O que a justiça consensual italiana tem a ensinar ao Brasil: patteggiamento e Projeto Moro

AutorJosé Henrique Kaster Franco
CargoDoutor pela PUC-SP
Páginas209-242
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Revista Judiciária do Paraná – Ano XV – n. 19 – Maio 2020
O que a justiça consensual italiana tem a ensinar
ao Brasil: patteggiamento e Projeto Moro
José Henrique Kaster Franco
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Doutor pela PUC-SP
Resumo: O Projeto Moro, por vezes chamado de Projeto
Anticrime, pretende abrir as portas do país à justiça consensual
de vez por todas. É certo que se inspirou especialmente no
direito processual penal italiano. O patteggiamento, ou mais
precisamente, a applicazione della pena su richiesta delle
parti, está previsto nos artigos 444 a 448 do CPPI. Atualmente
dividido entre: a) patteggiamento ordinario (ou minor), para
agentes investigados por crimes punidos com pena de até
dois anos; b) patteggiamento allargato, para crimes que
podem alcançar até 11 anos de prisão. No Brasil a defesa
não pode produzir prova na fase de investigação, assim, é
ilegítima a aplicação de pena baseada apenas no inquérito.
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tende abrir as portas do país à justiça consensual de vez por todas. No
texto apresentado ao Congresso é possível notar a inuência de prá-
ticas bem conhecidas no direito norte-americano, mas é certo que se
inspirou ainda mais acentuadamente em outras fontes, especialmente
no direito processual penal italiano, nossa matriz jurídica há décadas.
Neste trabalho analisa-se o patteggi amento, coração do direito
consensual italiano, cotejando-o com o Projeto Moro. Estar atento a
essa consolidada experiência inserida em uma tradição de civil law
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similar à nossa pode nos poupar décadas de problemas, não somen-
te pela proximidade dos sistemas, mas pela similaridade histórico-
-cultural entre os dois países, ao lado das próprias opções políticas
do projeto, que foi buscar categorias típicas do contexto italiano – a
exemplo do criminoso habitual ou prossional, criação de Ferri que
dista 140 anos ou então a previsão de maior participação do juiz no
controle do pacto, o que não ocorre no contexto anglo-saxão mas é
corriqueiro para os italianos, sugerindo o acerto da escolha por este
estudo comparado.
A ideia motriz, a partir daquele consolidado modelo de justiça
consensual europeu, é vericar a compatibilidade da proposta de
Moro com nossa tradição constitucional, na qual estão bem estabe-
lecidos princípios como o contraditório, a ampla defesa, a indisponi-
bilidade da ação penal, o nulla poena sine iudicio e a razoável duração
do processo.
Antecipa-se que não se fará a condenação das propostas de Moro
como um todo, mesmo porque a giustizia consensuale é daquelas ten-
dências mundiais que parecem não ter volta. Mais sensato, portanto,
seria adequá-la da melhor forma possível a um direito penal e pro-
cessual que não ignore direitos e garantias.
O processo penal italiano
O Código de Processo Penal Italiano (CPPI), de modelo acusa-
tório e baseado especialmente nos princípios do contraditório, ora-
lidade, imediatidade, imparcialidade e justo processo, foi aprovado
em 1988 (Legge Vassalli) e passou a viger em outubro de 1989, subs-
tituindo o Codice Rocco, de matriz fascista e que serve de base ao
nosso Código de Processo Penal (CPP).
O procedimento ordinário italiano é, fundamentalmente, dividi-
do em três partes: a) indagini preliminari (investigação); b) udienza
preliminare (audiência preliminar); e c) dibattimento (instrução e jul-
gamento). Na fase de investigação, indagini preliminari, os atos nor-
malmente estão a cargo do Ministério Público, auxiliado pela Polícia
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Judiciária, na qual são produzidos elementos de convencimento que
fundamentarão futura demanda penal. Na fase de instrução, esses
elementos são “repetidos”, isto é, produzidos efetivamente sobre o cri-
vo do contraditório. Embora a produção de provas pelo Ministério
Público seja o mais comum, o artigo 7º da Lei 397/00, criou o artigo
327-bis do CPPI, segundo o qual o defensor pode desenvolver in-
vestigação própria para alcançar elementos de prova, valendo-se até
mesmo de prossionais como investiga-
dores privados e peritos. Este dispositivo
tem por base o artigo 24 da Constituição
italiana, o qual dispõe que o direito de
defesa é inviolável em todos os níveis e
espécies de procedimentos. Mesmo uma
investigação preventiva, antes de que seja
instaurado qualquer procedimento pe-
nal, é admitida no artigo 391-nonies do
CPPI.
Para a produção de algumas provas
especiais, como no caso de testemunhas
ameaçadas ou então de provas periciais,
mesmo na fase investigatória, dá-se a par-
ticipação do juiz, garantindo o contra-
ditório, e justamente por conta disto as
provas podem ser usadas na fase de instrução sem necessidade de
refazimento.
A fase de investigação começa com a notícia do crime e vai até o
requerimento de envio do procedimento ao juízo ou até o pedido de
arquivamento pelo Ministério Público (art. 326 a 415-bis). O último
ato da fase investigatória é aquele em que o Ministério Público no-
tica formalmente o investigado sobre os elementos já produzidos
(art. 415-bis). O investigado é advertido acerca de várias prerrogati-
vas que o socorrem, como a de apresentar memoriais com os argu-
mentos defensivos, produzir documentos, depositar as investigações
já realizadas pela defesa, requerer à acusação que realize outros atos
de investigação e ser ouvido pessoalmente.
O procedimento
ordinário italiano é,
fundamentalmente,
dividido em três
partes:
indagini
preliminari
(investigação);
udienza preliminare
(audiência
preliminar);
dibattimento
(instrução e
julgamento)
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