A luta pelo direito a cidade: contribuicoes do debate da derivacao do Estado/The fight for the right to the city: contributions from the State derivation debate.

AutorReis, Ana Beatriz Oliveira

Introducao

Para alem de uma compreensao normativista, entende-se que o direito a cidade, na concepcao criada por Henri Lefebvre e atualmente desenvolvida por David Harvey, possui duas dimensoes: a sobreposicao do valor de uso do espaco urbano em relacao ao valor de troca e a dimensao utopica. Essas dimensoes situariam esse direito na luta anticapitalista, que possui como horizonte necessario a superacao da sociabilidade hegemonica da mercadoria.

Nos ultimos anos, o direito a cidade tem sido reivindicado por diferentes sujeitos coletivos e ganhado mais espacos nas discussoes institucionais, em especial, nas politicas publicas e nas legislacoes dos diferentes niveis de governo. Contudo, entende-se que a positivacao desse direito e a sua reducao as prestacoes estatais elimina a sua potencialidade emancipatoria por aprisiona-la as formas politica e juridica. Logo, questiona-se quais sao os limites e as possibilidades da luta pelo direito a cidade tendo como horizonte a superacao da sociabilidade capitalista?

Para compreender os limites e as possibilidades da luta pelo direito a cidade, essa investigacao se vale do metodo historico-dialetico, por intermedio de pesquisa bibliografica de obras situadas no campo do pensamento marxiano e marxista, em especial, as recentes contribuicoes do debate sobre a derivacao do Estado, com vistas a responder a questao norteadora desse trabalho.

A investigacao acerca das estruturas politica e juridica e importante aliada a apreensao dos limites da luta no campo institucional por politicas publicas e por leis que tenham como objetivo a promocao do direito a cidade. Central nessa analise sao os estudos situados no ambito do debate derivacionista do Estado (CALDAS, 2014, fl.12) e suas contribuicoes para entender "questoes ligadas ao problema do valor, da acumulacao e das formas sociais do capitalismo" (MASCARO, 2018b). O debate da derivacao do Estado iniciou na decada de 70 na Alemanha e, posteriormente, na Inglaterra como forma de criticar as ilusoes acerca do Estado de Bem-Estar Social e as teorias tracionais sobre o Estado bem como superar a dicotomia entre economicismo e politicismo (CALDAS, 2014, fl. 27). No contexto desse debate, rejeita-se a ideia de que o Estado e o Direito sao instrumentos neutros, ou seja, passiveis de serem utilizados para quaisquer propositos (CALDAS, 2014, fl. 192).

Esse artigo se estrutura da seguinte forma: num primeiro momento, e apresentada a metodologia dessa pesquisa que se vale dos referenciais da teoria critica marxista. A seguir, apresenta-se as principais consideracoes do debate da derivacao acerca das formas sociais, em especial, as formas mercadoria, valor, politica e juridica. Essas sao analisadas por intermedio do legado do proprio Karl Marx e de antigos e atuais interlocutores no ambito do pensamento marxista.

Em seguida, num terceiro momento, resgata-se a luta pelo direito a cidade em seus aspectos teoricos e historico-sociais, bem como as principais questoes colocadas quanto aos seus limites e suas possibilidades por intermedio do dialogo com o debate derivacionista do Estado. Por fim, apresenta-se a conclusao desta investigacao.

Metodologia

Essa pesquisa utiliza-se dos referenciais da Teoria Critica, identificada de acordo com a compreensao abaixo:

A Teoria Critica tem sempre como uma de suas mais importantes tarefas a producao de um determinado diagnostico do tempo presente, baseado em tendencias estruturais do modelo de organizacao social vigente, bem como em situacoes historicas concretas, em que se mostram tanto as oportunidades e potencialidades para a emancipacao enquanto os obstaculos reais a ela (NOBRE, 2004, p. 1) A teoria critica surgiu como uma oposicao as formas tradicionais de se produzir ciencia na modernidade. Critica do idealismo, os pensadores que com ela se identificam como Max Horkheimer e Theodor Adorno (1985), buscavam a superacao da dicotomia teoria-pratica, pois o conhecimento deveria esclarecer as pessoas sobre a ordem instituida a fim de reorganizar a sociedade. Alem disso, pretendiam o rompimento com a producao acritica do conhecimento cientifico. A pesquisa, para a teoria critica, e determinada por "tarefas a cumprir" e essas tarefas tem objetivo especifico: "a mudanca das circunstancias que condicionam o infortunio (HORKHEIMER, 2011, p.42).

