Justiça do trabalho e lides envolvendo servidores públicos

AutorRicardo Araújo Coser
Páginas218-239

Page 218

1. Introdução

No julgamento da Medida Cautelar na ADI n. 3.395/DF, o Supremo Tribunal Federal decidiu, por meio da técnica de interpretação conforme a Constituição sem redução de texto, que se excluem da apreciação da Justiça do Trabalho as causas envolvendo servidores públicos vinculados estatutariamente à Administração Pública. Confira-se a ementa desse julgado:

EMENTA: INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Competência. Justiça do Trabalho. Incompetência reconhecida. Causas entre o Poder Público e seus servidores estatutários. Ações que não se reputam oriundas de relação de trabalho. Conceito estrito desta relação. Feitos da competência da Justiça Comum. Interpretação do art. 114, inc. I,daCF, introduzido pela ECn. 45/2004. Precedentes. Liminar deferida para excluir outra interpretação. O disposto no art. 114,I, da Constituição da República, não abrange as causas instauradas entre o Poder Público e servidor que lhe seja vinculado por relação jurídico--estatutária.

(ADI-MC n. 3395/DF — Pleno — Rel. Min. Cezar Peluso — Julgamento: 5.4.2006 —DJ 10.11.2006 —p. 49.)

Depois de aproximadamente dois anos e meio deste julgamento, o Tribunal Superior do Trabalho cancelou a Orientação Jurisprudencial n. 205 da SDI-1, que era plasmada na seguinte redação:

Page 219

205. COMPETÊNCIA MATERIAL. JUSTIÇA DO TRABALHO. ENTE PÚBLICO. CONTRATAÇÃO IRREGULAR. REGIME ESPECIAL. DESVIRTUAMENTO.

I — Inscreve-se na competência material da Justiça do Trabalho dirimir dissídio individual entre trabalhador e ente público se há controvérsia acerca do vínculo empregatício.

II — A simples presença de lei que disciplina a contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público (art. 37, inciso IX, da CF/1988) não é o bastante para deslocar a competência da Justiça do Trabalho se se alega desvirtuamento em tal contratação, mediante a prestação de serviços à Administração para atendimento de necessidade permanente e não para acudir a situação transitória e emergencial.

A Justiça do Trabalho seria, pois, incompetente para apreciar e julgar todas as demandas envolvendo servidores públicos estatutários? Ou subsistiriam alguns tipos de demandas sobre o assunto que se inscreveriam na competência da Justiça do Trabalho?

Este artigo objetiva responder a estas indagações, enfrentando vários casos submetidos ao Poder Judiciário Trabalhista, especificamente, o desvirtuamento da contratação temporária de servidores e da nomeação de ocupantes de cargos em comissão, a configuração ou não de regime estatutário para servidores públicos municipais efetivos quando a correspondente lei não for publicada em Diário Oficial ou for declarada inconstitucional, o cumprimento de normas de segurança, medicina e higiene do trabalho por pessoas jurídicas de direito público e a eventual extensão dos efeitos da ADI n. 3.395 para outros incisos do art. 114 da Constituição Federal.

Também se avaliará a tendência de a Súmula n. 363 do Tribunal Superior do Trabalho vir a ser modificada ou não.

2. Desvirtuamento das contratações temporárias de servidores e das nomeações para cargos em comissão e cargos efetivos

Sempre se entendeu, na Justiça do Trabalho, que o liame estatutário apenas se configurava quando havia licitude na nomeação de servidores públicos efetivos (aprovados em concurso público) ou ocupantes de cargo em comissão e na contratação por tempo determinado de servidores para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público.

Page 220

Foi exatamente a pacífica jurisprudência do TST neste sentido que gerou a Súmula n. 205, atualmente cancelada.

Acontece que uma profusão de decisões emanadas do Supremo Tribunal Federal em sede de reclamações de descumprimento do julgado relativo à ADI n. 3.395 sedimentou o entendimento de que o eventual desvirtuamento da contratação temporária de servidores não metamorfoseia o regime administrativo da contratação em regime celetista.

Como exemplo, cite-se a seguinte decisão:

"EMENTA: RECLAMAÇÃO. CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. AUTORIDADE DE DECISÃO PROFERIDA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: ART. 102, INCISO I, ALÍNEA L, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. MEDIDA CAUTELAR NAAÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE N. 3.395. CONTRATAÇÃO TEMPORÁRIA DE PROFISSIONAIS NA ÁREA DE SAÚDE: ART. 37, INCISO IX, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. AÇÃO CIVIL PÚBLICA AJUIZADA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO CONTRA AADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM. CAUSA DE PEDIR RELACIONADA A UMA RELAÇÃO JURÍDICO-ADMINISTRATIVA. 1. Incompetência da Justiça Trabalhista para o processamento e o julgamento das causas que envolvam o Poder Público e servidores que sejam vinculados a ele por relação jurídico-administrativa. 2. O eventual desvirtuamento da designação temporária para o exercício de função pública, ou seja, da relação jurídico-administrativa estabelecida entre as partes, não pode ser apreciado pela Justiça do Trabalho. 3. Reclamação julgada procedente."

