Justiça social e princípio da fraternidade na Constituição Federal de 1988

AutorThania Maria Bastos Lima Ferro
CargoMestranda em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul ? PUC/RS
Páginas197-204

Page 198

1. Considerações iniciais

A Constituição Federal de 1988 foi um divisor de águas em nossa história porque representa uma ruptura com concepções que não mais condiziam com as aspirações do povo brasileiro. A promulgação da atual Carta acarretou uma mudança de paradigmas que modi?cou toda a estrutura normativa do país.

O presente trabalho analisa, mesmo que em breves linhas, o princípio da fraternidade como categoria constitucional, a partir da análise de sua concretude para realização da tão almejada justiça social, como vetores para a construção de uma sociedade inclusiva, mas justa e solidária, conforme disposto no art. 3º, inciso III, do Texto Constitucional.

2. A Constituição Federal de 1988 e a implantação do Estado Democrático de Direito

O advento da Carta Constitucional de 1988 representa um marco do ?nal do período da Ditadura Militar e início da redemocratização do País. A nova ordem constitucional, de inegável in?uência das Constituições de Weimar e de Bonn1, implantou o Estado Democrático de Direito, tendo por consequência inovações profundas no ordenamento jurídico brasileiro, e re?etindo a ansiedade por mudanças preconizadas por diversos setores da sociedade2.

Deveras, a Constituição de 1988 trouxe ao centro do ordenamento jurídico brasileiro a pessoa humana e o direito ao seu pleno desenvolvimento, cuja dignidade deve ser protegida em sua dimensão mais ampla possível. Não mais se concebe uma leitura refratária e eivada de individualismos. Não mais se concebe a proprie-dade como ponto central do sistema jurídico. A partir de então, busca-se a construção de uma sociedade justa, livre e solidária, mediante ações a?rmativas, em que o pluralismo seja respeitado e as pessoas possam viver mais felizes. Este o fundamento do Estado Democrático de Direito a que estamos submetidos3.

O Texto Constitucional tem, portanto, um profundo caráter humanitário, e nesse ideal de

Page 199

construção de uma sociedade melhor espraia-se por todo o sistema infraconstitucional, de modo a extrair de seus postulados a máxima e?cácia para uma hermenêutica jurídica transformadora, de maneira a garantir as condições mínimas para a preservação do indivíduo, vez que, abaixo desse patamar mínimo, não se pode considerar que haja dignidade, mesmo em havendo sobrevivência.

3. O princípio da fraternidade

A fraternidade, ao ser guindada à categoria constitucional, não pode e nem deve ser vista como mera noção caritativa e bene?cente, desprovida de qualquer efetividade, mas sim como princípio jurídico inovador. O legislador constitucional seguiu a tendência das mais avançadas legislações ao inserir a fraternidade, enquanto categoria política, ao lado da liberdade e da igualdade. Fraternidade que se considera como equivalente ao princípio da solidariedade, visto que ambos os conceitos encontram-se em uma única finalidade: a construção de uma sociedade melhor e mais justa4.

Assim é que o ideal de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos consta logo no preâmbulo da Carta Constitucional5, não podendo ser olvidado em qualquer hipótese. É pela noção de fraternidade/solidariedade que se pode estabelecer os padrões de interpretação cuja observância deverá ser exigida por ocasião da elaboração de leis infraconstitucionais, bem como no processo de interpretação para aplicação in concreto das normas do nosso sistema jurídico.

A partir do momento em que o legislador constitucional faz a opção pela construção de uma sociedade fraterna, inclusive elencando-o como um dos objetivos fundamentais da República no art. 3º, inciso I, o faz de forma a dar concretude ao princípio, estabelecendo-o como um dever de natureza jurídica. A maior prova de que a inclusão da fraternidade no Texto Constitucional não foi mero jogo de palavras, mas sim uma mudança paradigmática de valores acerca da concepção de bem comum, são as consequências profundas daí advindas.

Com efeito, abandona-se a concepção individualista que até então era prevalente na Carta Constitucional pretérita, espraiando-se os novos ares sobre todas as áreas do Direito. Doravante, o princípio da fraternidade serve como cimento para o novel entendimento da noção de cidadania e de dignidade da pessoa humana, fundamentos da República que são, a teor do art. 1º, incisos II e III, da Carta Constitucional de 19886.

Assim, extrai-se do centro do ordenamento jurídico a concepção patrimonialista, substituindo-a pela concepção humanística. A fraternidade é o apanágio da transformação social que se almeja construir, baseada na valorização da pessoa humana, da implantação de um direito sem violência, onde se busca

Page 200

redimensionar os poderes constituídos e praticar a inclusão de todos, sem discriminação de qualquer espécie7.

A concepção humanística calcada em direito fraterno pode ser facilmente encontrada no corpo do Texto Constitucional. À guisa de exemplo, elenca-se os seguintes dispositivos: o art. 5º, incisos XXIII e XXIV, que estabelece a função social da propriedade, que é um modo de relativização na maneira de aquisição, gozo e utilização dos bens; o art. 170, que cuida dos princípios da ordem econômica e que estabelece como ?nalidade maior assegurar a existência digna de todos conforme ditames da justiça social; o art. 227, que consagra várias formas de entidade familiar, agora baseadas na afetividade e não mais na mera formalidade do casamento; o art. 193, que estipula que a ordem social tem como objetivo o bem-estar e justiça social; o art. 195, que estabelece o sistema de ?nanciamento para a seguridade social, somente para citar alguns.

Nessa linha, o Supremo Tribunal Federal também tem considerado a fraternidade como dever jurídico em suas decisões, algumas delas de profundo impacto social e político. A Corte tem entendido que o princípio da fraternidade anda de mãos dadas com o princípio da dignidade da pessoa humana e inúmeras de suas decisões têm dado dimensão real a esse valor.

Para ilustrar, pode-se citar as decisões proferidas nos autos das ADIs 3.105, 3.128/DF8 e 3.510/DF9; da PET n. 3.388-4/RR10; da ADPF
n. 101/DF11; ADPF n. 132/RJ; e ADI n. 132/

Page 201

DF12; e ADPF n. 186-2/DF13.

4. A Justiça Social e o princípio da fraternidade

A expressão “Justiça Social” foi utilizada pela primeira vez em documentos o?ciais pelo Papa Pio XI na Carta Encíclica Quadragesimo Anno, que comemorava os quarenta anos da célebre Encíclica Rerum Novarum. A mesma expressão foi repetida na Carta Encíclica Divini Redemptoris, do mesmo Papa Pio XI. A partir daí, a expressão passou a ser utilizada rotineiramente pelos demais Papas que o sucederam, como referência das relações sociais na esfera econômica.

A Igreja Católica utilizava o termo Justiça Social como uma expressão de reação ao individualismo da justiça comutativa, e propugnava por uma política que viabilizasse a justa distribuição das riquezas de modo a servir a todos, sem quaisquer distinções. Conclamava, também, a estabelecer uma sociedade mais solidária, onde as pessoas cuidassem umas das outras e as relações entre capital e trabalho fossem mais humanas. En?m, objetivava a busca pelo bem comum, onde os mais fracos seriam alvo de maior proteção de forma a suprir-lhes as necessidades mínimas para uma sobrevivência decente.

A Constituição Federal de 1988 tem na Justiça Social o seu ideal...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT