Lei da Liberdade Econômica. Tendências e Desafios no Novo Marco Regulatório da Livre Iniciativa

AutorValter Shuenquener de Araujo
Ocupação do AutorProfessor Associado de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da UERJ
Páginas40-50
Transformações do Direito Administrativo: Liberdades Econômicas e Regulação
40
Lei da Liberdade Econômica. Tendências
e Desafios no Novo Marco Regulatório
da Livre Iniciativa
Valter Shuenquener de Araujo64
1. Uma Nova Forma de Pensar a Livre Inciativa
Em 20 de setembro de 2019, a Medida Provisória (MP) nº
881/2019 foi convertida na Lei nº 13.874/2019, Lei de Liberdade
Econômica, despontando como uma luz no fim do túnel em um
período marcado por uma superposição e irracionalidade no con-
trole estatal da atividade econômica e por índices pouco favorá-
veis na economia brasileira, marcados pelos níveis de desemprego
elevados65, o baixo crescimento do Produto Interno Bruto (PIB)66,
os números crescentes de emigração provocados pela insatisfação
com a economia brasileira e com o futuro do país
67
, os custos de
transação para o desempenho de uma atividade empreendedora em
patamares desanimadores dentre outras circunstâncias adversas.
Em 2017, o Brasil figurava na posição 120 de um total de 162 países
no relatório de 2019 da Liberdade Econômica Mundial do Instituto
Fraser. No item alusivo à área da regulação, o Brasil ocupa a penúl-
tima pior posição
68
. O ambiente de negócios não é bom. De acordo
com o Doing Business, publicado anualmente pelo Banco Mundial e
64 Professor Associado de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da UERJ. Mestre e
Doutor em Direito Público pela UERJ. Juiz Federal. Conselheiro do CNMP (2015-2020).
65 De acordo com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD
Contínua) divulgada pelo IBGE, a taxa de desemprego no Brasil foi de 11,8% no trimestre
encerrado em agosto de 2019. IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua
– PNAD Contínua. Nov. 2019. Disponível em:
sociais/populacao/9171-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios-continua-mensal.
html?=&t=destaques>. Acesso em: 12 nov. 2019.
66 Em 2018, o crescimento do PIB brasileiro foi de 1,1%. GAZETA DO POVO. PIB do Brasil: histórico
e evolução em gráficos. 29 abr. 2019. Disponível em:
br/economia/pib-do-brasil/>. Acesso em: 12 nov. 2019.
67 Em 2014, houve 12.520 declarações de registro de saída definitiva do país, número que se
elevou para 23.149 em 2018. OLIVEIRA, Ana Luíza Matos de. Declarações de saída definitiva
do Brasil já superam números de 2018. Fundação Perseu Abramo, 29 ago. 2019. Disponível
em:
superam-numeros-de-2019/>. Acesso em: 20 nov. 2019.
68 GWARTNEY, James; LAWSON, Robert; HALL, Joshua; MURPHY, Ryan. Economic freedom of
the World. Canada: Fraser Institute, 2019. Disponível em:
sites/default/files/economic-freedom-of-the-world-2019.pdf>. Acesso em: 14 nov. 2019.
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que estima as normas de um país que interferem nas atividades das
empresas, o Brasil se encontra na 124ª de um total de 190 países69.
Nesse contexto, e com o espírito de melhorar o desempenho
da economia e o regime jurídico a que o empresariado brasileiro
está submetido, as ideias nucleares do novo texto foram as de
desburocratização, simplificação dos requisitos para o desempe-
nho de uma atividade econômica e, sobretudo, a mudança de
paradigma em relação ao modo como o Estado brasileiro encara a
livre inciativa. Em lugar de o particular ficar à mercê dos tradicio-
nais abusos regulatórios estatais que inviabilizam o desempenho
de grande parte das atividades econômicas, aposta-se em uma
salutar inversão de valores amparada no princípio constitucional
da livre inciativa. Com a nova lei, há reforço da noção de que as
restrições ao livre desempenho de atividades econômicas devem
ser excepcionais, fundamentadas e, sobretudo, proporcionais
70
. A
livre iniciativa ganha um novo papel e assume um protagonismo
ímpar e pioneiro na cultura jurídica brasileira. Prestigia-se, assim,
o pensamento de George Stigler de que “o Estado – a máquina
e o poder do Estado – é uma potencial fonte de recursos ou de
ameaças a toda atividade econômica na sociedade71”.
O surgimento desse novo marco regulatório se dá em um con-
texto em que o ordenamento jurídico brasileiro já protegia, com
regulamentação detalhada, os mais diversos princípios da ordem
econômica, tais como o meio ambiente, o consumidor, as empresas
de pequeno porte e a função social da propriedade. A livre iniciativa
estava esquecida e o empreendedor ainda sofria (e sofre), sobre-
maneira, com regras jurídicas que apenas tutelam os interesses de
terceiros nas suas relações jurídicas. Segundo Fábio Ulhoa Coelho,
“até 30 de abril de 2019, quando foi editada a Medida Provisória,
69 Disponível em:
464814402.pdf>. Acesso em: 14 nov. 2019.
70 Na definição de Rolf Stober, “a liberdade do indivíduo pode ser limitada apenas na medida
em que seja indispensável ao interesse do bem comum”. No original: “darf die Freiheit des
einzelnen nur soweit eingeschränkt werden, als es im Interesse des Gemeinwohls unabdingbar
ist”. STOBER, Rolf. Witshcaftsverwaltungsrecht. 10. Auflage. Stuttgart: Kohlhammer, 196. p. 93.
71 STIGLER, George J. A Teoria da regulação econômica. In: MATTOS, Paulo (Coord.); PRADO,
Mariana Mota; ROCHA, Jean Paul Cabral Veiga da; COUTINHO, Diogo R. e OLIVA, Rafael
(Orgs.). Regulação econômica e democracia. O debate norte-americano. São Paulo: Editora
34, 2004. p. 23.
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42
deu-se origem à Lei 13.874/19, o princípio da ‘livre iniciativa’ era um
dos que não dispunham de concretude no plano legal72”.
A Lei da Liberdade Econômica surge em um cenário recheado
dos mais variados preceitos normativos que, no afã de proteger,
por exemplo, o consumidor ou o meio ambiente, acabam por impor
deveres desproporcionais ao fornecedor de um produto ou serviço,
sem que o empresariado tivesse, a seu favor, uma regra legal capaz
de também tutelar a produção de riqueza.
A Lei nº 13.874 altera paradigmas e posiciona a livre iniciativa
e a livre concorrência em um patamar mais elevado, abandonando
a lógica de que o Estado deve consentir para que toda e qualquer
atividade econômica seja explorada pelo particular. Uma lei em
harmonia com o que se defende contemporaneamente na doutrina
de André Saddy:
(...) a função basilar da defesa da livre concorrência
não é reprimir práticas econômicas, e sim estimular
todos os agentes econômicos a participarem do es-
forço do desenvolvimento. (...) as restrições que pos-
sam ser criadas ao princípio da livre iniciativa têm ca-
ráter absolutamente excepcional e somente podem
emergir das hipóteses expressamente previstas na
Constituição ou implicitamente autorizadas por ela73.
2. Tendências
A Lei nº 13.874 tem como principal virtude inaugurar algumas
tendências positivas quanto ao modo como o Direito brasileiro
deve organizar, regular e incentivar o desempenho de atividades
econômicas.
Uma nítida tendência que surge com a aprovação do novo mar-
co regulatório da liberdade econômica é a da crença (salutar) de
que a criação de um ambiente normativo favorável para a economia
e o empreendedorismo depende da alteração do regramento e da
72 COELHO, Fábio Ulhoa. Uma Lei Oportuna e Necessária. In: GOERGEN, Jerônimo (Org.).
Liberdade econômica. O Brasil livre para crescer. Coletânea de artigos jurídicos, 2019. p. 28.
73 SADDY, André. Formas de atuação e intervenção do Estado brasileiro na economia. 3. ed. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2018. p. 95 e 105.
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lógica tradicional das mais diversas disciplinas do Direito. Não foi
por outra razão que a Lei nº 13.874 alterou regras alusivas ao Direi-
to do Trabalho, Consumidor, Direito Civil, poder de polícia, dentre
outras. Trata-se, assim, de uma mudança estrutural no Direito que
impacta os seus mais variados ramos e institutos
74
. Liberdade ampla
para empreender é resultado que só pode ser alcançado quando
o Direito Público e o Privado estão sintonizados. Mudanças estru-
turais no modelo regulatório da economia dependem, no dizer de
Susan Rose-Ackerman, de “um esforço amplo e cooperativo dos
economistas, advogados e cientistas políticos para reformar o di-
reito administrativo75”.
Nessa perspectiva, exsurge uma nova ideia de que o princípio
da livre iniciativa justifica a criação de uma espécie de norma geral
sobre a matéria capaz de interferir nos mais diversos campos do
Direito e de produzir efeitos em relação a todos os entes da fede-
ração. Tal como ocorreu com a Lei nº 13.655 (LINDB), a existência
de uma norma geral sobre determinado tema facilita o seu alcance
horizontal e vertical. Horizontal, porque facilita a legitimação da
reestruturação normativa de inúmeros setores do Direito (Trabalho,
Consumidor, Civil, Administrativo etc.). Vertical, porque contribui
para o convencimento de que a norma precisa alcançar os mais
distintos entes da federação.
E essa nova abordagem implica outra tendência, qual seja a de
concentração de competências nas mãos da União. É inegável que a
Lei nº 13.874, a pretexto de regular matéria de Direito Econômico, em
que há competência legislativa concorrente (art. 24, inciso I, da Consti-
tuição da República Federativa do Brasil – CRFB), deixou com a União
competências que eram tradicionalmente objeto de preocupação dos
municípios. O interesse local cede para o interesse nacional de tutela
da livre iniciativa. Um passo importante para a estratégia estatal de
74 De acordo com Richard Posner, “leis penais, legislação de direitos civis, redefinição de
distritos eleitorais, e outras regulações ‘não econômicas’ afetam o bem-estar econômico”.
POSNER, Richard A. Teorias da regulação econômica. In: MATTOS, Paulo (Coord.); PRADO,
Mariana Mota; ROCHA, Jean Paul Cabral Veiga da; COUTINHO, Diogo R. e OLIVA, Rafael
(Orgs.). Regulação econômica e democracia. O debate norte-americano. São Paulo: Editora
34, 2004. p. 71.
75 ROSE-ACKERMAN, Suse. Análise econômica progressista do direito – e o novo direito
administrativo. In: MATTOS, Paulo (Coord.); PRADO, Mariana Mota; ROCHA, Jean Paul Cabral
Veiga da; COUTINHO, Diogo R. e OLIVA, Rafael (Orgs.). Regulação econômica e democracia.
O debate norte-americano. São Paulo: Editora 34, 2004. p. 249.
Transformações do Direito Administrativo: Liberdades Econômicas e Regulação
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tutela desse princípio, mas que certamente originará conflitos por dis-
puta de competências. Como exemplo deste risco, podemos lembrar
que o art. 3º, §1º, incisos I e II, da Lei da Liberdade Econômica estipula
que um ato do Poder Executivo federal ou uma resolução do CGSIM76
disporá sobre a classificação de baixo risco, o que será observado
por todos os entes da federação, ainda que não tenham aderido à
REDESIM77. Quanto à matéria, o novo preceito certamente originará
questionamentos no que diz respeito à eventual ofensa à autonomia
dos entes da federação, bem como acerca dos limites e possibilidades
da expressão “Direito Econômico”.
Percebe-se, então, a tendência de proliferação de “super leis”.
Leis que, diante do reconhecimento de que temas relevantes para
a sociedade não podem depender da aprovação de 26 estados, do
Distrito Federal e de 5.570 municípios, concentram competências na
União para a criação de um ambiente normativo uniforme, previsível e
mais simples. Um novo modo de se enxergar o federalismo brasileiro.
Uma característica que pode ser percebida na nova lei é a da
sua aposta no governo digital e na tecnologia para a simplificação
e eficiência. Exemplo dessa preocupação são as regras da lei que
preveem a digitalização de documentos, tal como os seus arts. 10 e
18. Os documentos digitalizados de acordo com a legislação terão
o mesmo valor probatório que o original.
Outra tendência que se inaugura com a Lei da Liberdade Eco-
nômica é a de contenção da edição de atos estatais arbitrários, des-
proporcionais e criadores de exigências descabidas, na medida em
que serão considerados exemplos de abuso do poder regulatório.
O art. 4º da Lei nº 13.874 prevê quais condutas da Administração
Pública serão consideradas abusos do poder regulatório. A pioneira
previsão deve ser elogiada e provocará estímulos positivos, espe-
cialmente no que se refere ao desenvolvimento de novas tecnolo-
gias. Merece destaque, nesse aspecto, o inciso IV do referido artigo,
que considera abuso de poder regulatório redigir enunciados que
impeçam ou retardem a inovação e a adoção de novas tecnologias.
76 Comitê para Gestão da Rede Nacional para Simplificação do Registro e da Legalização de
Empresas e Negócios.
77 Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios.
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Uma marcante característica da Lei da Liberdade Econômica é a
de estimular a inovação e as novas tecnologias, apoiando a existência
de ambientes competitivos e orientados por uma regulação assimétri-
ca. Aposta-se, em expressão suscitada por Reinhold Zippelius: “uma
espécie de gestão experimental do futuro, para a qual todo o planeja-
mento e toda a regulação são, por princípio, incompletos78”. Nos ter-
mos do novo diploma, o Estado não deve proibir o ingresso de novos
competidores nem impedir ou retardar a entrada de novas tecnologias.
No dizer de André Saddy, “pela livre iniciativa, assegura-se a todos o
direito de ingressarem no mercado, mas não se torna certo o direito
de todos o fazerem sob iguais condições”. 79 Nesse contexto, há uma
perspectiva de expansão da competição entre agentes econômicos
submetidos aos mais variados regimes jurídicos, o que incrementa a
complexidade da função regulatória. Um avanço necessário.
3. Desafios do Novo Marco Regulatório da
Livre Iniciativa
Toda norma jurídica que altera drasticamente o modo como a
sociedade se relaciona com o Estado se depara com desafios para
a sua plena efetividade. Por mais que as novidades sejam boas,
ninguém está preparado para perder poder, competências e para
reestruturar, no curto espaço de tempo, o modo de pensar e agir
da Administração Pública brasileira.
Nesse contexto, uma das novidades da Lei da Liberdade econô-
mica, e que pode originar alguns desafios, é a dispensa de consenti-
mento estatal prévio para o desempenho de atividades econômicas
de baixo risco80. Medida salutar que inverte a lógica perversa, até
então predominante, de que o particular só pode realizar qualquer
atividade econômica após o consentimento estatal. Agora, se a
78 ZIPELIUS, Reinhold. Teoria geral do Estado. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
1997. p. 467.
79 SADDY, op. cit., p. 90.
80 De acordo com o art. 3º, I, da Lei 13.874/2019, incumbe ao Poder Executivo federal dispor
sobre a classificação de atividades de baixo risco a ser observada na ausência de legislação
estadual, distrital ou municipal específica. Por sua vez, o inciso III do mesmo artigo prevê que
na hipótese de existência de legislação estadual, distrital ou municipal sobre a classificação
de atividades de baixo risco, o ente federativo que editar ou tiver editado norma específica
encaminhará notificação ao Ministério da Economia sobre a edição de sua norma. Estas
atividades estão hoje listadas na Resolução CGSIM 51/2019.
Transformações do Direito Administrativo: Liberdades Econômicas e Regulação
46
atividade for de baixo risco, haverá dispensa do alvará para fun-
cionamento, o que a lei denominou de ato público de liberação da
atividade econômica. No caso da atividade de baixo risco, quem
deve primordialmente controlar o empreendedor não é o Estado,
senão o próprio consumidor, que evitará adquirir produtos e servi-
ços de quem não atua com qualidade e eficiência.
A dispensa desse consentimento não gera, por outro lado, uma
imunidade fiscalizatória ao longo do desempenho da atividade
econômica. E, quanto a este tema, podemos ter, ao menos, duas
dificuldades. A primeira, alusiva ao desafio de se fazer, em uma so-
ciedade dinâmica e complexa como a atual, uma listagem de todas
as atividades de baixo risco, o que torna imprescindível o caráter
exemplificativo da enumeração. A segunda decorre do problema
que pode surgir pelo fato de o empreendedor exercer sua ativida-
de sem o alvará e depois ser surpreendido com uma fiscalização
rigorosa com exigências antes desconhecidas
81
. Para mitigar este
segundo problema, há o art. 23 da Lei nº 13.655 (LINDB – Lei de In-
trodução às Normas do Direito Brasileiro)
82
, que exige a criação de
uma regra de transição na hipótese de imposição de um novo dever.
Outro desafio a ser enfrentado na aplicação na nova lei diz
respeito ao abuso do poder regulatório. A Lei da Liberdade Econô-
mica enumera as condutas tidas como abuso do poder regulatório
e estipula que a Administração Pública tem como dever evitá-lo.
Ocorre que os abusos descritos ao longo dos incisos do art. 4º da
referida lei podem ser resultantes não apenas da atuação do ad-
ministrador, mas, também, de um órgão controlador (v. g.: Tribu-
nal de Contas, Poder Judiciário, Ministério Público etc.). É que, em
razão do que está previsto no art. 21 da LINDB83, também o órgão
81 Vale a observação no sentido de que, mesmo quando se exigia o alvará para o início de uma
atividade econômica, a fiscalização estatal durante o desempeno da atividade era, como regra,
escassa e, quando ocorrida, o empreendedor também era frequentemente surpreendido com
exigências desconhecidas.
82 Art. 23 – A decisão administrativa, controladora ou judicial que estabelecer interpretação
ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo
condicionamento de direito, deverá prever regime de transição quando indispensável para
que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional,
equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais.
83 Art. 21 – A decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a
invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de
modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas.
Lei da Liberdade Econômica. Tendências e Desafios no Novo Marco Regulatório da Livre Iniciativa 47
controlador terá a função de regular/dispor sobre a solução para o
caso concreto. Será que, por exemplo, o abuso do poder regulatório
poderá decorrer de uma decisão judicial que invalida uma norma de
Direito Econômico em um caso concreto e apresentar uma solução
(consequência jurídica e/ou administrativa) que se encaixa em um
dos perfis contidos nos incisos do art. 4º da Lei nº 13.874? Não se
percebe qualquer razão para a negativa desse reconhecimento.
Sob outro enfoque, embora o caput do art. 4º da Lei da Liber-
dade Econômica não seja muito claro, o abuso do poder regulatório
também deveria ser declarado caso tenha origem em um ato oriun-
do do Poder Legislativo. Além de o Legislador também se vincular à
referida lei, uma lei local pode originar referido abuso, ao pretender
regulamentar “norma pública pertencente à legislação” sobre a qual
Lei nº 13.874 versa. Assim, um grande desafio a ser enfrentado será
o de identificar as autoridades que podem praticar abuso do poder
regulatório nas hipóteses do art. 4º da Lei da Liberdade Econômica.
Outra novidade merece atenção. A regra contida no art. 3º, inciso
IX, da nova lei prevê a aprovação tácita do requerimento de edição
de atos públicos de liberação de atividade econômica, ressalvados os
casos legalmente previstos. Esta aceitação tácita, que interage com
a presunção de boa-fé do particular realçada pela lei como princípio,
ocorrerá se a Administração não decidir no prazo por ela fixado e
informado ao particular. O problema é que a maioria dos entes da
federação não possui regras muito claras sobre o prazo que a Ad-
ministração tem para decidir sobre requerimentos de particulares, e
isso pode esvaziar o propósito da previsão de aprovação tácita. Há
o risco, que não é diminuto, de a Administração se comprometer em
decidir por prazos muito longos, desproporcionais. O desafio aqui
será, portanto, encontrar alguma solução para dar efetividade à regra
da aprovação tácita, seja mediante a invocação da proporcionalidade
ou através da aplicação subsidiária do art. 49 da Lei nº 9.784/99, que
impõe o dever de decidir em um prazo certo84.
Um adicional desafio decorre do art. 3º, IV, da Lei da Liberdade
Econômica. O aludido preceito estipula que o particular terá direito
84 Art. 49. Concluída a instrução de processo administrativo, a Administração tem o prazo de
até trinta dias para decidir, salvo prorrogação por igual período expressamente motivada.
Ao editar a Súmula 633, o STJ reconheceu a possibilidade de emprego subsidiário da Lei nº
9.784/99 naqueles casos em que o ente não possuir lei específica sobre o tema.
Transformações do Direito Administrativo: Liberdades Econômicas e Regulação
48
de receber tratamento isonômico da Administração quanto às de-
cisões sobre atos de liberação de atividade econômica. A regra é
valiosa, pois vincula a Administração em relação a interpretações
pretéritas sobre uma mesma situação, impedindo que se viole a
isonomia. Por outro lado, a Administração não pode ser obrigada
a repetir um ilícito. Se uma decisão anterior for considerada ilegal,
o particular que se encontrar em situação idêntica não pode exigir
que a Administração o beneficie da mesma forma. Não há direito
à igualdade no ilícito (Gleichheit im Unrecht). O desafio será o de
identificar quando a nova interpretação poderá impedir um trata-
mento isonômico, por se tratar de uma nova exigência de conforma-
ção à legalidade, e quando a nova orientação não poderá desprezar
o entendimento anterior sobre o tema.
4. Conclusões
Inquestionavelmente, a Lei nº 13.874 representa um significa-
tivo avanço no processo civilizatório brasileiro, ao garantir que as
pessoas tenham, como corolário da autonomia da vontade e do
desenvolvimento da personalidade, o direito de empreender com
regras mais simples, justas e proporcionais. Elogiável o esforço da
União de assumir o protagonismo na indução da desburocratização
e do estímulo à livre iniciativa.
Estamos diante de um novo marco regulatório que caminha
junto e dialoga com leis modernas, como a LINDB, que são capazes
de reconhecer a importância da tutela do indivíduo e não, apenas,
os, muitas vezes, abstratos e imprecisos interesses da coletividade.
E, no caso da livre iniciativa, o novo olhar para a tutela do cidadão
produzirá riqueza e consequentemente a melhoria das condições
gerais da coletividade.
Nas perspectivas cultural, sociológica, filosófica, econômica e
jurídica, há um grande descompasso entre a realidade brasileira e
o que a nova lei prevê. E, nessa altura, fica o maior receio de que as
transformações positivas que decorrem da Lei da Liberdade Eco-
nômica originem um backlash fruto de uma desinformação sobre o
alcance de seus dispositivos. Em lugar de maior liberdade, teríamos
o indesejável efeito de novas leis e interpretações mais rigorosas e
burocráticas, especialmente no âmbito local.
Lei da Liberdade Econômica. Tendências e Desafios no Novo Marco Regulatório da Livre Iniciativa 49
A profunda reestruturação da atividade econômica que a Lei
nº 13.874 propõe, incentivando, por exemplo, a convivência de
agentes econômicos em um ambiente de assimetria regulatória,
certamente originará conflitos com aqueles habituados à lógica
burocrática. É o que se espera de toda norma jurídica que acarreta
alterações profundas nas relações de poder e econômicas, mas o
tempo certamente mostrará que a novidade apresenta uma ima-
gem melhor do que a do retrovisor.
5. Referências Bibliográficas
COELHO, Fábio Ulhoa. Uma Lei Oportuna e Necessária. In: GOERGEN, Jerônimo
(Org.). Liberdade econômica. O Brasil livre para crescer. Coletânea de artigos
jurídicos, 2019. p. 28.
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Disponível em:
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of the World. Canada: Fraser Institute, 2019. Disponível em:
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superam números de 2018. Fundação Perseu Abramo, 29 ago. 2019. Disponível
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regulation in 190 economies. Disponível em:
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Acesso em: 14 nov. 2019.
ZIPELIUS, Reinhold. Teoria geral do Estado. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1997. p. 467.

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