O Que é o Juízo?

AutorFrancesco Carnelutti
Ocupação do AutorAdvogado e jurista italiano
Páginas73-91

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O direito é luta. À famosa fórmula de Ihering: der Kampf um’s Recht, ousaria acrescentar: der Kampf im Recht. Certamente, uma contradição! Não deveria o direito procurar a paz? Assim é a vida. Fé e dúvida parecem se contradizer; todavia, bem disse Unamuno que “fe que non duda es fe muerta”. Assim é a pureza e o pecado; assim a luz e a sombra. Logicamente o problema se resolve desvelando o equívoco entre oposição e negação e, por isso, esclarecendo que a negação é insuficiência; não o contrário, mas o defeito da luz é sombra como o defeito da pureza é o pecado. Por isso, não há oposição entre a guerra e a paz; também a guerra é uma insuficiência dos homens, os quais devem superá-la para alcançar a paz. Justamente porque no direito se combatem o

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fato e a lei, o direito não pode limitar-se à luta entre eles, mas deve superá-la.

Aqui se descobre o erro não somente dos juristas da escola penal positiva mas de todos aqueles cuja ciência detém-se na oposição da lei e do fato: no lugar da antiga indistinção coloca-se hoje entre os dois termos uma distinção bem exata; mas a ciência não continua além. Lei e fato; todos os nossos sistemas, incluída na primeira edição da minha Teoria geral do direito, apóiam-se sobre uma estrutura binária. Quer dizer que, como observei há pouco, a ciência se limita a separar os elementos do direito e não continua pedindo como se devam combinar.

Nos últimos tempos o princípio da divisão do trabalho, que se afirma cada dia mais no campo científico, empurrou essa orientação ao grau extremo, pelo que acabou descobrindo o princípio do remédio. Os penalistas mais rigorosos distinguem, como temos visto, o delito – instituto jurídico do delito – fato com o resultado de limitar a ciência deles no estudo do primeiro; o crime-fato é deixado às indagações dos criminologistas e subtraído aos juristas. Esse movimento em direção à purificação da ciência jurídica percebe-se menos claramente na matéria civil; todavia, também os

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civilistas começam a deixar aos cultores da técnica mercantil o estudo de seus fatos principais e, em primeiro plano, do contrato. Assim, a ciência jurídica, enquanto se separa da sociologia, tende a se isolar na nomologia.

O que gostaria de mostrar nessa meditação é não tanto a insuficiência de tal concepção, quanto a maneira de superá-la.

Iudicium. A mesma raiz de ius. Se os glotólogos não admitem o parentesco entre ius e iungere, a reconhecem pelo menos entre ius e iudicium ou iudex. O iudex dicit ius (ius – dicium); e o ius se revela dizendo. Corre entre ius e iudicium a mesma diferença (que corre) entre espírito e corpo: iudicium é a encarnação de ius. Podemos, depois disso, nos iludir de conhecer o pensamento sem estudar a palavra, que o encarna? E, da mesma forma, o ius sem o iudicium?

Certamente, a ciência jurídica alemã do século passado merece a gratidão do mundo antes de tudo pela distinção, que devemos a ela, entre direito material e direito processual. Nos tempos de Roma esses dois aspectos do direito não se podiam separar porque o primeiro era quase total-mente enredado no segundo. Mais tarde, quando

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a figura do juiz perdeu o primado sobre a cena do direito, cedendo-o ao legislador a obscuridade, na qual viveu longamente o processo, não permitiu aos juristas de concebê-lo nem como direito, nem como objeto do direito; o sinal dessa inferioridade se deu na fórmula francesa da procédure civile ou pénale, que se opunha ao direito civil ou penal. Justamente por merecimento da ciência alemã o processo superou a crise convertendo-se a procédure civile ou pénale no Prozessrecht, isto é, alinhando-se o direito processual ao lado do direito material e perfilando-se essa distinção como um dos fenômenos para o estudo do direito. Sobretudo por esse mérito o pensamento alemão dominou ao longo de todo o século oitocentos e por poucos anos depois a ciência jurídica do mundo todo.

Naturalmente, nos primeiros tempos da exportação dessas ideias, os povos importadores não tiveram plena possibilidade de crítica. Os alemães dominavam e os outros eram dominados. Mas, aos poucos, como sempre acontece, o entusiasmo cedeu lugar a uma avaliação mais justa dos merecimentos e dos defeitos. Final-mente, foi possível perceber que a ciência processual alemã fica, malgrado tudo, na superfície. O seu avançar sobre a fase precedente foi, sem

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dúvida, de grande importância; todavia, faltam os fundamentos. Naturalmente, os fundamentos da ciência jurídica, como de qualquer outra, estão fora dela; por isso se constroem com pesquisas metajurídicas ou, em geral, metacientíficas; mas aqui se encontram as dificuldades mais graves pelo pesquisador. De qualquer forma, a ciência não pode achar um terreno sólido debaixo de si sem essa fadiga.

Provavelmente, o sinal da superficialidade da ciência moderna processual está na sua denominação. Uma vez se falava, na Itália, de direito judiciário. Hoje, esse adjetivo não parece de bom gosto; a moda alemã não admite outra fórmula que não seja aquela do direito processual. O próprio jurista que vos fala adaptou-se nela sem nenhuma profunda reflexão. A insipidez da palavra processo em confronto com juízo passou-me completamente despercebida; igualmente, o parentesco entre iudicium e ius. Somente quando, mais tarde, acreditando agora exaurido o meu...

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