Marx esta de volta! Um chamado pela virada materialista no campo do direito/Marx is back! A call for a turn towards materialism on the field of law.

AutorGoncalves, Guilherme Leite
  1. A volta de Marx e o descompasso do campo do direito

    Marx esta de volta! Uma frase repetida continuamente nos ultimos anos, nao apenas nos mais diversos meios de comunicacao, mas tambem em diferentes circulos academicos e campos de pesquisa. Mundo afora, ressurgem artigos cientificos, reportagens, exposicoes, filmes, documentarios, composicoes musicais, pecas de teatro e literarias sobre a atualidade de seu pensamento. No mesmo sentido, aumentou significativamente o numero de congressos e seminarios destinados a aprofundar o potencial analitico dos conceitos marxianos. Reapareceram grupos de discussoes sobre as grandes obras do pensamento marxista, revistas especializadas, novos foros de debate e espacos para o desenvolvimento de investigacoes teoricas e empiricas que reivindicam a analise critica de Marx para compreender os fenomenos contemporaneos. Se pensarmos que ha bem pouco tempo O Capital estava praticamente fora de catalogo, chama mais atencao ainda o fato de que, desde que disponibilizado no site da Cuny, em 2008, os cursos de David Harvey sobre a respectiva obra ja foram baixados por mais de 2 milhoes de pessoas. O que, em um passado recente, parecia algo apenas restrito a grupos criticos e alternativos, principalmente internos aos movimentos estudantis e sindicais e a nucleos de pesquisas marginalizados nas universidades, expandiu-se significativamente para diferentes segmentos e midias. (4)

    Apesar do curto espaco de tempo, esta reanimacao da obra de Marx e do pensamento marxista faz-se sentir em muitas areas do conhecimento por meio de importantes contribuicoes. Nas ciencias sociais, a difusao e o impacto academico de debates desenvolvidos no ambito de foros como o GT de Marxismo e Ciencias Sociais da ANPOCS, o Cemarx (UNICAMP) e o NIEP-Marx (UFF) mostram-se cada vez mais crescentes. Apos duas decadas de apatia e desanimo em torno da capacidade descritiva da teoria social na producao sociologica mundial, Klaus Dorre, Stephan Lessenich e Hartmut Rosa (2009, 12) convocaram um "esforco cientifico coletivo" para promover "o retorno da critica na sociologia". Em seu manifesto, os autores sustentaram "que, na sociedade moderna--e mesmo em sua formacao atual de modernidade tardia--, o capitalismo e, sobretudo, a forma autonoma de acumulacao privada de lucros e que os diagnosticos sociologicos e a critica da sociedade devem se mirar para tal forma, vale dizer, para suas condicoes e consequencias sociais" (ibid.).

    Com o inicio dos anos 2010, a critica ao capitalismo reapareceu nao apenas na sociologia, mas em tantas outras searas: filosofia, economia, ciencia politica. Pense-se, por exemplo, na ampla repercussao nos mais variados campos que o seminario Marx: a criacao demolidora, promovido pela Editora Boitempo e pelo Sesc, alcancou em 2013. No centro do capitalismo, salta aos olhos o exito dos ultimos tres encontros do festival Marxism, que, organizado em Londres pelo Socialist Workers' Party, vem reunindo milhares de pessoas de diferentes areas para discutir, de maneira multidisciplinar, os principais problemas contemporaneos a luz da tradicao marxista. (5) Simbolicamente ainda mais significativo foi o Congresso Re-Thinking Marx do Instituto de Filosofia da Humboldt-Universitat zu Berlin, na Alemanha, em maio de 2011. (6) Apos anos de politica anti-Marx (do "silencio ofensivo" nos programas de seus cursos a oposicao aberta contra a inscricao da 11. Tese Sobre Feuerbach nas escadarias do hall do predio principal, que remetia qualquer manifestacao sobre ele a imagem da ex-Alemanha Oriental, Marx retornou a Universidade em que estudou. (7) No mesmo lugar em que ele conheceu o circulo dos jovens hegelianos, estudantes, pesquisadores e professores renomados superlotavam o auditorio principal e reivindicavam a atualidade da filosofia marxista (Gra[sz]mann 2012, 220).

    Como referencia igualmente simbolica, tao relevante quanto o chamado da filosofia e o protesto dos estudantes de economia pela revisao dos curriculos e conteudos atualmente ministrados. O questionamento das ferramentas analiticas do pensamento neoclassico em face dos principais problemas do seculo XXI (crise financeira, aumento da desigualdade social, questao ambiental etc. levaram gradativamente a contestacao do carater absoluto e de pensamento unico que tal modelo adquiriu na reflexao economica. A partir de acoes particulares, como o abandono do curso introdutorio de economia de Greg Mankiw (presidente do conselho economico de George W. Bush) pelos alunos de Harvard em razao de seu soliloquio ortodoxo (8) e a criacao do Post-Crash Economics Society pelos estudantes de economia de Manchester sob a bandeira "O mundo mudou; a apostila, nao", associacoes estudantis de 21 paises se reuniram e lancaram a Iniciativa Internacional de Estudantes para o Pluralismo Economico que reivindica um ensino aberto a uma variedade de perspectivas. (9) Ao lado da tradicao keynesiana, ecologica, institucional e feminista, exige-se abertamente a reintroducao do marxismo nos curriculos de economia.

