Legitimidade concorrente: inexistência de monopólio do sindicato na defesa de interesse de integrantes da categoria

AutorJoselita Nepomuceno Borba
CargoProcuradora do Trabalho, aposentada. Mestre e Doutoranda pela PUC-SP. Professora e Consultora
Páginas128-152

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Introdução

A sociedade experimenta grandes transformações com reflexo no modelo de Estado, que de feição liberal evoluiu para a social. Inseridas num contexto mais abrangente (temporal, espacial e político) as transformações levam à exigência de novo paradigma de Estado para garantir a sociabilidade democrática.

A mudança de perspectiva vem da atual concepção de sujeito, ser sociável, base da estrutura social. O modo subjetivista de pensar e encarar o homem muda: de indivíduo para cidadão. Membro de uma coletividade, o homem cidadão passa a ser titular de direito de cunho humanista, oponível inclusive contra o Estado a quem compete, não só reconhecê-los, mas também implementá-los.

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E na impossibilidade de o indivíduo buscar a tutela de um direito que é seu, e na mesma medida e extensão, de toda a coletividade, a sociedade civil se organiza para, por meio de corpos intermediários, tutelar seus interesses.

A preservação de direitos e interesses de massa leva, portanto, à necessidade lógica de se designar corpos intermediários capazes de buscar a tutela de tais direitos e interesses, tendo o sistema jurídico nacional optado pela especificação e delimitação dessa legitimidade coletiva.

Os sujeitos coletivos têm legitimação prevista na Constituição — verdadeiro "código de conduta" — do qual provém a estrutura e as atribuições de cada órgão ou esfera de poder.

São atribuições constitucionais demarcadas, mas que, pela heterogeneidade dos fatos sociais e pela natureza e extensão dos direitos e interesses, em certa medida, a legitimidade constitucional é concorrente, a exigir cautelosa observância dos limites de atuação de cada ente ou órgão coletivo e em que medida pode vir a compartilhar esse direito de atuar.

Cada qual com sua legitimação. Entretanto, se, por alguma razão, a pessoa coletiva deixa de cumprir com sua missão constitucional o outro que tem legitimidade concorrente pode agir, mesmo porque entre possível monopólio de representação e a preservação de direitos e garantias fundamentais prevalece esse valor maior. Não se concebe, pois, privilégio frente a direitos e garantias constitucionais.

A partir dessa constatação — e levando-se em conta frequente defesa, por parte do sindicato, de exclusividade na defesa de direitos e interesses de integrantes da categoria, mesmo à custa do perecimento de direitos sociais — julgou-se necessário e conveniente uma releitura da regra do art. 8e, III, da Constituição Federal, para se afirmar, em tese1, a inexistência de monopólio do sindicato na defesa de direitos e interesses concretos de integrantes da categoria.

1. Representação

O Estado de Direito Democrático assegura à pessoa direitos e garantias, dentre eles, o de liberdade e de propriedade, competindo a ela

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regular as relações privadas no âmbito de sua autonomia. Essa autodeterminação da pessoa conduz o titular do direito material, sujeito do interesse, à defesa daquilo que lhe pertence, quando há lesão ou ameaça de lesão.

Daí por que, regra geral, o titular do direito material coincide com o titular do direito de defesa. E só excepcionalmente pessoa diversa daquela a quem pertence o interesse em jogo coloca sua atividade a serviço da defesa do interesse de outrem2. Nessa exceção à regra, há "uma cisão entre a causa e o efeito, entre o negócio realizado e suas consequências jurídicas, entre o sujeito da ação ou o da vontade e o destinatário dos efeitos"3.

Evidencia-se aí o instituto da representação. Representar vem do latim representatio e verbo representato4, com significado de apresentar, estar presente. Para Pontes de Miranda, entretanto, presentar e representar possuem acepção diversa, vez que, ordinariamente, os efeitos resultam de atos em que o agente é presente. A regra é a presentação, em que ninguém faz o papel de outrem, isto é, ninguém representa5.

Do ponto de vista semântico, o termo representação carrega consigo6, ao longo dos tempos, mudanças ocorridas por toda a parte. E a essa evolução juntam-se inovações relevantes na sociedade, como a representação da classe trabalhadora e da sociedade de massa por interposta pessoa designada pela lei.

Representação é, portanto, "ato de manifestar vontade, ou de manifestar ou comunicar conhecimento, ou sentimento, ou de receber a manifestação, ou comunicação, por outrem (representado), que passa a ser o figurante e em cuja esfera jurídica entram os efeitos do ato jurídico, que se produz"7. Consiste, pois, em "um negócio em nome doutrem, para na esfera jurídica desse outrem se produzirem os seus efeitos"8.

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Sua principal característica9 repousa na cisão entre o sujeito da ação e o destinatário dos efeitos, de forma que "um indivíduo conclui o negócio e outro recolhe na sua esfera jurídica os efeitos correspondentes"10. Presentes os elementos da representação os efeitos dela se projetam para a esfera jurídica de sujeito diverso do agente. E assim, pela representação, ocorre o fenômeno da extensão da personalidade humana, tornando possível a contratação ou negociação mediante um terceiro11.

A representação pode ser legal ou voluntária. Esta resulta da autonomia da vontade; aquela decorre de expressa determinação de lei, em razão de relevante interesse jurídico. A representação legal ocorre quando está em jogo interesse de incapaz. O poder de agir em nome de pessoa capaz é conferido — como observa Pontes de Miranda — "a fim de subordinar o interesse individual da pessoa capaz a um interesse superior"12. Para o citado jurista, nessa espécie — pessoa capaz — é que se configura a representação do "sindicato para a estipulação de acordos coletivos, ao síndico da massa falida, ao inventariante, ao síndico dos edifícios de apartamentos sob regime de condomínio, ao representante dos debenturistas"13.

A representação legal é própria de pessoas coletivas. A sua necessidade e, por vezes, quem é o representante e quais seus poderes representativos vêm delimitados na lei.

Relativamente à representação das pessoas coletivas, Manuel Domin-gues de Andrade14 apresenta mais uma espécie: a chamada representação orgânica ou constitucional que, por sua vez, distingue-se da representação institucional.

A representação orgânica ou constitucional forma uma categoria autônoma que, na concepção do citado autor, não seria uma verdadeira representação, mas organicidade. O que não muda, no seu entender, é

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sua qualificação como necessária, visto que, pela natureza das coisas, a pessoa coletiva é incapaz de agir por si própria15.

Essa representação orgânica ou constitucional não se confunde com a representação institucional, termo utilizado para designar a representação de interesses de classe de pessoas não organizados em sujeito de direito16, organização e personificação que ocorre com pessoas coletivas. Nessa espécie, insere-se a representação política e a representação de ente público em defesa de interesse da sociedade.

Tal distinção no âmbito da representação legal, na atualidade, notada-mente em defesa de direitos sociais, é essencial em decorrência dos traços característicos que marcam tais direitos e interesses: indeterminação subjetiva e indivisibilidade objetiva e, regra geral, indisponibilidade.

Do fato de não se poder representar pessoas indeterminadas ou substituir a coletividade, surge a legitimação autônoma, como concebido por Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery17. Seria, na verdade, uma legitimação ordinária18, ou, como entende Tereza Alvim19, uma legitimação própria (ou coletiva), ou, ainda, legitimação institucional se o agente for o Ministério Público20.

Especificamente no âmbito das relações coletivas de trabalho ou do direito sindical, defende José Martins Catharino21 a existência de uma representação autônoma, com feição própria, peculiar e exclusiva, a ser exercida pela entidade sindical.

Como se vê, a representação (autônoma, ordinária, própria, institucional ou sindical) viabiliza, independentemente do conteúdo do direito material, a defesa de direitos e interesses relevantes da sociedade, direitos e interesses fundamentais que alicerçam o regime democrático, sem os quais o regime não se sustenta.

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2. Representação judicial

O acesso à justiça para tutelar interesses transindividuais, pelo fato de visar solução de conflitos de massa, tem dimensão social e política, como destacado por Ada Pellegrini Grinover22.

À tutela coletiva não se aplica, porque incompatível, o processo individual clássico23. Para tanto, surge e se consolida novo ramo da ciência processual24— o processo coletivo— com princípios e institutos próprios ou readaptados.

E um dos principais aspectos da diferenciação entre o processo clássico e o novo ramo, segundo Ada Pellegrini Grinover25, está na legitimação26. Trata-se de instituto essencial, inerente a momento culminante na prestação jurisdicional, por meio do qual grupo ou classe de pessoas ou a comunidade têm assegurado um bem da vida lesado ou ameaçado de lesão.

Para se alcançar situação de justiça no âmbito coletivo, segundo a doutrina pioneira de Mauro Cappelletti e Bryant Garth27, a defesa dos direitos ou interesses antes não representados ou mal representados, necessita

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ultrapassar não só barreiras de natureza econômica28 e dificuldades em proporcionar representação jurídica de tais...

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