Liberdade como antipoder

AutorPhilip Pettit
CargoProfessor do Departamento de Ciência Política da Princeton University (Princeton, New Jersey).
Páginas11-50
Artigo
Liberdade como antipoder*
Philip Pettit**
Introdução
Existe uma associação tradicional e vigorosa entre ser livre e não
ser dominado, ou subjugado, por alguém: não estar sob o jugo
do poder de outrem, não estar suscetível e sem defesa à interferência
de uma outra pessoa. O contrário da pessoa liber, ou livre, no uso
republicano romano, era o servus, ou escravo, e até pelo menos o
começo do século passado a conotação dominante de liberdade,
enfatizada na longa tradição republicana, era não ter de se viver
em servidão a outrem: não estar sujeito ao poder arbitrário de uma
outra pessoa.1 O autor do tratado oitocentista Cartas de Catão2
* Publicado originalmente em Ethics, n.106, 1996, pp. 576-604 (Pettit, P. Freedom
as Antipower. Copyright © (1996) by The University of Chicago). Agradecemos
a The University of Chicago pela autorização para tradução e publicação.
Tradução de Gustavo Althoff e Luiz Henrique Queriquelli.
** Professor do Departamento de Ciência Política da Princeton University (Prin-
ceton, New Jersey).
Nota do autor: Agradeço a Richard Arneson, John Braithwaite, Geoffrey Brennan,
Susan Dodds, John Ferejohn, Moira Gatens, Bob Goodin, Barry Hindess, Ian Hunt,
Duncan Ivison, Charles Larmore, Doug Maclean, Mark Philp, Michael Smith,
David West, Susan Wolf, e a dois pareceristas anônimos pelos proveitosos co-
mentários feitos à versão anterior do artigo. Agradeço especialmente a Quentin
Skinner, que comentou aquela versão quando foi apresentada no Humanities
Research Centre, na Australian National University. O artigo foi finalizado após
ter sido apresentado em algumas conferências na University of Auckland, e
aprendi muito com as discussões que se teve nessas oportunidades.
1 Orlando Patterson, Freedom in the Making of Western Culture (New York:
Basic, 1991); Philip Pettit, “Negative Liberty, Liberal and Republican,”
European Journal of Philosophy 1 (1993): 15-38.
2 Cato’s Letters, ed. J. Trenchard and T. Gordon, 6th ed. (New York: Da Capo,
1971), vol. 2, p. 249.
12 p. 11 – 50
Volume 9 – Nº 16 – abril de 2010
expressou esse ponto de maneira sucinta: “Liberdade é viver de
acordo com os seus próprios termos; escravidão é viver à simples
mercê de outrem.”3 Esse refrão foi adotado com particular ênfase
na segunda parte do século XVIII, quando foi ecoado pelos líderes
e paladinos da Revolução Americana.4
O antônimo de liberdade deixou de ser subjugação ou do-
minação – deixou de ser a suscetibilidade indefesa à interferência
alheia – e, em vez disso, passou a ser a interferência real. De acordo
com a maior parte do pensamento contemporâneo não há perda
de liberdade sem interferência real: não há perda de liberdade em
função de se estar tão-somente suscetível à interferência. E não há
interferência real – nenhuma interferência, nem mesmo a de um
estado de direito não subjugador – sem alguma perda de liberdade:
“Toda restrição, enquanto restrição, é um mal”, assim expressou
John Stuart Mill a ortodoxia emergente.5
Neste artigo, desejo explorar o efeito exercido sobre nossa
conceitualização de liberdade ao permanecermos com a tradição
mais antiga – a tradição republicana, tal como a vejo6 – e tomarmos
3 N.T.: As traduções de excertos de textos citados por Pettit – como este, de
‘Cato’s Letters’ – não são de nenhuma edição em língua portuguesa existente;
foram feitas por Gustavo Althoff. Por esse motivo, todas as indicações de obras
citadas são as mesmas oferecidas no artigo original.
4 John Phillip Reid, The Concept of Liberty in the Age of the American Revolution
(Chicago: University of Chicago Press, 1988), p. 38.
5 John Stuart Mill, On Liberty, ed. H. B. Acton (London: Dent, 1972), chap. 5;
cf. William Paley, The Principles of Moral and Political Philosophy, vol. 4 of
Collected Works (London: Rivington, 1825), p. 355.
6 Em minha opinião, a liberdade como antipoder é uma noção republicana de
liberdade e não uma noção liberal ou libertária particular – apesar de que não
defenda tal alegação neste texto. Conferir John Braithwaite and Philip Pettit, Not
Just Deserts: A Republican Theory of Criminal Justice (Oxford: Oxford University
Press, 1990); Pettit, “Negative Liberty”; Philip Pettit, “The Civil Republic” (Australian
National University, 1995); Quentin Skinner, “Machiavelli on the Maintenance of
Liberty,” Politics 18 (1983): 3-15; Quentin Skinner, “The Idea of Negative Liberty,”
in Philosophy in History, ed. R. Rorty, J. B. Schneewind, and Q. Skinner (Cambridge:
Cambridge University Press, 1984); Quentin Skinner, “Pre-humanist Origins of
Republican Ideas,” and “The Republican Ideal of Political Liberty,” in Machiavelli
and Republicanism, ed. G. Brock, Q. Skinner, and M. Viroli (Cambridge: Cambridge
University Press, 1990); Cass R. Sunstein, “The Enduring Legacy of Republicanism,”
in A New Constitutionalism: Designing Political Institutions for a Good Society,
ed. S. E. Elkin and K. E. Soltan (Chicago: University of Chicago Press, 1993).
13
p. 11 – 50
Philip Pettit
Liberdade como antipoder
Artigo
a subjugação, a suscetibilidade indefesa à interferência, em vez da
interferência real, como o antônimo de liberdade. Desejo investigar
exatamente como devemos vir a pensar sobre a liberdade se a en-
tendermos como a emancipação da dominação que é paradigmatica-
mente exemplificada pela escravidão mas que pode ser encontrada
de forma menos dramática numa variedade de outras relações.
O artigo divide-se em três seções. Na primeira seção, examino
o que significa um agente ter poder sobre um outro e subjugar, ou
dominar, esse outro. Na segunda, examino aquilo que poderia pro-
mover a emancipação de tal poder, estabelecendo o termo contras-
tante apropriado: o que poderia promover o ‘antipoder’, tal como
o chamo. Em seguida, na terceira seção, considero a possibilidade
de entendermos a liberdade como nada mais, nada menos do que
antipoder: mostro como esse ideal marca um contraponto sutil
com relação à liberdade como não-interferência e comento sobre
as suas diferentes implicações, em particular sobre as implicações
relevantes em seu desenvolvimento histórico.
De que forma a liberdade como antipoder comporta-se re-
lativamente à conhecida dicotomia entre os conceitos positivo e
negativo de liberdade?7 De acordo com a liberdade negativa, sou
livre, diz Berlin, “na medida em que nenhum ser humano interfere
em minhas atividades”. De acordo com a liberdade positiva, sou
livre na medida em que atinjo “o autogoverno – com sua insinuação
de um homem dividido contra si mesmo.”8 Segundo a concepção
de liberdade como antipoder, sou livre na medida em que nenhum
ser humano tenha poder para interferir em mim: na medida em
que nenhuma outra pessoa seja o meu senhor, mesmo se me faltar
a vontade e a sabedoria necessárias para alcançar o autogoverno.
Tal definição é negativa visto que deixa minhas próprias realizações
de lado e põe em foco a eliminação de algum perigo ocasionado
por outrem. Mas essa definição é diferente da definição negativa
de Berlin – se se preferir, ela se vincula à alternativa positiva – visto
7 Benjamin Constant, Constant: Political Writings, ed. B. Fontana (Cambridge:
Cambridge University Press, 1988); Isaiah Berlin, Two Concepts of Liberty
(Oxford: Oxford University Press, 1958).
8 Berlin, pp. 7, 19.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT