Mandar obedecendo: a outra forma de poder

Páginas55-74
ENTREVISTA
MANDAR OBEDECENDO: A OUTRA FORMA DE PODER
Rodrigo Montoya conheceu o mar com dezesseis anos. Depois disso,
muitas águas rolaram. Nascido em Puquio, nos Andes peruanos,
formou-se em Antropologia em Lima, fez doutorado em Ciências Sociais
na Sorbonne (França), tornou-se professor emérito da mais antiga
universidade latino-americana, a Universidade Nacional Mayor de San
Marcos (Lima) e foi professor-visitante de inúmeras Universidades, entre
as quais a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Federal
da Bahia (UFBA). Recentemente, passou algumas semanas em três
caracóis zapatistas, experiência que é, junto com uma análise dos
movimentos indígenas na América Latina, tema dessa entrevista
realizada por Iraneidson Costa em Lima, em janeiro de 2006.
AS ORIGENS DO ZAPATISMO
CEAS: É inegável o crescimento dos movimentos indígenas latino-americanos
nas últimas décadas, sobretudo a partir da irrupção do movimento zapatista no
México. Fale-nos um pouco desse processo...
Rodrigo Montoya: Começarei por precisar até que ponto o zapatismo é ou
não um movimento indígena. E depois o que constitui nesse momento
particular o zapatismo. No México existem, atualmente, mais ou menos 65
grupos étnicos reconhecidos. E em Chiapas, no território zapatista, que
consiste na Selva Lacandona e na Alta Sierra de Chiapas, Sierra Selva e uma
espécie de Selva Alta, um pouco fria e chuvosa. Nesta zona há três pisos
ecológicos claramente distintos e aí estão instalados em particular três grupos
indígenas: os mais conhecidos da história são os Tzotzil, que são parte dos
maias, território maia em unidade histórica com Guatemala. Com isso há razão
suficiente para situar os zapatistas como um grupo político que trabalha numa
pequena zona indígena do México, que não compromete a todo o mundo
indígena mexicano. Esse é um ponto.
O segundo é que o zapatismo apresenta uma composição social e política
variada: de um lado, uma direção indígena; de outro, uma direção formalmente
não-indígena. Em 1983, chegou, oriundo da capital mexicana, um grupo de
marxistas-leninistas interessado em instalar-se na zona de Chiapas, na Selva
Lacandona, pensando que podiam fazer uma guerrilha clássica, como as que
haviam ocorrido antes na Guatemala, no México, na Colômbia, no Peru, no
Equador... Mas esse grupo, composto originalmente de sete pessoas, terminou
reduzido a uma apenas, o subcomandante Marcos. Ele permaneceu na região,
aprendeu a língua indígena, melhor, as variantes de línguas indígenas que
havia nesta zona, e achava que o que havia chegado de marxismo, leninismo e
cultura política não servia aos indígenas. E que a primeira coisa que tinha que
fazer era entender esse ponto através de sua língua e de sua cultura.
Nesse processo, que inicia em 1983 e vai até 1994, são onze anos de
preparação e formação, uma escola em que houve uma dupla aprendizagem.
De um lado, Marcos que se converte num indígena e, de outro, os indígenas
que acompanham um homem valioso que vem de fora, se identifica com eles,
vive com eles e renuncia a tudo que havia possuído no México. O zapatismo é
fruto do encontro de um homem que vem da esquerda, e sobrevive a um
grupo, e um grupo de indígenas que acreditam nele, que abrem os braços com
muito carinho e lhe dizem: “Este mundo também é teu!”. É um exemplo para
pensar politicamente o futuro, o encontro da história mexicana neste grande
personagem que é Zapata, um dirigente camponês muito inconformado e
valente que teve uma participação importante da Revolução Mexicana de
1911.
Este zapatismo passou por uma significativa evolução política até chegar a
de janeiro de 1994, quando o governo mexicano firmou com o norte-americano
o Acordo de Livre Comércio (NAFTA) e quando também ocorreu a rebelião,
seguida de ocupação, em San Cristóbal de Las Casas, capital do Estado de
Chiapas. E apareceu o movimento como uma surpresa extraordinária, não
apenas por surgirem mascarados, mas pela proposta de dizer: “Não queremos
o poder!”. Uma guerrilha, única no mundo, que não queria o poder! Já que
todos os movimentos guerrilheiros anteriores, na América Latina e no mundo
inteiro, surgiram exatamente para lutar pelo poder. E esse subcomandante
Marcos evoluiu politicamente até produzir uma utopia do que seria a “outra
forma de poder”...
CEAS: Antes de entrarmos na essência desta nova forma de poder, como
estava essa composição social ao interior do zapatismo?
Rodrigo Montoya: O Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) se
constituiu em 1983 e, ao longo desses anos, havia formado uma direção
indígena, com homens e mulheres, a quem correspondia os cargos de
comandantes e comandantas. E Marcos assumiu o papel de subcomandante.
A idéia do primado do povo sobre o dirigente começa aí: a pessoa mais
ilustrada não é a que tomava as decisões, senão a que implementava as
decisões tomadas pelos dirigentes indígenas, homens e mulheres. O
subcomandante é seu porta-voz. E, por isso, o zapatismo tem esse
componente indígena sem dúvida forte e importante, mas, como disse antes,
com um homem que vem de fora, se torna “de dentro”, converte-se em mais
um indígena, porque aprende a língua, vive com as pessoas, não perde seus
grandes sonhos e se submete à direção do coletivo indígena.
A proposta consistiu em desafiar o governo, abrindo uma guerra militar em
termos clássicos. E se produz uma novidade política na América Latina, que foi
a reação, no México, nas classes médias, nos intelectuais, nos estudantes, que
encontraram um movimento indígena novo, original, um movimento político que
tinha uma figura extraordinária – ninguém sabia quem era o subcomandante
Marcos –, e que dizia: “Nós não queremos tomar o poder. Nós queremos
mudar o mundo! Mas, para transformar o mundo, não necessitamos tomar o
poder”. Essa era uma tese que contradizia absolutamente todo o saber político
dessa época, porque toda a tradição política ocidental está construída sob o

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