Limitações jurisprudenciais à insignificância no descaminho

AutorNefi Cordeiro - Anderson Zacarias Martins Lima
CargoMinistro do Superior Tribunal de Justiça - Mestrando em Direito Internacional e Econômico no Programa de Mestrado
Páginas17-52

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1. Introdução

A exclusividade da jurisdição estatal para a responsabilização criminal traz consigo o princípio da obrigatoriedade, para que não se torne o Estado descumpridor da promessa de eficiência à vítima, delegante do interesse primeiro de punição. De outro lado, sempre agirá o Estado na representação social coletiva e, mesmo na persecução criminal, precisará zelar pelo bem comum, pelo devido processo legal e pelo justo material - surgem as garantias processuais do acusado.

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Nesse confronto de obrigatoriedade e de justiça material situa-se a discussão do princípio da obrigatoriedade. Como princípio, é valorado casuisticamente, mas pela segurança jurídica exige definições iniciais de incidência, para que possa ser aplicado de modo isonômico pelos operadores do direito.

Nem toda conduta típica atinge de maneira relevante ao bem jurídico tutelado. Nem toda ação contrária à lei merece a movimentação da onerosa e extremamente gravosa estrutura do estado-juiz criminal.

Esse o debate, da incidência e parâmetros do princípio da insignificância frente a figuras típicas, com pena cominada, e em contraposição à necessidade de punição para mínimos ou irrelevantes danos.

Nos crimes tributários a discussão ganha maior projeção pela demonstração estatal do que a ela é relevante - quando da definição das políticas de execução fiscal. E, dentre os crimes tributários, sobreleva o de descaminho, talvez pela infeliz realidade social e de política criminal que o torna especialmente frequente.

O objeto jurídico do descaminho, de proteção à soberania estatal na preservação do erário público por ocasião do controle aduaneiro, tem recebido afronta cotidiana, em quantidade e reiteração de eventos - pessoas que semanalmente viajam para fora do país, por até três vezes, trazendo ilegalmente mercadorias com tributação sonegada (chamados sacoleiros ou mulas3) -, assim como em valor, quando constatados carregamentos por caminhões de toda uma carga de mercadoria descaminhada.

Não se examinará a muito interessante discussão da política criminal desenvolvida concretamente no descaminho, que não faz enfrentamento semelhante ao do tráfico, embora praticado o crime de importação em semelhantes circunstâncias, ou mesmo pela não repressão aos camelódromos instalados ostensivamente em inúmeros municípios do país. Nem será objeto de enfrentamento a admissão social parcial, mas relevante, constatada pela aceitação pública da atividade, assumindo o agente a profissão de sacoleiro, ambulante, ou mesmo pela venda muitas vezes sequer escondida dos produtos importados sem nota fiscal.

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Será aqui enfrentada a insegurança jurídica gerada com diferenciados posicionamentos jurisprudenciais sobre o limite da insignificância: valor e circunstâncias subjetivas aferidas.

Destaca-se já no primeiro aspecto, valor, a normatização pela administração fazendária do quantum de tributo sonegado que autoriza o interesse estatal na execução fiscal, como é o caso da Lei 10.522/02 e da Portaria 75/2012 do Ministério da Fazenda.

Será como método de exame analisado sinteticamente o estado do debate acadêmico do tema do crime de descaminho e do princípio da insignificância, passando-se a sistematizar as conclusões jurisprudenciais sobre o tema nas cortes excepcionais: o Supremo tribunal Federal-STF e, especialmente, o Superior tribunal de Justiça-STJ - 94 acórdãos encontrados na pesquisa eletrônica do tribunal com as expressões "princípio e insignificância e descaminho".

2. O crime de descaminho

Previsto no art. 334 do Código Penal (BRASIL, 1949), o descaminho é tipificado pelo ato de iludir, no todo ou em parte o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria.

Bitencourt (2010, p. 251) leciona que o descaminho caracteriza o contrabando impróprio, em razão da importação ou exportação ser de mercadoria permitida, com a frustração do pagamento do imposto ou direito correspondente. Salienta, então, a característica e natureza fiscal do delito:

O descaminho, por sua vez, é, fundamentalmente, um ilícito de natureza fiscal, lesando somente o erário público - particularmente a aduana nacional -, constituindo, numa linguagem não técnica, um "contrabando contra o fisco". A simples introdução no território nacional de mercadoria estrangeira sem pagamento dos direitos alfandegários, independente de qualquer prática ardilosa visando iludir a fiscalização, tipifica o crime de descaminho.

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Realmente, a tutela da indústria nacional e da saúde é de menor relevo frente ao controle fiscal. Se pode alterar-se o parâmetro do tributo de importação pela espécie da mercadoria (tutela do interesse nacional no seu ingresso no país), ao fim o resultado é meramente tributário. Daí porque é o fisco quem acaba por definir a apreensão e perdimento das mercadorias, realiza a execução fiscal ou a releva.