A orientacao para a superacao da sociabilidade hegemonica da mercadoria, por meio dos elementos da propria realidade, faz com que aqueles que se comprometem com a teoria critica nao se contentem apenas em descrever o objeto observado. E necessario, ainda, (i) identificar as potencialidades na propria realidade do que pode vir a ser de acordo com os elementos que essa mesma fornece, e (ii) verificar quais sao os empecilhos que impedem que o mundo seja como ele deveria ser. Importante ressaltar que para a teoria critica o devir historico nao e uma abstracao, pois as potencialidades para a emancipacao sao verificadas na propria realidade concreta.

O metodo cientifico que conduz a presente pesquisa e o dialetico-materialista (MARX, 2011, p. 129). Nesse sentido, pretende-se apontar os limites do uso institucional do direito a cidade por intermedio do pensamento critico valendo-se da pesquisa bibliografica em obras situadas nos campos marxiano e marxista.

O debate derivacionista do Estado e as formas sociais

Compreender os limites e as possibilidades da luta pelo direito a cidade exige esforco teorico para se verificar quais sao as estruturas imbricadas na producao do espaco e que impactam na luta pela sua transformacao radical. Essas estruturas sao as formas sociais, praticas reiteradas cotidianamente que condicionam as atitudes e as expectativas na vida em sociedade, resultando, inclusive na constituicao de instituicoes especificas.

Nas palavras do filosofo e jurista Alysson Leandro Mascaro, "formas sociais sao modos relacionais constituintes das interacoes sociais, objetificando-as. Trata-se de um processo de mutua imbricacao: as formas sociais advem das relacoes sociais, mas acabam por ser suas balizas necessarias" (2013, p.21). Importante ressaltar que a analise das formas sociais nao pode ser feita sem utilizar-se da ferramenta de investigacao historica, tendo em vista que os modos de se relacionar na sociedade modificam conforme as estruturas sociais de cada epoca, nao se tratando de meras categorias abstratas.

Na Antiguidade, os vinculos sociais estabelecidos se davam pela escravidao por intermedio da dominacao direta e, na Idade Media, a servidao garantia a reproducao social. Ja na Modernidade, com o inicio do desenvolvimento das relacoes capitalistas, a generalizacao das relacoes de troca constituiu a principal forma social da atual sociabilidade hegemonica: a mercadoria. A forma-mercadoria atravessa a todas as coisas, transformando-as em algo passivel de ser comercializado, sendo dela derivadas as demais formas sociais (MASCARO, 2013, p.22).

A constante repeticao da troca transforma-a num processo social regular, razao pela qual, no decorrer do tempo, ao menos uma parcela dos produtos do trabalho tem de ser intencionalmente produzida para a troca. Desse momento em diante, confirma-se, por um lado, a separacao entre a utilidade das coisas para a necessidade imediata e sua utilidade para a troca (MARX, 2011, p. 162). Na sociabilidade capitalista o trabalho se torna abstrato, ou seja, generaliza-se enquanto uma mercadoria passivel de ser vendida aqueles que detem os meios de producao. Da relacao de troca entre mercadorias e do proprio trabalho assalariado, deriva-se uma outra forma social: a forma valor. Esta "nao e uma qualidade que resulte intrinseca a mercadoria, porque somente se estabelece na equivalencia de todas as mercadorias entre si (...) sua forma sempre se apresenta de forma relacional" (MASCARO, 2013, p.23). Nesse contexto, o dinheiro e constituido como elemento de equiparacao entre as mercadorias.

Para que essas formas sociais operem e necessaria a constituicao de um aparato externo aos proprios agentes economicos que garanta a reproducao...

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