Law in the light of History and class consciousness: an interpretation from Russian Revolution/O Direito a luz de Historia e consciencia de classe de Gyorgy Lukacs: uma leitura a partir do impacto da Revolucao Russa.

AutorSartori, Vitor Bartoletti

Introducao

Historia e consciencia de classe certamente pode ser considerada uma das grandes obras do marxismo do seculo XX, tanto por sua influencia, quanto pela repercussao nos campos marxistas e nao marxistas. Grandes autores "heterodoxos" dentro do marxismo --os quais, nao raro, tiveram uma relacao bastante proxima com tematicas e com pensadores normalmente alheios ao pensamento marxista--, como Benjamin, Goldmann e Bloch foram bastante influenciados pelo livro. (Cf. LOWY, 1998; LOWY; SAYRE, 2015) Tal carater "heterodoxo", inclusive, pode ser visto na propria obra que aqui analisamos, ate certo ponto. Ele fez com que esta fosse vista como o texto fundante do "marxismo ocidental" (Cf. MERLEAU-PONTY, 1955)--algo bastante distinto do "marxismo sovietico" (Cf. MARCUSE, 1969)--e, mesmo que tal denominacao possa ser considerada equivocada ou obscura sob diversos aspectos (Cf. MESZAROS, 2002)--(aqui nao podemos tratar do tema), ela tendeu a ser aceita como essencial por parte respeitada da historiografia marxista. (Cf. ANDERSON, 2005) Neste sentido, independentemente da denominacao "marxismo ocidental", deve-se dizer: em razao de tal "heterodoxia", esta obra lukacsiana abriu espaco para o dialogo do marxismo com parte da filosofia do seculo XX, como e o caso de autores como Heidegger (Cf. GOLDMANN, 1973; TERTULIAN, 2017)) e aqueles que, e verdade que com um dialogo mais solido com aquilo que se consolidou como a tradicao marxista no seculo XX, filiaram-se a chamada escola de Frankfurt. (Cf. FEEMBERG, 2013) Ou seja, a "heterodoxia" pareceu ser um grande atrativo da obra, ate certo ponto. No entanto, ha tambem outro aspecto que torna de grande relevo o estudo da mencionada obra: e bom que se perceba que Historia e consciencia de classe e um texto que, explicitamente, coloca-se direcionado ao acontecimento historico da revolucao socialista, em especial, coloca-se diante daquilo que se deu na Revolucao Russa. Ou seja, mesmo que a influencia lograda pelo texto se de, em grande parte, por causa do embate que realiza com parte consideravel da filosofia e da sociologia burguesa (sendo Hegel e Max Weber interlocutores privilegiados, e que foram retomados, por exemplo, por autores como Horkheimer, Marcuse e Adorno), trata-se tambem de uma tentativa de dar uma fundamentacao teorica ao socialismo e ao bolchevismo (Cf. MESZAROS, 2002; LOWY, 1998), de modo que a enfase dada nos comentarios ao texto de 1923, nos defensores do "marxismo ocidental" (que vem a desenvolver uma marxismo pouco permeado pela questao da luta de classes) e bastante unilateral, deixando de lado este aspecto essencial: Historia e consciencia de classe e impensavel sem a Revolucao Russa. (Cf. ZIZEK, 2003)

Neste artigo, ao ter este aspecto essencial em mente, pretendemos tratar do Direito neste livro lukacsiano de 1923 a partir da analise imanente (CHASIN) (1) da obra mencionada. Com isso, intentamos mostrar que, tanto no que toca a postura "heterodoxa"--ligada a certa apropriacao da filosofia e da sociologia nao marxistas da epoca--, quanto no que diz respeito a posicao decidida de Lukacs quanto a necessidade da revolucao socialista, o marxista hungaro, na epoca, liga seu texto ao contexto em que a Revolucao Russa triunfa e em que o pensamento burgues entraria em crise terminal. Ou seja, analisaremos o Direito nesta obra tendo por objetivo, nao tanto uma analise exaustiva da questao da esfera juridica (algo que ainda nao foi realizado tendo em conta a obra que aqui tratamos), mas aquilo que torna possivel esta analise, a saber, a compreensao das determinacoes mais gerais do tema na obra aqui estudada. Assim, seria possivel destacar alguns pontos de grande relevo para a analise do Direito em Historia e consciencia de classe: 1) a relacao do Direito com a "racionalidade burguesa"; 2) a relacao dele com as "antinomias do pensamento burgues"; 3) o modo pelo qual jusnaturalismo e juspositivismo se entrelacam ao desenvolvimento do pensamento e da historia burgueses; 4) a relacao da teoria do Direito com um pensamento reificado; 5) a posicao de Lukacs quanto a necessidade de uma "ordem" juridica socialista; 6) a relacao entre Direito, dever e disciplina interna do partido comunista; 7) a necessidade da perspectiva da totalidade na analise da esfera juridica; 8) a relacao entre Direito e burocratizacao; 9) a questao da legalidade e da ilegalidade; 10) a questao da Revolucao Russa e da legalidade proletaria e, por fim; 11) a relacao entre tatica, violencia e Direito.

A gama de temas relacionados ao Direito, os quais aparecem em Historia e consciencia de classe, e bastante grande e ainda precisa de um tratamento exaustivo e cuidadoso, que tenha como objetivo mostrar a posicao de Lukacs, na epoca, tendo especial cautela ao abordar o modo como o autor trata da esfera juridica e de sua relacao com a politica, com o Estado e com o socialismo.

E verdade que Silvio Luiz de Almeida, em seu bom livro O Direito no jovem Lukacs (Cf. SARTORI, 2013), trouxe uma contribuicao significativa ao tema, procurando explicitar o aspecto juridico em Historia e consciencia de classe. O autor trata do tema tendo em conta, principalmente, o fenomeno da reificacao, das antinomias do pensamento burgues e o modo como estes se articulam com o Direito na obra lukacsiana de "juventude". (Cf. ALMEIDA, 206) No entanto, ate mesmo pelo folego da pesquisa--decorrente de uma dissertacao de mestrado (2)--, a lista de temas que mencionamos acima nao pode ser tratada de modo exaustivo. Tambem nao ha apontamentos aprofundados neste importante estudo sobre a relacao tensa de Lukacs com Weber e com a filosofia burguesa na epoca (notadamente Hegel, mas, de modo subsidiario, tambem autores como Dilthey) no que toca pontos essenciais, como aquele da interpretacao, a qual, acreditamos, aproxima-se bastante da tematica ligada ao Direito. (Cf. SARTORI, 2016) Neste texto, ao termos como fio condutor a determinacao social do pensamento (Cf. LUKACS, 1959), procuraremos mostrar a posicao concreta de Lukacs diante da realidade efetiva de sua epoca. Faremos isso a partir de sua leitura do Direito presente em Historia e consciencia de classe. Nosso texto trara, pois, uma analise preliminar quanto a questao, cujos meandros foram elencados acima; procuramos, assim, trazer as determinacoes mais gerais do tema em nossa exposicao, ao mesmo tempo em que, claro, a pesquisa implica no reconhecimento da importancia de todas as dimensoes levantadas.

Uma unica ciencia materialista-dialetica e proletaria: totalidade e revolucao

Lukacs, em Historia e consciencia de classe, adota uma perspectiva que, mais tarde, viria a abandonar (Cf. LUKACS, 2010, 2013, 1966), aquela segundo a qual existe uma "ciencia proletaria". Neste sentido, em oposicao a perspectiva burguesa--parcelar, contemplativa e sistematica (3)--, ter-se-ia, com o proletariado, o "principio revolucionario da ciencia". Este principio estaria relacionado, tanto a oposicao pratica a sociedade civil burguesa, quanto a prioridade do "ponto de vista da totalidade", descoberto ja por

Hegel, e apropriado criticamente por Marx:

Nao e o predominio de motivos economicos na explicacao da historia que distingue de maneira decisiva o marxismo da ciencia burguesa, mas o ponto de vista da totalidade. A categoria da totalidade, o dominio do universal e determinante do todo sobre as partes constituem a essencia do metodo que Marx recebeu de Hegel e transformou de maneira original no fundamento de uma ciencia inteiramente nova. [...] A ciencia proletaria e revolucionaria nao somente pelo fato de contrapor a sociedade burguesa conteudos revolucionarios, mas, em primeiro lugar, devido a essencia revolucionaria de seu metodo. O dominio da categoria da totalidade e o portador do principio revolucionario da ciencia. (LUKACS, 2003, pp. 105-106)

A primeira questao a se notar e que Lukacs nao busca somente um "materialismo interdisciplinar" (Cf. HORKHEIMER, 1990)--isto se da ate mesmo porque o marxista hungaro menciona que essencial no que toca a "ciencia proletaria" nao e o carater "interdisciplinar", mas a conformacao de "uma" (destaca-se o singular) "ciencia inteiramente nova"; nao obstante o autor hungaro acredite, na epoca, que "toda uma serie de categorias decisivas continuamente empregadas [por Marx] provem diretamente da logica hegeliana" (LUKACS, 2003, p. 56), destaca ele tambem que Marx traria algo "inteiramente novo" ja que, somente entao, seria possivel uma verdadeira unidade entre teoria e praxis: "a unidade da teoria e da praxis e, portanto, apenas a outra face da situacao social e historica do proletariado. Do ponto de vista do proletariado, o autoconhecimento coincide com o conhecimento da totalidade; ele e, ao mesmo tempo, sujeito e objeto do seu proprio conhecimento." (LUKACS, 2003, p. 97) O ponto de vista do proletariado, portanto, seria central. E este "ponto de vista" decorreria da propria situacao do proletariado na sociedade capitalista. Ou seja, ao mesmo tempo em que a totalidade, na obra analisada, aparece com central ao autor hungaro--como dito acima,"nao e o predominio de motivos economicos na explicacao da historia que distingue de maneira decisiva o marxismo da ciencia burguesa, mas o ponto de vista da totalidade"--, este "ponto de vista da totalidade" derivaria da situacao objetiva do proletariado, da unidade existente entre teoria e pratica em sua caracterizacao mesma como ultima classe explorada da "pre-historia da sociedade humana" (MARX, 2009, p. 48), da "historia de todas as sociedades que existiram", "a historia da luta de classes". (MARX; ENGELS, 1998, p. 9) Ou seja, mesmo que Lukacs remeta a descoberta do "dominio universal do todo sobre as partes" ja em Hegel, ele o faz dizendo que Marx recebe tal principio de Hegel e traz a tona uma "ciencia proletaria", marcada por um "metodo" relacionado, sobretudo, a uma atitude pratica diante da realidade, que redundaria na revolucao da mesma. (4) Ou seja, haveria uma superacao quanto a Hegel neste ponto.

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