Globalização dos direitos humanos, legado das ditaduras militares no Cone Sul latino-americano e justiça transicional

AutorJosé Maria Gómez
CargoProfessor do Departamento de Direito e do Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e professor da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Páginas85-130

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O que é um desaparecido? Direi a você que o desaparecido, enquanto tal, é uma incógnita. Se reaparecesse, teria um tratamento X. Mas se o desaparecimento se convertesse em certeza, seu falecimento teria outro tratamento. Como desaparecido, não pode ter um tratamento especial, porque não tem entidade, não está morto nem vivo

General Jorge Rafael Videla, ditador argentino (1976-1980), em entrevista a jornal (14-12-1979)

De doze milhões de pessoas, dois mil desaparecidos não representam nada

General Augusto Pinochet, ditador chileno (1973-1990), em entrevista a jornal (14/07/1994)

1. Introdução

No dia 20 de dezembro de 2006, a Assembléia Geral das Nações Unidas (ONU) adotou a Convenção Internacional sobre o Desaparecimento Page 86

Forçado das Pessoas como novo instrumento jurídico de proteção dos direitos humanos. Embora a figura do desaparecimento forçado já esti-vesse contemplada pelos princípios e dispositivos gerais da normativa internacional de direitos humanos, os Estados aí reunidos consideraram conveniente contar com um tratado específico que proibisse um tipo de crime que, praticado com freqüência durante o século passado, parece ressurgir na atualidade com inquietante força, seja no plano doméstico de diferentes países, seja na política internacional.

Um mês e meio após sua aprovação, abriu-se o período de assinatura e ratificação do texto como passo necessário para sua entrada em vigor. Em uma cerimônia comovente realizada no dia 6 de fevereiro de 2007, em Paris, na sede do Ministério das Relações Exteriores da França, cerca de vinte representantes de diversos Estados procederam a sua assinatura. Entre os presentes, destacavam-se a Alta Comissária de Direitos Humanos da ONU, Louise Arbour, o presidente do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, Jacob Kellemberg, a presidente das 'Mães da Praça de Maio - Linha Fundadora' da Argentina, Marta Vasquez Ocampo, os chanceleres da Argélia, Burkina Faso e da Bósnia, e a senadora Cristina Fernandez de Kirchner, representante do então presidente da Argentina, Nestor Kirchner, e atual presidente eleita desse mesmo país. Culminava assim um longo processo de negociações diplomáticas iniciado no final dos anos 1990, reunindo personalidades que simbolizam a defesa dos direitos humanos em termos de organizações internacionais (OI), organizações não governamentais internacionais (ONGI) e ativistas sociais, junto a representantes de alguns países que, em um passado recente, haviam-se tornado tristemente célebres por causa das violações maciças dos direitos humanos2.

Para compreender a origem, o conteúdo e o significado dessa con-venção - considerada, segundo a Amnesty International, uma das mais enérgicas e inovadoras já adotadas pela ONU - 3 é preciso se deter nos dois vetores primordiais, estreitamente vinculados entre si, que estão por trás de sua criação. Por um lado, a evolução do regime internacional de direitos humanos que, desde meados do século XX, estabeleceu, não sem Page 87 ambivalências e problemas congênitos de eficácia, as condições globais e regionais de possibilidade com relação aos princípios, conceitos, reformulações normativas, instituições e legitimação. Por outro lado, os impactos sobre a teoria e a prática dos direitos humanos gerados tanto pelas violações sistemáticas das ditaduras militares que assolaram os países do Cone Sul da América Latina durante as décadas 1960 e 1970, quanto pelo tratamento dispensado pelos governos democráticos pósditatoriais diante das lutas sociais internas e dos reclamos internacionais pelos direitos à verdade, à justiça, à reparação e à memória coletiva. O presente artigo abordará, em seqüência, uma série de dinâmicas e traços distintivos dos dois vetores inter-relacionados, concluindo com breves considerações finais sobre o significado e os limites da Convenção Inter-nacional sobre o Desaparecimento Forçado das Pessoas no contexto da política mundial pós-11 de setembro. Em última instância, trata-se de um exercício de análise que, inserido numa problemática mais ampla de interrogação sobre a natureza sócio-histórica e eminentemente política dos direitos humanos, enfoca os temas em questão à luz de uma dupla dialética indissociável que os atravessa e constitui: em termos de escala (local, nacional, regional e global) e em termos de relações de poder (estratégias de dominação e resistência), ambas inerentes às definições, aos sentidos e aos usos em disputa dos direitos humanos no quadro da globalização hegemônica atual (Souza Santos, 2001; Souza Santos e Rodriguez-Garavito, 2005)4.

2. 60 anos de internacionalização dos direitos humanos: gênese, avanços e retrocessos

Do impulso inicial ao congelamento da guerra fria

É sabido que na ordem internacional construída pelos Estados vencedores da segunda guerra mundial, os direitos humanos passaram a desempenhar um papel inédito e crucial. Tal decisão, tomada sob o impacto moral dos horrores e das atrocidades do holocausto e da própria contenda, elevou os direitos humanos à condição de lei internacional Page 88 que consagra, junto e em tensão com o tradicional princípio de soberania dos Estados, o novo princípio de que os indivíduos são os titulares dos direitos reconhecidos e os Estados os responsáveis internacionais do respeito e garantia desses direitos para todas as pessoas submetidas à sua jurisdição. Assim, ao afirmar-se o valor da vida, da dignidade humana e de todas as possibilidades de desenvolvimento da pessoa com um alcance universal (embora com as marcas dominantes do eurocentrismo moderno ocidental, que até hoje persiste sob a roupagem do globocentrismo hegemônico)5, deixava-se para trás a posição até então dominante do sistema internacional de que as violações dos direitos dos cidadãos nacionais eram assuntos domésticos de cada Estado, protegido pelo direito exclusivo de soberania e pela obrigação de não intervenção dos demais (Forsythe, 2006). A partir de então, desencadeou-se um processo de mais de sessenta anos de desenvolvimento histórico e sócio-político em escala mundial, cujo resultado é o regime internacional de direitos humanos que opera atualmente nos planos global (sistema da ONU) e regional (sistemas americano, africano e europeu - este último, de longe, o mais consistente, abrangente e efetivo), com seus limites e potencialidades, avanços e recuos. Como regime, ele está constituído por um conjunto de valores, declarações, convenções, conferências, estatutos, procedimentos, resoluções, recomendações, dispositivos, mecanismos de controle e instituições multilaterais, aos quais deve se agregar um componente não estatal de papel fundamental: as organizações não governamentais (ONGs), os movimentos sociais e as redes de ativistas voltados à sua proteção, defesa e fomento (Donnelly, 2007; Bentham, 1998).

A fase inaugural da internacionalização dos direitos humanos originou-se numa mudança drástica das referências normativas. Em primeiro lugar, a Carta das Nações Unidas de 1945 e a afirmação explícita dos direitos humanos como objetivo primordial da organização, vinculados diretamente com os imperativos de paz e segurança internacional (Preâmbulo e artigos 1º, 55 e 56). Em segundo lugar, os tribunais militares internacionais de Nüremberg e Tókio de 1945-1946, cujos Estatutos introduziram três grandes novidades jurídicas que contradiziam o direito penal moderno - o princípio de legalidade e da irretroatividade da lei Page 89 penal -, o direito convencional e costumeiro internacional e as leis militares da época: os crimes contra a humanidade (concebidos como extensão dos crimes de guerra já existentes, aos fins de proteger a população civil ou grupos específicos de ataques organizados por um Estado determi-nado e em defesa do valor da justiça), a responsabilidade individual dos agentes do Estado e a impossibilidade da obediência devida como isenção de responsabilidade penal6. Em terceiro lugar, em 1948, a Convenção sobre a Prevenção e Sanção do Crime de Genocídio, figura derivada dire-tamente da noção de crime contra a humanidade. Em quarto lugar, a Declaração Universal de Direitos Humanos aprovada pela Assembléia Geral no dia 10 de dezembro de 1948, considerado o documento fundacional por excelência do regime internacional (embora sem efeito jurídico vin-culativo imediato). E em quinto lugar, a Convenção de Genebra que, em agosto de 1949, procedeu à sistematização do direito humanitário, incorporando os novos crimes contra a humanidade aos crimes de guerra existentes (Donnelly, 2007).

Todo esse impulso inicial, no entanto, foi logo freado pela ascensão da guerra fria entre as duas superpotências, que terminou convertendo os direitos humanos em mais uma arena das rivalidades geopolítica e ideológica Leste-Oeste (como a que se expressava na clivagem entre os direitos civis e políticos de matriz liberal e os direitos econômico-sociais de matriz socialista), além de torná-los objeto de flagrantes violações das políticas externas e internas dos Estados Unidos, da União Soviética e dos Estados clientes e regimes ditatoriais com eles alinhados. Só no início da década de 1960, constatou-se uma lenta, porém significativa retomada do processo de internacionalização, como desdobramentos da aceleração da descolonização em Ásia e África, do interesse crescente dos Estados do Terceiro Mundo com a temática alargada dos direitos humanos (desenvolvimento, autodeterminação dos povos e demais direitos de "solidarie- dade"), e de um maior envolvimento da ONU nas atividades normativas. Expressão disso foi a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas Page ...

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