Lucia Xavier: uma "pegada" radical contra as violacoes de direitos.

AutorMarques, Joilson Santana, Jr.
CargoHOMENAGEM DE VIDA - Texto en portugu

Antes de iniciar propriamente esse texto, peco licenca. Faco isso, por entender que falar sobre uma mulher e, particularmente, uma mulher negra, sendo eu um homem negro gay, e uma honra e, ao mesmo tempo, um grande desafio. Mesmo que eu nao pertenca a uma forma hegemonica de masculinidade, ou melhor, que acredite nao ser um representante oficial da forma de masculinidade que coopera para a exploracao e opressao das mulheres em nossa sociedade, certamente reproduzo por forca das ideologias dominantes (por mais que eu busque evitar) os machismos.

Sendo assim, esforcei-me nessas linhas para nao tentar agir como porta voz, mas simplesmente, como alguem que ve e percebe uma trajetoria admiravel e profundamente marcante como a de Lucia Xavier: uma intelectual que foi forjada a partir de sua insercao racial, de classe e genero, mas que, para alem desses pertencimentos relacionados a sua propria historia individual, abracou causas muito alem deles. E uma trajetoria desenvolvida ao longo de quatro decadas de atuacao pautada por principios como a alteridade, a valorizacao da diversidade e a empatia na sua concepcao mais radical, ou seja, como a compreensao de que o que oprime e explora o outro e da minha "conta", na medida em que "ninguem sera livre enquanto alguem permanece cativo".

Assim, optei por uma abordagem que buscasse de maneira resumida contar um pouco da historia, buscando uma perspectiva integral, que mescle a vida e o trabalho desenvolvido por Lucia Xavier. E importante destacar que, em respeito a historia de Lucia tento reproduzir no texto, seu movimento de insercao simultanea em diversas frentes e temas, procurando uma abordagem que nao segmentasse essas dimensoes na vida dos/as explorados e oprimidos/as, como e proprio da vida dela.

Por fim, quero pontuar que os dados acerca de sua trajetoria utilizados na construcao deste texto foram produzidos tambem a entrevista/ conversa concedida por Lucia a meu pedido em dezembro de 2015 e a consulta ao curriculum (1) dela apresentado durante sua candidatura para a eleicao da Ouvidora-Geral da Defensoria Publica do Estado do Rio de Janeiro, tambem ocorrida em 2015 (2).

Encontros marcantes ou cruzando os caminhos com X de Xavier

Conheci Lucia em 2006, por intermedio da professora Magali da Silva Almeida (3) minha orientadora de monografia de graduacao e uma das principais pessoas de referencia em minha formacao profissional. Creio que ja num primeiro momento fui atraido pelo jeito calmo, mas firme de Lucia: uma fala contundente, mas profundamente terna, que transpira uma serenidade almejada por muitos, mas dificil de ser conquistada. Foi uma felicidade para mim, ainda aluno de graduacao, saber que aquela pessoa tao elegante e seria era tambem assistente social.

Fui me encontrando com Lucia no decorrer dos anos seguintes, particularmente nos eventos relacionados tanto a luta por direitos da populacao negra quanto nos da populacao LGBT e fui tendo com isso o prazer de ouvi-la e de conversarmos em alguns espacos de militancia.

Ate que na rearticulacao da Comissao de Genero Etnia e Diversidade Sexual (GEDS) do CRESS 7a R, foi proposto um evento que simbolizava o retorno das atividades daquela Comissao. Lucia foi entao escolhida pelos membros da GEDS como conferencista principal, isto em razao da sua trajetoria de atuacao transversal nos temas da referida Comissao: o combate ao sexismo, ao racismo e a homofobia. Aquele evento foi impar, pois nele foi possivel trazer para uma atividade especifica do CRESS (de cunho regional), a fala de uma assistente social extremamente atuante no combate a estas formas de opressao e exploracao nas mais diversas frentes, inclusive internacionais. Naquele momento, Lucia mostrou-se generosa e ja uma grande parceira para futuras interlocucoes.

Em 20l2, a GEDS decidiu abordar o tema do racismo ambiental (4) e, mais uma vez, decidimos pelo nome de Lucia. Isso ocorreu porque ela havia tambem sido Consultora da OXFAM5 para a realizacao de um curso de formacao de liderancas do movimento da reforma urbana, focado na discussao da insercao das dimensoes de genero e raca no orcamento publico (entre 2010 e 2011). Ela foi convidada para o curso por ser protagonista do enfrentamento destas velhas questoes travestidas em novas roupagens, como a reforma urbana (ao estilo Pereira Passos) em andamento na cidade do Rio de Janeiro, tambem naquele momento. Alem disso, ela havia escrito ha pouco tempo um artigo importante sobre as condicoes de vida das mulheres negras e a discussao do racismo ambiental.

Alguns anos a frente nos encontramos atraves do projeto Quero Fazer, um projeto da politica de saude de incentivo a testagem de HIV/ Aids. Eu havia trabalhado no mesmo projeto e conversamos um pouco sobre diagnostico e tratamento de HIV/Aids no estado do Rio de Janeiro, principalmente sobre estudos que demonstram a relacao entre sofrer homofobia e maior predisposicao a infeccao pelo HIV/Aids.

Por fim, para a elaboracao desta homenagem, contei mais uma vez com a solicitude de Lucia que conseguiu um espaco na sua concorrida agenda e no dia 18 de dezembro de 2015, fui recebido por ela na sede da Organizacao Nao-Governamental Criola. La, me senti literalmente recebido em casa, pois foi com um sorriso e muito afeto que transcorreu toda a nossa conversa, embora nao fosse uma entrevista na acepcao mais rigida do termo. Foi uma conversa para conhecer e (re)conhecer essa mulher negra impressionante que se chama Lucia Xavier.

Nesses diferentes encontros com Lucia ao longo dos anos, tornouse patente para mim a luta empreendida por ela para melhorar as condicoes de vida daqueles/as que sao historicamente discriminados/as e que, muitas vezes, sao oprimidos/as mesmo entre os explorados: mulheres e homens negros, pessoas LGBT, pessoas soropositivas e vivendo com HIV/AIDS. Contudo, acima de tudo, o que chamou minha atencao ao longo do tempo foi que Lucia nao projeta a si mesma nem o que faz a dimensao de "paladina da justica" ou no papel de "defensora dos outros". Ela reconhece a si mesma no/ a outro/a e e isso que a faz tomar partido nessas diferentes lutas. E o que a move.

Lucia Xavier: nossos passos vem de longe (6)

Lucia Xavier nasceu Lucia Maria Xavier de Castro em 1959. Sua infancia foi marcada pela perda de seu pai, um radialista, quando ela tinha apenas dois anos e a luta de sua mae para garantir a vida de Lucia e de seus irmaos foi uma constante. Sua mae tornou-se trabalhadora domestica e, como tantas outras mulheres negras empregadas nesse setor, tinha uma jornada de trabalho extensa, sem direitos trabalhistas e contando com apenas duas folgas no mes para ficar com seus filhos, o que a motivou a matriculalos/as em um colegio interno no bairro Lins de Vasconcelos, zona norte do Rio de Janeiro, onde Lucia passou uma boa parte de sua infancia.

Embora tendo iniciado a infancia em condicoes adversas, Lucia fez questao de enfatizar a existencia do cuidado em sua familia, principalmente o auxilio de sua avo a mae de Lucia e a outras mulheres em situacoes...

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