    A ressonancia dos eventos descritos acima nao deixa duvidas: Marx esta de volta. (10) Mas e no direito? No ambito do mainstream do conhecimento juridico, ainda nao se viu nenhuma iniciativa que tenha a envergadura das citadas acima. Ao contrario: o cenario parece desolador. Os principais institutos internacionais de pesquisa em direito do centro do capitalismo insistem em um silencio quanto ao pensamento critico em geral e a tradicao marxista em particular. Veem-se mergulhados em uma monocultura intelectual servil a democracia liberal e suas instituicoes juridicas, assumindo-as como ponto de partida e de chegada de uma reflexao que investe em desenhos institucionais e tecnicas interpretativas para conservar os valores politicos existentes e dominantes. Uma reflexao, portanto, que se coloca indiferente as desigualdades materiais, assimetrias de poder e conflitos sociais gerados sob a egide do mesmo regime politico-juridico tomado como incontestavel. Sempre protegidas da realidade, as instituicoes politico-juridicas liberais sao elevadas a uma nova forma de transcendentalidade, o que permite sua permanente celebracao no mainstream juridico tanto pelas teorias da justica e dos direitos fundamentais quanto pelos modelos de economia neoclassica aplicados ao direito. Nesse mainstream, nao ha espaco para se pensar o direito como parte do tecido social, mediado pelas relacoes assimetricas e desiguais que o compoe.

    Se, em tal contexto, e de se aplaudir o espaco de discussao gerado por pesquisas sobre o campo juridico baseadas no construtivismo estruturalista de Bourdieu, e preciso louvar iniciativas no ambito da tematica "direito e marxismo" que resistem ao quadro dominante apontado, como, por exemplo, o Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais, a publicacao Cadernos de Pesquisa Marxista do Direito e o Congresso Internacional de Direito e Marxismo. A referencia a projetos apenas no Brasil nao se deve tao so a uma tentativa de situar o universo dessas atividades em nosso proprio ambiente academico, mas, ao contrario, diante do contexto internacional desanimador, nao seria equivocado dizer que, no ambito dos estudos juridicos marxistas, a pesquisa brasileira encontra-se na dianteira. Uma dianteira, todavia, que ainda nao representa um impacto significativo no conhecimento juridico como um todo e esta infelizmente aquem de expressar a mesma amplitude que a reanimacao de Marx e da critica ao capitalismo obteve em outros campos de conhecimento como a sociologia, a economia, a filosofia ou a ciencia politica. Resta entao a pergunta: por que Marx ainda nao voltou com a mesma forca no direito?

  2. Atualidade reprimida: zonas de obstrucao da retomada de Marx e da critica ao capitalismo na reflexao sobre o direito

    Para responder a questao lancada ao final do topico anterior, e necessario entender o processo que levou a repressao do pensamento marxista, superado por outras areas do conhecimento, mas ainda persistente nas instancias de reflexao sobre o direito. Esse processo encontra-se estreitamente vinculado a dois movimentos entrelacados e engajados com a formacao do novo sistema de acumulacao pos-crise de 1973: a reestruturacao regulatoria neoliberal e o giro da teoria critica ao idealismo juridico. Em seguida, passo a analisar as consequencias de cada um desses fenomenos no campo do direito, com o intuito de identificar quais canais precisam ser desobstruidos para permitir que o pensamento marxista possa novamente circular e se transformar em sensor critico e alternativa criadora no interior do conhecimento juridico.

    1. O sistema de acumulacao neoliberal e a reestruturacao regulatoria

      Ja se tornou lugar-comum considerar a queda do bloco sovietico e a sucessiva dominacao do liberalismo de mercado como o principal motivo para o enfraquecimento do debate marxista desde os anos 1990. Nao e o caso de repetir aqui argumentos por demais notorios e exauridos por diversos autores. O fato e que, apos 1989, a agenda socialista passou a ser desacreditada enquanto projeto politico e a capacidade analitica dos modelos marxianos sobre a dinamica social, questionada e desabilitada. No ambito do conhecimento juridico, isso levou ao esvaziamento de escolas teoricas identificadas com o campo marxista, como uso alternativo del diritto, critical legal studies ou critique du droit, que, entre as decadas de 1960 e 1980, tiveram um impacto significativo no ambiente academico internacional do direito com uma consideravel influencia em muitos paises, sobretudo na America Latina. (11)

      Na verdade, tal esvaziamento, a exemplo de muitos outros recuos no plano da critica e da politica social, foi gestado ao longo da reestruturacao produtiva, regulatoria e ideologica do capitalismo pos-1970, que contemplou as novas condicoes de acumulacao colocadas pela erupcao da crise do modelo economico do pos-guerra, em 1973. Apesar da confusao terminologica (Brenner, Peck, e Theodore 2010a), o conceito de...

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