Law, power, ideology: legal discourse as cultural narrative/Direito, poder, ideologia: discurso juridico como narrativa cultural.

AutorMoreira, Adilson Jose
CargoEnsayo

Introducao

0 debate sobre acoes afirmativas revela que seus participantes raramente discutem um tema relevante para a sua devida contextualizacao: o discurso juridico pode funcionar como um veiculo de disseminacao de ideologias e como uma instancia de disputa de poder. Esses atores sociais formulam argumentos que articulam interpretacoes do principio da igualdade, concepcoes de raca, definicoes de racismo, representacoes da nacao brasileira e teorias sobre o papel do Estado. Embora esses temas sejam igualmente tratados pelas partes envolvidas, eles sao associados a partir de perspectivas distintas, sendo que cada uma delas afirma que a interpretacao por elas defendida melhor representa os interesses da Nacao. Tendo em vista o fato de que os tribunais tem a ultima palavra na determinacao dos sentidos das normas constitucionais, eles se tornaram no passado recente um espaco de batalhas entre posicoes favoraveis e contrarias a manutencao de certas hierarquias sociais. O aspecto politico dessas controversias juridicas nos convida a analisar decisoes judiciais a partir de um ponto de vista diferenciado como sugerem autores ligados a tradicao critica do direito (1).

Muitos operadores do direito consideram acoes judiciais meros procedimentos formais nos quais um juiz avalia os argumentos e fatos trazidos pelas partes e entao utiliza uma norma para decidir a disputa em questao. O ideal de justica e alcancado na medida em que o magistrado escolhe a norma mais adequada para a solucao da querela juridica. Para os que defendem essa posicao, normas legais e principios interpretativos sao os parametros fundamentais a partir dos quais o julgador pauta sua atividade. O formalismo juridico parte do pressuposto de que juiz deve aplicar uma norma que possui um sentido objetivo a um fato social concreto. Entretanto, certas transformacoes na teoria hermeneutica demonstram que a atividade interpretativa tem um carater significativamente mais complexo. Essas mudancas nos mostram que o interprete tambem pode atuar como um agente ideologico. Isso significa que o seu oficio nao e necessariamente guiado pelo principio da neutralidade. Tendo em vista o fato que as normas juridicas sao produto de um jogo politico entre forcas sociais que possuem peso distinto dentro do processo decisorio, a hermeneutica tambem deve incluir uma apreciacao adequada da realidade social na qual os sujeitos estao situados (2). Verificamos a importancia dessa posicao principalmente quando analisamos questoes relativas a interpretacao

do principio da igualdade. Autores que enfatizam seu carater transformador afirmam que sua compreensao, sem a devida contextualizacao, pode reproduzir processos de estratificacao social (3). Essa otica nos parece interessante, tendo em vista a importancia da questao racial no Brasil. Assim, sua complexidade exige que examinemos com atencao os diferentes meios pelos quais ideologias influenciam o processo de interpretacao juridica.

Em tempos recentes, o interesse pela analise do uso de argumentos sociologicos no processo hermeneutico motivou alguns estudiosos ligados a teoria critica do direito a classificar decisoes judiciais como narrativas culturais (4). A nocao de narrativa expressa a tendencia humana de conferir sentidos aos diversos fatos que constituem a experiencia pessoal e coletiva. Essa atribuicao de significados acontece em funcao da associacao desses acontecimentos por meio de parametros que expressam certos valores, fazendo com que eventos adquiram significacoes a partir da forma como sao apresentados. Assim, o interesse na compreensao de decisoes judiciais como narrativas culturais adquiriu grande importancia em funcao da dimensao politica do discurso juridico. Esse fator e responsavel pela refutacao de uma posicao que via nas nocoes de neutralidade e objetividade os principios centrais da atividade interpretativa. Uma acao judicial nao se restringe a um mero exercicio no qual partes opostas apresentam teses que procuram demonstrar que eles retratam os fatos da forma mais correta. Na verdade, um processo judicial pode ser um meio a partir do qual grupos sociais tentam universalizar seus projetos ideologicos. Isso se aplica principalmente aos casos nos quais se discute o sentido de normas constitucionais, processos cujos resultados determinarao os parametros que regularao relacoes sociais e orientarao politicas publicas (5). Tendo em vista o fato de que a realidade social pode ser interpretada a partir de perspectivas distintas para produzir sentidos especificos, a narrativa deve tambem ser entendida a partir de uma de suas dimensoes principais que e o discurso. Esse e o meio pelo qual nexos culturais sao construidos dentro de uma sociedade por diferentes grupos. O discurso possui, assim, uma dimensao ideologica: ele expressa a compreensao que um grupo formula da experiencia social. Ele passa a reger a as relacoes entre as pessoas na medida em que seus membros conseguem transforma-lo em uma referencia cultural (6).

Certos autores do movimento intelectual chamado de Teoria Racial Critica (Critical Race Theory) como Thomas Ross e Richard Delgado argumentam que decisoes judiciais sao tambem narrativas culturais porque as partes de um determinado caso contam historias. Elas fazem sentido porque conectam fatos, principios juridicos, normas interpretativas, teses sociologicas e dados historicos de forma coerente. Do mesmo modo que outras narrativas culturais, decisoes judiciais tambem sao estruturadas a partir de discursos que atribuem sentidos a fatos e normas. O proprio juiz produzira outra narrativa que associara os elementos trazidos pelas partes. Como nos diz Susan Silbey, a sucessao de decisoes em uma determinada direcao forma um entendimento que designa como uma sociedade interpretara acontecimentos futuros que guardam semelhanca com uma situacao particular. Percebemos que uma decisao judicial estabelecera uma articulacao especifica de elementos que possivelmente regularao todo um aspecto das relacoes sociais. Essa narrativa juridica estabelecera, portanto, os parametros para o debate publico sobre um tema e tambem a maneira como atores estatais devem atuar (7).

Para demonstrar a dimensao narrativa do discurso juridico, este artigo examina duas posicoes dentro do debate sobre a constitucionalidade de acoes afirmativas. Analisaremos duas pecas judiciais que fazem parte da Arguicao de Descumprimento de Preceito Fundamental 186: a peticao inicial interposta pelo Partido dos Democratas (8) e o voto do ministro relator Ricardo Lewandowski, aprovado por unanimidade pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (8). Embora sejam construidas a partir dos mesmos elementos, quais sejam, concepcoes de raca, de igualdade, de nacao, de justica e do papel do Estado, elas os relacionam de forma distinta. Procuraremos com isso demonstrar que o estudo do discurso juridico como uma narrativa cultural nos permite identificar as ideologias sociais que estruturam decisoes judiciais. A influencia dessas narrativas pode fazer com que o direito seja um instrumento de preservacao de desigualdades ou de transformacao social. Resta entao explicar como o processo de universalizacao de projetos politicos acontece no funcionamento do sistema juridico e como sua identificacao pode nos ajudar a realizar o projeto de transformacao social presente no texto constitucional. Assim, a analise do discurso juridico na forma de narrativa cultural enfatiza a importancia de investigarmos a natureza de argumentos que, embora embasados na Constituicao Federal, desvirtuam o carater emancipatorio desse documento politico.

Este artigo examina um dos temas centrais da Teoria Racial Critica, escola de pensamento juridico que adquiriu grande influencia nos Estados Unidos nas ultimas decadas, mas que permanece amplamente desconhecida entre operadores do direito no Brasil. Essa teoria investiga os meios a partir dos quais o discurso juridico confere significados a raca e ao racismo, entendimentos que determinam a relevancia que eles devem ter na apreciacao de questoes relativas a justica social. Seus fundadores procuram identificar os meios pelos quais o direito pode ser um instrumento de emancipacao, o que seria uma contraposicao as formas que ele tem sido utilizado para manter hierarquias raciais. Eles afirmam entao que a compreensao do discurso juridico como uma narrativa cultural permite a identificacao de ideologias responsaveis pela reproducao de relacoes assimetricas de poder (10).

Essa teoria oferece elementos essenciais para examinarmos o direito a partir de uma posicao distinta daquela defendida por agentes que concentram poder social: ela pode ser um meio para a construcao de uma perspectiva juridica que expressa os interesses dos que estao em uma condicao subalterna e que nao tem os mesmos mecanismos para fazer frente a influencia de grupos majoritarios no processo decisorio (11). Examinaremos na primeira parte deste artigo a dimensao narrativa do discurso juridico, estudo que sera desenvolvido em tres partes: a analise da nocao de narrativa, a caracterizacao de decisoes judiciais como narrativas culturais e a analise das chamadas narrativas juridicas raciais. Escrutinaremos depois as estrategias discursivas utilizadas pelo Partido dos Democratas e pelo ministro Ricardo Lewandowski nas pecas que formularam narrativas juridicas raciais baseadas nas nocoes de raca, racismo, igualdade, justica e nacao. Queremos deixar claro que nao reivindicamos autoria de muitos dos argumentos aqui desenvolvidos; pretendemos apresentar ao publico brasileiro alguns pressupostos centrais da Teoria Racial Critica. Acreditamos que ela pode contribuir de forma significativa para o estudo das relacoes entre raca e direito, um campo ainda pouquissimo explorado entre nos, um dos motivos da reproducao de padroes de exclusao na nossa sociedade.

I--Decisoes Judiciais Como Narrativas Culturais

1.1--A Narrativa Como Forma de Producao de Sentidos Culturais

Os tribunais que...

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