Clara é, já como elementar do tipo, a exigência de ilusão, de procedimento fraudulento ou de engano. Daí porque Massom (2011, p. 751) ressalta a diferença para a simples omissão tributária:

No descaminho o núcleo do tipo é iludir, ou seja, enganar, ludibriar, frustrar o pagamento de tributo devido pela entrada ou saída de mercadoria do território nacional. Iludir traz a ideia de fraude: o sujeito se vale de um meio enganoso para dar a impressão, perante as autoridades fiscais, de não praticar conduta tributável.

Portanto, se o agente simplesmente deixa de recolher os tributos devidos pela entrada ou saída de mercadoria permitida no território nacional, sem se valer de meio fraudulento, estará concretizado um mero ilícito tributário, e não o crime de descaminho.

E também assim comenta Capez (2011, p. 587):

Entendemos que não basta a entrada ou saída da mercadoria sem o recolhimento do imposto devido, sendo necessário o emprego de algum meio, fraudulento ou não, destinado a iludir a autoridade alfandegária. Com efeito, o tipo emprega o verbo iludir, que significa enganar, frustrar, lograr, burlar, não sendo suficiente a mera omissão no recolhimento do tributo. tivesse a lei empregado o termo elidir, que significa suprimir, aí sim seria suficiente o comportamento omissivo.

Ocorre que as condutas de ilusão são de amplo espectro. Desde a entrada no país sem declarar mercadoria importada (pela simples omissão) ao contrato fraudulento registrando importação de merca-doria diversa (para reduzir a tributação incidente), tem-se a ilusão de

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tributos. A simples omissão tributária acaba em regra por confirmar procedimento ilusório de tributos - ao menos por mentira ante o dever de informar.

Além do aspecto fiscal, Bitencourt (2010, p. 260), porém, não se confunde o descaminho com os crimes contra a ordem tributária, pois é tratado como tutelador da soberania estatal, da autodeterminação do estado, da segurança nacional em seu mais amplo sentido, além da proteção ao erário público. O bem jurídico protegido é a administração pública, como previsto no título XI, capítulo II, do Código Penal.

A consumação do crime de descaminho dá-se no instante em que ultrapassada a barreira fiscal, quando vencida a fiscalização alfandegária pelas vias ordinárias, ou, valendo-se o agente de meios clandestinos, no momento em que são transpostas as fronteiras do Brasil, conforme assevera Massom (2011, p. 754).

No parágrafo primeiro do art. 334 do CP, têm-se formas equiparadas ao crime de descaminho.

A primeira delas é a navegação de cabotagem, fora dos casos permitidos por lei. Segundo Gonçalves (2011, p. 762), a navegação de cabotagem tem a finalidade de realizar o comércio entre portos de um mesmo país. Assim, constitui crime a prática desta fora dos casos permitidos em lei. A Lei 9.432/97 disciplina a matéria.

A segunda forma equiparada é da previsão em lei especial de fato definido como descaminho.

A terceira forma equiparada é de uso comercial ou industrial da mercadoria introduzida no país fraudulenta ou clandestinamente, ainda que a introdução tenha sido realizada por terceira, mas conhecido esse fato. Neste caso, tem-se figura típica própria, pois somente pode ser autor do crime o comerciante ou industrial, aquele que desenvolve essas atividades com habitualidade, profissional e formalmente. Ocorre que, no parágrafo segundo do mesmo artigo, vem o legislador a ampliar o conceito de atividade comercial para abarcar também qualquer forma de comércio irregular ou clandestino de mercadorias estrangeiras, mesmo quando exercido em residência - ainda assim exigida a habitualidade.

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Assim, no descaminho pelo uso em atividade mercantil, formal ou informal, exige-se o dolo de utilização de mercadoria que sabe descaminhada e a habitualidade.

A quarta e última forma equiparada é a receptação de mercadoria de procedência estrangeira, no exercício de atividade comercial ou industrial, sem a documentação legal ou mesmo documentação falsa, conhecendo o agente da falsidade. É figura penal especial de receptação, pelo crime certo anterior (descaminho) e qualidade do agente (comer-ciante ou industrial).

também no descaminho por receptação incide a ampliação do mencionado parágrafo segundo do mesmo artigo, para abranger também o comércio informal.

O crime de descaminho, no parágrafo terceiro do art. 334 do Código Penal, contempla forma de majoração da pena, em dobro, para o caso do transporte da mercadoria ocorrer por meio aéreo, marítimo ou fluvial. A justificativa para o aumento de pena vincula-se ao fato da maior dificuldade de fiscalização da conduta nas formas de transporte listadas. Não obstante, no caso de transporte aéreo, há interpretação de que o aumento apenas deve incidir no caso do transporte clandestino, pois, para o transporte regular por meio de companhias devidamente estabelecidas, o controle estatal é mais rígido, conforme leciona...

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