(STF — Pleno — Recl n. 4464/GO — Julgamento: 20.5.2009 — Publicação DJe-157 DIVULG. 20.8.2009 PUBLIC. 21.8.2009 EMENT VOL. 02370-02 PP-00310.)

Ainda consagrando o entendimento sob foco, o STF vem decidindo que até desvirtuamentos de estágio e trabalho voluntário não se inscrevem na competência da Justiça do Trabalho, como se pode verificar, ilustrativamente, nas decisões referentes às Reclamações ns. 4.701/SP (DJe 4.8.2010), 9.988/CE (DJe 28.4.2010) e 10.068/GO (DJe 4.6.2010).

Parece-nos restar evidente a extensão desta jurisprudência aos casos em que se alegue desvirtuamento de ocupação de cargos em comissão, quando se deduza em Juízo que não havia atribuições de chefia, direção ou assessoramento, em contrariedade ao que dispõe o inciso II, parte final, do art. 37 da Constituição Federal, bem como aos casos em que se argumente o ingresso ilícito no quadro funcional de cargos efetivos.

Assim, a Justiça do Trabalho não é competente para apreciar nenhuma demanda envolvendo servidores públicos e o Poder Público a que estejam

Page 221

vinculados quando o liame profissional previsto em lei específica for o estatutário ou jurídico-administrativo, sendo irrelevante, para aferição desta incompetência, que: a) a contratação ou a nomeação de servidores tenha sido concretizada ao arrepio da legislação que rege a matéria, como falta de aprovação em concurso público ou seleção pública, omissão em celebrar contrato por tempo determinado ou falta de publicação de portaria de nomeação; b) tenha sido excedido o prazo fixado para a contratação temporária ou a função desempenhada seja de necessidade permanente do Poder Público contratante; c) as atribuições cometidas aos servidores contratados por tempo determinado não se inscrevam nos casos previstos em lei como de necessidade temporária de excepcional interesse público; d) as atribuições dos ocupantes de cargos em comissão não sejam de chefia, direção ou assessoramento.

Se a falta de aperfeiçoamento dos vínculos jurídico-administrativos na contratação temporária de servidores e na ocupação de cargos em comissão não converte o regime estatutário em regime celetista, idêntico raciocínio há de abarcar nomeações ou ocupações ilícitas de cargos efetivos, não havendo fundamento jurídico válido para a Justiça do Trabalho apreciar demandas atinentes a servidores que mantenham vínculos eivados de nulidade com o Poder Público.

Ocorre que a própria Constituição Federal, nos arts. 51, IV, 52, XIII e 61, § 1°, II, "a", autoriza o Senado Federal e a Câmara dos Deputados a disporem sobre a criação, transformação ou extinção de cargos, empregos e funções de seus serviços e, ainda, o Presidente da República a propor leis de iniciativa privativa que disponham sobre a criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração, permitindo-se, portanto, a existência de empregos públicos nas pessoas jurídicas de direito público.

Nesse passo, conforme preleciona a doutrina administrativista, mesmo após o julgamento da ADI n. 2.135-DF pelo STF e o restabelecimento do regime jurídico único na Administração Pública direta e indireta, autárquica e fundacional, este regime não é obrigatório para todos os servidores de pessoas jurídicas de direito público, mas que "as atividades básicas estejam sujeitas ao regime de cargo, isto é, estatutário, enquanto algumas remanescentes, de menor importância, sejam exercidas sob regime de emprego"1, como as relacionadas "à prestação de serviços materiais subalternos, próprios dos serventes, motoristas, artífices, jardineiros ou mesmo de mecanógrafos, digitadores etc., pois o modesto âmbito da atuação

Page 222

destes agentes não introduz riscos para a impessoalidade da ação do Estado em relação aos administrados caso lhes faltem as garantias inerentes ao regime de cargo"2.

Destarte, nos casos de autorização em lei federal, estadual, distrital ou municipal para contratação de servidores lato sensu sob o regime celetista, havendo ilicitude ou desvirtuamento nestas contratações realizadas por pessoas jurídicas de direito público, a competência para dirimir os respectivos litígios é, iniludivelmente, da Justiça do Trabalho.

Também é evidente que quaisquer controvérsias ocorridas entre empregados públicos e empresas públicas ou sociedades de economia mista estão sob a competência da Justiça do Trabalho, incluindo ilicitudes nas respectivas contratações.

Convém salientar que a aplicação destas balizas aponta para a possibilidade de se modificar a Súmula n. 363 do TST, cuja partitura é...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT