A legitimacao da autoridade secular e a teorizacao do "Direito de Resistencia" na filosofia da Reforma Protestante/The legitimation of secular authority and the theorization of "civil desobedience" in reformist philosophy.

Autorde Albuquerque, Adriana Reis
  1. Introducao

    O conceito de desobediencia civil, com esta denominacao, aparece normalmente atrelado a texto escrito por Henry Thoureau que, em sua classica obra Desobediencia Civil, de 1849, sustenta que o cidadao, por objecao de consciencia, pode legitimamente decidir por nao cumprir leis que repute injustas, uma vez que sua unica obrigacao seria fazer a qualquer momento aquilo que julgasse correto. A desobediencia civil, por sua vez, nada mais e que especie do genero "direito de resistencia", instituto ha muito presente na Historia e cuja importancia contemporanea ainda e evidente, a luz dos acima mencionados exemplos de seu emprego recente.

    A maioria dos estudos voltados para a trajetoria historica do "direito de resistencia", ao tratar da Idade Media e do inicio da Idade Moderna, se debruca tao somente sobre as ideias de Sao Tomas de Aquino e, posteriormente, Locke, Hobbes e Rousseau, promovendo um salto no exame do periodo que envolveu o desabrochar e adensamento da reforma protestante, como se nada de relevante, sob os pontos de vista politico e legal, tivesse advindo do seculo XVI. A importancia da colaboracao da reforma para a conceituacao do direito de resistencia e bastante negligenciada.

    Esta nao valorizacao politica e juridica da filosofia reformista, tao evidente quando da analise do instituto do direito de resistencia, a ele, no entanto, nao se limita. Ela decorre da equivocada adocao da premissa de que a reforma protestante estava confinada a materias de cunho religioso, a partir de uma tambem inadequada interpretacao do criterio dos dois reinos, sob os quais ela se assentou, o qual sera analisado ao longo do texto.

    O fato de Martinho Lutero (1483-1546) e os demais reformistas terem estabelecido distincao entre a existencia de um reino divino e um reino terreno, submetido a uma autoridade civil e regido pelo direito positivo, fez com que interpretes contemporaneos defendessem que a reforma tratava o Direito e a religiao como elementos mutuamente irrelevantes, sem qualquer especie de interpenetracao, reduzindo todo o embate reformista tao somente a uma guerra de religiao (BERMAN, 2006). Esta visao reducionista impediu a verificacao de que a concepcao luterana da existencia dos dois reinos e, por conseguinte, da relacao existente entre direito e fe, estava em verdade fazendo surgir, no seculo XVI, nao apenas uma nova teologia, mas propriamente uma nova ciencia politica e uma nova forma de se pensar o Direito (BERMAN, 2006), apta a modificar o conceito de "autoridade politica" e os fundamentos de sua legitimidade. E nesse sentido que Quentin Skinner (2004, p. 113) afirma que nao ha duvida de que a maior influencia da teoria politica luterana na recente Europa moderna advem do seu direcionamento para encorajar e legitimar o surgimento das monarquias absolutistas unificadas.

    Visando suprir, ainda que minimamente, esta lacuna, o presente artigo tem por objetivo evidenciar os contornos a partir dos quais se construiu, no seio da reforma protestante, a teorizacao do denominado "direito de resistencia". Para tanto, o texto desenvolve os fundamentos da filosofia reformista, conferindo especial atencao a concepcao dos dois reinos. A partir da sua correta compreensao, e possivel construir a nocao de "autoridade politica" no seio da reforma e fundamentar sua legitimidade, fazendo surgir a ideia de "dever de obediencia", a partir da analise dos textos Sermao sobre as duas especies de Justica", de 1519, " A nobreza crista da nacao alema acerca da reforma do Estado Cristao", de 1520, e "Da autoridade secular: ate que ponto devemos obedece-la", de 1523, todos escritos por Lutero, e "Instituicoes para a vida crista", Tomo II, livro IV, capitulo XX, "Do governo civil", de 1559, de Joao Calvino (1509-1564).

    Estabelecido ser o dever de obediencia a regra a ser seguida, o artigo avanca em direcao ao estudo do "direito de resistencia", procurando demonstrar o contexto historico e politico no qual ele se desenvolve, seu fundamento e seus limites, fazendo, ainda, a devida distincao entre a concepcao luterana e a concepcao calvinista do exercicio do direito, que o flexibilizou a partir da construcao de concessoes a sua utilizacao.

    Procura-se, ainda, demonstrar como ja ha, no ambito da filosofia reformista, uma evidente utilizacao da ideia de pacto/contrato/acordo, posteriormente desenvolvida por Locke e Rousseau para fundamentar o direito de resistencia, tendo contribuido, portanto, para a formacao de um cenario a sua favoravel a difusao do direito de resistencia, como a historiografia tem alegado (1). Do mesmo modo, ha uma nitida preocupacao com a necessidade de que a autoridade politica seja limitada pelo seu escopo, devendo ser objeto de controle, a partir de uma estrutura fundamentada no conceito de soberania das esferas, que auxiliou a construcao das nocoes modernas de liberdade ordenada e separacao dos poderes.

  2. Sobre o que se assenta a Filosofia Reformista.

    Para que se possa compreender como a nocao de autoridade politica se modifica com o advento da reforma protestante, e, posteriormente, como se constroi, em determinadas circunstancias, o direito de resistencia a esta autoridade, faz-se necessario, de antemao, analisar o impacto que a superveniencia dos escritos de Lutero e Calvino, bem como dos demais reformadores, provocaram sob o ponto de vista da relacao do individuo para com Deus. E a modificacao da natureza desta relacao, de como se da o acesso do homem ao ambito do divino, que permitira, no aspecto politico, a completa modificacao da dinamica da relacao entre a Igreja e o Estado em construcao, atraves da deslegitimacao do ate entao inquestionavel Poder Papal.

    2.1 O impacto da reforma protestante na dinamica da relacao do individuo com Deus: a submissao da raza o a consciencia e o surgimento dos cinco sola.

    Em suas 95 teses, publicadas em 1517, Lutero constroi as premissas da reforma, exteriorizadas nos cinco "sola", a partir de uma subversao da concepcao catolica, ate entao reinante, de submissao da consciencia a razao (BERMAN, 2006, p. 73-75,).

    Na concepcao catolica, defendia-se existir uma distincao entre a capacidade de aprender, de natureza intelectual, denominada de Synderesis, e a chamada Conscientia, caracterizada como a habilidade de por em pratica, em determinadas circunstancias concretas, os principios de direito natural de que se tinha conhecimento abstrato. A primazia era conferida a razao, entendida como instrumento de acesso ao ambito do direito natural (BERMAN, 2006, p. 75). Com a superveniencia da reforma protestante abandona-se a primazia da razao em detrimento do elemento da consciencia, passando-se a adotar a concepcao luterana de que a capacidade racional do homem de distinguir o bem do mal depende essencialmente do seu espirito.

    No entanto, se o espirito, se a consciencia humana e essencialmente pecadora - o que seria inquestionavel em virtude da consumacao da queda ocorrida quando do pecado original - nao ha como nao se concluir que tambem a razao humana estaria necessariamente envolta na escuridao, tratando-se, portanto, de instrumento deficiente e incapaz de promover a adequada compreensao, por parte do individuo, do "direito natural" que busca acessar (BERMAN, 2006, p. 73). Sendo impossivel utilizar-se da razao, ante a verificacao de um cenario no qual a consciencia e, portanto, tambem ela, encontram-se maculados pelo pecado, Lutero conclui que e apenas por meio da fe que se torna aceitavel ao homem compreender os principios de direito natural e entao aplica-los (BERMAN, 2006, p. 74).

    Ha, no entanto, em Lutero, uma distincao relevante. Embora ele preconize ser a fe a estrutura a ser utilizada para que se conheca o direito natural, e importante ressaltar que sob a otica da filosofia luterana nao e preciso que o individuo compreenda esses principios nem os aplique efetivamente nas suas relacoes interpessoais para que obtenha a salvacao. Na concepcao reformada, a salvacao decorre, unica e exclusivamente, do ato de fe, porquanto esta regida pelo "reino do divino".

    O direito natural e seus principios, por sua vez, assim como o direito civil, teriam sido ordenados diretamente por Deus para regular um reino distinto, qual seja o "reino terreno", nao funcionando, nenhum deles, como caminhos de acesso dos individuos a Cristo. A obediencia ao direito natural e ao direito civil nao resgata os homens de seus pecados, nem promove a salvacao. A pergunta acerca do que os leva a Cristo, Lutero responde que e apenas a fe.

    Surge entao o conceito protestante de "Sola fide", de que so a fe salva, pondo-se por terra a doutrina catolica da possibilidade de salvacao pelas obras, em decorrencia da conduta concreta do individuo. Em conjunto a ideia de que so a fe salva, desenvolve-se a concepcao de que so ha salvacao em Cristo (Solus Christus), de que esta salvacao, oriunda do ato de fe, decorre da Graca divina, da qual o homem nao e merecedor (Sola Gratia) e de que as Escrituras - em especial os dez mandamentos - sao a unica regra de fe e pratica.

    Como aduz Quentin Skinner (2004, p.12) "Lutero chega a conclusao de que se um pecador e detentor de fe em Cristo Jesus, ele sera salvo sem a participacao da Igreja; se ele nao possui fe, nao ha nada que a Igreja possa fazer para ajuda-lo". Seguindo esse entendimento, sendo a salvacao algo que depende unica e exclusivamente do individuo, impossivel de ser garantida pela Igreja, cai por terra o instituto da venda das indulgencias e destroi-se o fundamento da legitimidade universal do Poder Papal. Por meio dos cinco Sola, a reforma protestante poe fim a tradicao da Igreja Catolica de se considerar apta a reclamar quaisquer especies de direitos na Sociedade Crista.

    Ao defender a existencia de uma natureza espiritual na verdadeira Igreja de Cristo, enquanto componente do Reino do Divino, bem como que todo e qualquer individuo e consagrado pastor atraves do batismo, tendo acesso direto e irrestrito a Deus pelo mero ato de fe, Lutero repudia a ideia...

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