modelo de ajuste brasileiro, em curso desde 1990, a encarnar uma dupla dependencia: o modelo rentistaneoextrativista (2). A rigor, tal modelo articula, de forma organica, os interesses e as formas de acumulacao de dois segmentos do capital: capital rentista e capital vinculado ao novo extrativismo mineral e vegetal, privilegiando o agronegocio e a mineracao (CARVALHO, 2017a, 2017b). Desse modo, vivencia-se, ha quase tres decadas, o chamado "ajuste estrutural brasileiro", com base na chamada ideologia neoliberal (HARVEY, 2016), compreendendo inflexoes a circunscrever diferentes ciclos de ajuste (CARVALHO; GUERRA, 2015).

Ao longo da decada de 1990, a ideologia neoliberal, materializada nos governos de ajuste, sobretudo na "Era FHC", e alvo de critica sistematica, desenvolvida por importantes movimentos sociais e organizacoes politicas, sob a lideranca do PT e da Central Unica dos Trabalhadores (CUT). Ao assumir o governo, em 2003, o PT, envolto em uma ampla politica de aliancas, inclusive com partidos e politicos representantes dos interesses do capital e de segmentos conservadores, assume as diretrizes e mecanismos macroeconomicos das chamadas politicas de ajuste, reeditando a ideologia neoliberal, com determinadas inflexoes (CARVALHO; GUERRA, 2015, 2016).

Uma destas inflexoes, especificamente a partir do segundo Governo Lula, e a sustentacao da exigencia do crescimento economico, mantendo as politicas macroeconomicas de ajuste. E desta simbiose entre neoliberalismo e busca da aceleracao do crescimento economico que emergem as bases ideologicas do neodesenvolvimentismo petista (3).

De fato, este modelo advogava a possibilidade de um desenvolvimento economico com inclusao social, em meio a crise do capital, que atendesse aos "interesses da nacao", em uma versao marcada pela conciliacao de classes. Indiscutivelmente, essa "conciliacao de classes" privilegia os interesses do capital, contemplando, de forma pontual, demandas imediatas dos setores mais pobres e miseraveis da classe trabalhadora. A ideologia dos governos petistas proclamava que esse e um modelo em que "todos ganham", escamoteando o fato de que "todos ganham", mas de forma eminentemente desigual, reproduzindo, assim, a desigualdade estrutural da formacao social brasileira, em meio a diminuicao dos indices de pobreza.

A insercao subordinada do Brasil ao capitalismo financeirizado: constituicao do modelo de ajuste no final do seculo XX e limiar do seculo XXI

Para pensar e refletir sobre a ideologia do modelo de ajuste nos governos petistas, focando, de modo especifico, no neodesenvolvimentismo, se faz necessario situa-la nos percursos da insercao do pais ao capitalismo mundializado. Ao longo de 29 anos (1990-2019), o Brasil esta a vivenciar a chamada experiencia de ajuste estrutural, implementando um modelo que acirra a sua dependencia no cenario mundial do sistema do capital na contemporaneidade.

Os circuitos do ajuste sao deflagrados em 1990, com a insercao do Brasil ao capitalismo financeirizado, demarcando a entrada tardia do pais nos processos de ajuste da America Latina, no contexto de mundializacao do capital, com dominancia financeira (CHESNAIS, 1996).

E um processo, hoje, de quase tres decadas do que denominamos "Brasil do Ajuste", com diferentes inflexoes. Carvalho e Guerra (2015, 2016, 2018), em producoes de meados da segunda decada do seculo XXI, fazem um esforco analitico para categorizar o que denominam diferentes ciclos de ajuste brasileiro. Para elas, ha cinco ciclos de ajuste na experiencia brasileira, quais sejam: 1--ciclo de estabilizacao da economia, compreendendo os governos Collor de Mello (1990-1992), Itamar Franco (1992-1994) e Fernando Henrique Cardoso (1995-1998; 1999-2002); 2--ciclo de consolidacao das politicas de ajuste e de reconstituicao do mercado interno de consumo de massas, compreendendo o primeiro Governo Lula (2003-2006) e parte do segundo (2007-2008); 3--ciclo de articulacao de politicas de ajuste e neodesenvolvimentismo, a partir da segunda metade do segundo Governo Lula (2009-2010) e primeiro Governo Dilma Rousseff (2011-2014); 4--ciclo de retomada da ortodoxia rentista, em um ajuste a direita, que se da com o segundo Governo Dilma, interrompido pelo impeachment; 5--ciclo da submissao radical ao financismo e desmonte de direitos, pela via do Golpe de 2016, no Governo Temer (2016-2018) (CARVALHO, 2006, 2018).

A rigor, a partir da ultima decada do seculo XX, mais precisamente em 1990, o Brasil assume uma insercao ativa e dependente ao capitalismo...

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