Lares, Tribunais e Ruas: A Inviolabilidade de Domicilio e a Revolta da Vacina: Homes, Courts and Streets: The Inviolability of the Home and the Vaccine Revolt.

AutorCantisano, Pedro Jimenez

Introducao

Entre motim espontaneo, movimento organizado e tentativa de golpe de estado, a Revolta da Vacina apresenta obstaculos permanentes a analise historica. A este movimento multifacetado, soma-se o momento conflituoso envolvendo o plano republicano-oligarquico de modernizacao do pais. Sem testemunhos dos participantes, os historiadores tentaram aproximacoes dos seus motivos a partir das acoes descritas em jornais e do contexto politico, economico e social da epoca. (2) Neste artigo, eu forneco elementos da historia das ideias, instituicoes e praticas juridicas que podem nos ajudar a compreender melhor os acontecimentos de novembro de 1904.

O argumento central e o seguinte: nos meses que antecederam e sucederam a Revolta da Vacina, a inviolabilidade do lar fez parte do imaginario carioca tanto como um valor tradicional, associado ao poder dos chefes de familia sobre suas esposas e filhas, quanto como um preceito constitucional, ligado a tradicao liberal de protecao aos direitos individuais. A populacao do Distrito Federal nao estava preocupada apenas com a vacinacao obrigatoria. A lei de vacinacao que desencadeou a Revolta fazia parte de um contexto maior, no qual o Regulamento Sanitario, de 8 de marco daquele ano, autorizava agentes sanitarios a invadir residencias, inclusive com a ajuda da policia, para realizar expurgos contra doencas contagiosas. A preocupacao com estas invasoes nao se restringia as classes populares. Proprietarios, comerciantes e advogados tambem precisaram defender suas residencias contra os abusos da Saude Publica. Antes e depois da Revolta, o direito constitucional a inviolabilidade de domicilio fez parte de uma consciencia juridica contraria aos expurgos e a vacinacao, que se concretizou no uso da linguagem juridica como canal de resistencia dentro e fora dos tribunais. (3)

Para sustentar este argumento, utilizo fontes historicas, juridicas e nao juridicas, e procuro dialogar com a historiografia sobre Revolta da Vacina e cidadania na Primeira Republica. Entre as fontes primarias, uso legislacao e doutrina constitucional, para delinear os limites juridicos da inviolabilidade de domicilio no inicio do seculo XX; autos processuais, para observar como esta garantia constitucional ganhou vida nos confrontos entre os moradores do Rio de Janeiro e a Saude Publica; e jornais, para incrementar a historia destas disputas e, principalmente, para mostrar como a ideia de um direito constitucional a inviolabilidade de domicilio circulou entre cariocas de diferentes classes sociais.

A primeira parte do artigo e uma tentativa de reconstruir resumidamente a historiografia. Aos leitores familiarizados com o tema, sugiro ir direto a segunda parte, onde apresento os dois significados da inviolabilidade de domicilio: valor tradicional e direito constitucional. A partir dai, optei por uma abordagem cronologica. Na terceira parte, analiso uma peticao de habeas corpus e uma representacao enviada por operarios ao Congresso, ambas divulgadas em jornais nos meses que antecederam a Revolta da Vacina. Na quarta, passo aos meses imediatamente posteriores a Revolta para analisar um pedido de habeas corpus amplamente coberto pela imprensa e um que teve pouca ou nenhuma repercussao. Nestas duas partes, identifico como os dois significados da inviolabilidade de domicilio foram articulados, elementos juridicos e sociais relevantes para compreender esta articulacao e indicios da tensao permanente entre direito e revolta. A conclusao resume os argumentos apresentados e levanta o problema da associacao entre valores tradicionais e principios constitucionais em movimentos populares.

  1. Revolta da Vacina e Cidadania

    Recentemente, Gladys Sabina Ribeiro (2006 e 2009) e Eneida Quadros Queiroz (2008) usaram fontes judiciais para contestar a perspectiva pessimista sobre o exercicio de cidadania na Primeira Republica, popularizada por Jose Murilo de Carvalho (2011). Em sintese, as historiadoras se inspiram em E. P. Thompson (1975) para argumentar que a populacao do Rio de Janeiro transformou o judiciario republicano--Justica Federal e Justica Sanitaria--em arena de lutas pela ampliacao dos seus direitos. (4) Contra a passividade dos "bestializados" (ou "bilontras") e o processo de cima para baixo da "estadania"--ideias defendidas por Carvalho-, Ribeiro e Queiroz nos oferecem cidadaos ativos em um processo de construcao de direitos que opera de baixo para cima, atraves da mediacao dos advogados (RIBEIRO, 2006 e 2009; QUEIROZ, 2008). (5)

