Os direitos econômicos, sociais e culturais: a questão da sua exigibilidade

Autor1.José Ricardo Ferreira Cunha - 2.Vinicius Scarpi
Cargo1.Doutor em Direito. Professor Adjunto da FGV Direito Rio e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Coordenador Acadêmico do Mestrado em Poder Judiciário da FGV Direito Rio - 2.Doutorando em Direito. Professor da UniverCidade e da FGV Direito Rio.
Páginas69-85

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À guisa de introdução

Durante o século XIX e na primeira metade do século XX, o problema das desigualdades entre indivíduos foi pensado, em grande medida, a partir da lógica das classes sociais e dos conflitos decorrentes do processo produtivo. Portanto, a complexidade da vida social aparecia, em alguma medida reduzida a um suposto protagonismo histórico de duas classes: proprietários dos meios de produção, ou burguesia, e classe operária, ou trabalhadores. É bem verdade que o antagonismo destas classes real- mente movimentam e explicam certas contradições históricas, também é verdade que muitas outras contradições transcendem esta lógica. Basta pensar problemas como o machismo, a intolerância, a diversidade étnica, a segurança genética etc. Contudo, na segunda metade do século XX, assistimos todos ao fim da guerra fria e a imposição do capitalismo como ordem mundial única. Isso resultou numa mudança da agenda ideológica vigente: o paradigma inspirado no marxismo foi perdendo força na sua capacidade de análise da realidade e de propositura de ações políticas. Claro que isso não pode ser compreendido como o fracasso do gênio filosófico de Marx, mas sim como um novo momento no arranjo ideológico e políticoPage 70mundial. Nesse novo momento os valores morais foram soerguidos em sua dignidade, sobretudo após os horrores da Segunda Guerra Mundial. Esse foi o terreno fértil para que a temática dos direitos humanos passasse a ocupar espaço significativo na nova agenda, capitaneando, em certa medida, o confronto entre a nova direita e a nova esquerda. Apostar nos direitos humanos e na sua capacidade emancipatória passou a ser o marco para a ação daqueles inconformados com a realidade, por oposição aos que preferem mantê-la como estão por se beneficiarem dela.

Nesse contexto, os direitos humanos ganharam destaque especial, o que se verifica desde a Declaração de 1948 até a Declaração de Viena de 1993. Hoje, a questão central que se apresenta é de como garantir tais direitos, especialmente os direitos econômicos sociais e culturais. Isto é o que será analisado no presente artigo.

A afirmação dos direitos humanos no pós-guerra

Em 1948, ainda sob o impacto das barbáries promovidas na II Grande Guerra, foi aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro, a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Ainda que alguns poucos países tenham se abstido de votar, notadamente União Soviética, Arábia Saudita e África do Sul, a Declaração foi aprovada por unanimidade. Sendo assim, pode-se afirmar que a elaboração da Declaração Universal dos Direitos Humanos teve o mesmo fator motivador da criação da própria Organização das Nações Unidas.

A Declaração retomou, em certa medida, os ideais da Revolução Fran- cesa, e, passados quase dois séculos desde aquela, enfim reconheceu, no âmbito universal, os valores supremos da igualdade, da fraternidade e da liberdade. Este seria, pois, um momento histórico de afirmação da igual-dade essencial de todo ser humano em sua dignidade de pessoa1. Ao final da II Guerra, percebeu-se que as promessas da modernidade – um mundo marcado pela paz e prosperidade – acabaram não se concretizando. A crença numa razão libertária, diante de todos os absurdos produzidos durante o conflito mundial, teve que ser revista.

Os horrores da Guerra produziram espanto e, mais do que isso chamaram a atenção para a necessidade de criação de mecanismos internacionais Page 71que pudessem evitar que fatos como os ocorridos não se repetissem. A Organização das Nações Unidas e a Declaração Universal dos Direitos Humanos foram, na realidade, uma tentativa da humanidade de evitar que o ser humano voltasse a ser vítima de lesões à sua dignidade, ou, pelo menos, que eventuais tentativas de lesão fossem desestimuladas ao máximo. Nessa esteira, formou-se uma consciência praticamente unânime da necessidade de imposição de limites éticos à produção normativa dos Estados, o que estaria garantido com a Declaração de 1948. Contudo, a men-talidade formalista decorrente do exacerbado positivismo que dominou o mundo jurídico no século XIX e primeira metade do século XX, levou muitos juristas a afirmarem faltar à Declaração de 1948, força vinculante e, por conseqüência, obrigatoriedade, reconhecendo-lhe apenas o caráter de mera recomendação. Essa discussão restou superada quando da adoção, em 1966, do Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos e do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos Sociais e Culturais. Estes pactos desenvolveram, em detalhes, o conteúdo da Declaração de 1948, com-pletando, assim, a segunda etapa do processo de institucionalização dos direitos humanos2. Estava completa, agora, a construção da Carta Internacional de Direitos Humanos, composta pela Declaração Universal e pelos Pactos Internacionais de Direitos Humanos3.

Fato bastante peculiar em relação à aprovação desses pactos é a própria existência de dois tratados distintos, ao invés de um único, normatizando os direitos humanos. Essa opção pela produção de dois pactos corresponde ao cenário político mundial, que, à época da produção dos tratados, encontrava-se dividido entre o bloco capitalista e o bloco socialista. Durante o período de Guerra Fria toda a agenda política mundial esteve, de alguma forma, submetida à lógica desse embate ideológico entre as duas super- potências. Os direitos humanos não fugiram a essa regra, o que acabou resultando na produção de dois tratados ao invés de um único, como seria natural. Tinha-se, dessa forma, de um lado o bloco capitalista calcado num discurso de valorização das liberdades individuais, e, do outro, o bloco socialista, com uma retórica em favor dos direitos econômicos e sociais. EssaPage 72dicotomia liberdade-igualdade acabou servindo de razão para a produção dos dois tratados. É evidente que o discurso das potências não era claro nesse sentido. As justificativas apresentadas acabaram sendo as de que:

  1. os direitos civis possuem natureza diversa dos direitos econômicos, já que aqueles teriam aplicação imediata, enquanto estes seriam aplicados progressivamente; e b) os mecanismos de supervisão da implementação dos direitos seriam diversos, existindo no caso dos direitos civis a possibilidade de denúncia do Estado em caso de violação, o que não seria possível em se tratando dos direitos econômicos e sociais4. Certamente que os argumentos apresentados não convencem por não resistirem a uma análise mais profunda e crítica. O fato é que tal dicotomia resulta mesmo do processo histórico de agressão mútua e enfretamento ideológico entre os dois grandes blocos, gerando, no campo dos direitos humanos, esta retórica dissociativa entre direitos civis e políticos, por um lado, e direitos econômicos e sociais, por outro lado.

A indivisibilidade dos direitos humanos

A referida divisão dos direitos humanos em duas grandes classes – liberdade individuais, de um lado, e, do outro, igualdade econômica e social – não resiste a nenhum critério de razoabilidade. Isto porque a digni- dade da pessoa humana não é invenção do legislador nem criação dos juristas, tendo o Direito apenas albergado tal idéia na forma normativa de princípio jurídico. A dignidade é, pois, um valor histórico-social; o valor sobre o qual se funda e legitima todo o ordenamento jurídico, seja no plano interno – constituição –, seja no plano externo – tratados de dire- itos humanos. É, portanto, a dignidade um valor com reflexos incontáveis, sendo esta, justamente, a razão pela qual a tutela dos direitos da personali- dade não poder estar prevista num rol taxativo de direitos. Mas, se é ver- dade que a dignidade do indivíduo acaba por garantir-lhe uma série aberta de direitos, isso não significa que a dignidade não seja um único valor. Quando se fala em dignidade está se falando na existência de um único valor, e não valores. Dessa forma, quando o indivíduo sofre uma injusta lesão a um direito decorrente de sua dignidade, pode-se afirmar que toda sua dignidade foi afetada.

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Sendo então verdade que a dignidade é um único valor, sua tutela não pode ser fracionada, existindo, assim, uma unidade e uma indivisibilidade dos direitos humanos. Nessa linha, tanto o Encontro de Teerã quanto o Programa de Ação de Viena acabaram por afirmar a unidade e interdependência dos direitos humanos, jogando por terra a artificial divisão dos direitos humanos pressuposta para a elaboração dos dois tratados. Afirmou-se no Encontro de Teerã que “como os direitos humanos e as liberdades fundamentais são indivisíveis, a realização dos direitos civis e políticos sem o gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais tornam-se impossível”5. Da mesma forma, na Declaração de Viena:

Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter- relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos globalmente, de modo justo e eqüitativo, com o mesmo fundamento e a mesma ênfase. Levando em conta a importância das particularidades nacionais e regionais, bem como os diferentes elementos de base históricos, culturais e religiosos, é dever dos Estados, independentemente de seus sistemas políticos, econômicos e culturais, promover e proteger todos os direitos humanos e as liberdades fundamentais6 (grifo nosso).

ConceitA artificial divisão dos direitos humanos foi superada tanto no campo teórico, pela impossibilidade de fundamentação da divisibilidade da dignidade dos indivíduos, quanto no campo da fundamentação norma- tiva, uma vez que tanto o Encontro de Teerã quanto a Declaração de Viena afirmaram...

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