    A Revolta da Vacina ocupa lugar de destaque na historiografia sobre a pratica da cidadania na Primeira Republica. Em novembro de 1904, uma massa heterogenea tomou as ruas do Rio de Janeiro para protestar violentamente contra a campanha de vacinacao obrigatoria. Rodrigues Alves, Pereira Passos e Oswaldo Cruz lideravam um plano de modernizacao da cidade baseado em desapropriacoes, remocoes, expurgos e repressao a costumes populares, como o comercio de rua. Estas e outras medidas de carater sanitario e estetico destinavam-se a elevar o Rio a um ideal europeu--parisiense, Haussmanniano--de civilizacao. Segundo Jaime Benchimol (1990), as reformas do inicio do seculo XX eram parte da transicao da capital de uma cidade colonial para uma cidade capitalista, racionalizada e eficiente, atraente a investimentos estrangeiros e imigrantes. Para Margarida de Souza Neves (2013, p. 41), o Rio de Janeiro, com suas avenidas largas, bondes, predios modernos, etc., cumpria um papel simbolico que projetava o futuro e legitimava o presente, indicando a entrada do pais na era do progresso e da civilizacao. Os expurgos sanitarios e a vacinacao obrigatoria, liderados pela Diretoria Geral de Saude Publica, de Oswaldo Cruz, eram parte central do projeto de embelezamento e saneamento da cidade.

    Segundo Sidney Chalhoub (2011), desde o periodo imperial, mais intensamente durante as decadas de 1870 e 1880, medidas higienicas para o combate a doencas, como a febre amarela e a variola, justificaram campanhas de limpeza social na corte. Desenvolveu-se, entao, entre a populacao do Rio de Janeiro, um sentimento "vacinophobico", baseado tanto em conhecimento cientifico medico-sanitario quanto em uma variedade de tradicoes culturais afro-brasileiras, contrarias a interferencia medica indevida. Esta longa historia de rejeicao a vacina na cidade ajuda a explicar os acontecimentos de novembro de 1904. A autorizacao dada aos agentes do Estado para entrar nas residencias cariocas e vacinar forcadamente a populacao desencadeou atos de violencia. (6) Os revoltosos atacaram, principalmente, simbolos do progresso da cidade, como os novos bondes e a iluminacao, expondo, desta forma, sua insatisfacao com um projeto de modernizacao que excluia, segregava e reprimia. De acordo com Teresa Meade (1999, p. 111), o movimento foi ao mesmo tempo espontaneo e organizado, ja que contou com o poder de mobilizacao da Liga Contra a Vacinacao Obrigatoria e de associacoes classistas, como o Centro das Classes Operarias.

    A Revolta da Vacina nao foi apenas um movimento popular contra a imposicao estatal de um projeto excludente de cidade e nacao. Benchimol (2013, p. 273) explica que aconteceram, na verdade, duas rebelioes imbrincadas. Alguns dias depois da revolta popular, opositores do governo Rodrigues Alves, liderados por Lauro Sodre, aproveitaram o movimento para deflagrar uma tentativa de golpe de estado. Segundo Jeffrey Needell (1987, p. 247), as raizes do golpe estavam nos planos de militares jacobinos para derrubar o regime das oligarquias paulistas. Os republicanos radicais defendiam um projeto de modernizacao nacional muito mais inclusivo, porem abertamente autoritario. Derrotados pelas forcas do governo, Sodre, seus aliados e toda a populacao carioca sofreriam com as consequencias.

    A reacao governamental nao se restringiu a repressao dos diretamente envolvidos na destruicao de propriedade e na tentativa de golpe. Violencia policial, prisoes arbitrarias e desterro para o Acre foram expedientes usados, durante alguns meses, para restabelecer a ordem necessaria ao progresso da capital. O governo transformou a Revolta em oportunidade para enrijecer ainda mais suas politicas de exclusao social. De acordo com Nicolau Sevcenko (1993, p. 53), o objetivo era amplo: "eliminar da cidade todo o excedente humano, potencialmente turbulento, fator permanente de desassossego para as autoridades".

    Durante todo o governo Rodrigues Alves, a resistencia ao plano de reformas nao se limitou a Revolta da Vacina. Opositores de elite se manifestaram exaustivamente, na Camara, no Senado, nos jornais e em outros tipos de publicacao, contra as medidas ordenadas por Alves, Passos e Cruz. Pechman e Fritsch (1985) mostram que trabalhadores removidos dos corticos e estalagens demolidos pelo "Bota-Abaixo" ocuparam irregularmente os morros cariocas como estrategia de sobrevivencia para morar perto do centro, onde encontravam oportunidades de trabalho. Segundo Oswaldo Rocha (1995), a resistencia popular tambem foi articulada em manifestacoes culturais, como em letras de samba, por exemplo. As pesquisas de Ribeiro (2006 e 2009) e Queiroz (2008) adicionam o direito e os tribunais a este rol de canais de resistencia. Praticas de "cidadania", em sentido amplo, derrubam a ideia de que o povo brasileiro da Primeira Republica teria se limitado, por um lado, a passividade imposta por um sistema politico excludente e, por outro, a manifestacoes momentaneas, violentas e desorganizadas de insatisfacao com suas condicoes de vida.

  2. Valor tradicional e direito constitucional

    Os historiadores ja identificaram, em parte, o papel da linguagem dos direitos na resistencia a modernizacao urbana excludente que culminou com a Revolta da Vacina. (7) Para Carvalho (2011, p. 138), por exemplo, "a revolta comecou em nome da legitima defesa dos direitos civis". Needell (1987, p. 244) identificou na oposicao do Apostolado Positivista ao plano de vacinacao forcada fundamentos de carater...

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