Judicializacao das telecomunicacoes no Brasil: disputas sobre direitos dos consumidores e regulacao/Telecommunications services and judicialization in Brazil: between legal disputes over consumer rights and regulation.

AutorVeronese, Alexandre
  1. Introducao

    O artigo focaliza a tematica da judicializacao das relacoes sociais, com atencao especifica ao aumento no contencioso relacionado com a prestacao de servicos em telecomunicacoes. O periodo enfocado obviamente e posterior a privatizacao das empresas do setor e a atracao de novas prestadoras. O estudo do qual deriva a presente comunicacao utilizou como fontes a documentacao produzida pela agencia reguladora, processos judiciais e suas decisoes, bem como entrevistas realizadas com diversos atores relevantes no setor, desde dirigentes da agencia, ate advogados de empresas prestadoras de servicos. O artigo e dividido em tres partes. Na primeira parte, e realizada a resenha da teoria referente a judicializacao da politica e das relacoes sociais. O conhecido paradigma teorico e criticado para demonstrar que o conceito de judicializacao deve ser entendido como parte de um diagnostico amplissimo que deve ser refinado em prol de "teorias de medio alcance", na expressao de Robert K. Merton (1). Assim, por um lado, o uso do conceito permitiu o florescimento de uma gama de estudos que identificaram o Poder Judiciario como uma das engrenagens do sistema politico; porem, por outro prisma, ele possui limitacoes analiticas. A principal delas e a sua ausencia de foco que pode induzir analises amplas, nublando a cognicao especifica dos processos em prol de uma explicacao tao geral e abstrata, quanto desgarrada da realidade empirica. A utilizacao do Poder Judiciario como arena de lutas em prol dos direitos dos consumidores esta imbricada com o fortalecimento das associacoes, do Ministerio Publico e de um amplo contingente anonimo de advogados que utilizaram este espaco como parte de uma estrategia de luta. Logo, conceitos como a mobilizacao social pelo direito, na definicao de Michael McCann, podem e devem ser usados, paulatinamente, para substituir o marco geral e permitir a interpretacao dos dados coletados, como e demonstrado na presente comunicacao. A parte posterior descreve os quatro casos observados, com atencao as decisoes judiciais e diversas entrevistas de campo. O primeiro caso diz respeito a tentativa de decretacao da ilegalidade da assinatura basica na telefonia fixa. Apos milhares de acoes, o Superior Tribunal de Justica (STJ) acabou dirimindo a controversia com a edicao de uma sumula, na qual se expressa que a cobranca de tal tarifa seria licita. O segundo caso judicial e a luta pelo detalhamento das contas de consumo na telefonia fixa, acompanhada do estorno dos valores cobrados e nao demonstrados. Novamente, o STJ acabou aprovando sumulas sobre o assunto, indicando prazos para que o detalhamento fosse realizado. A propria agencia reguladora redefiniu a sua regulamentacao e exigiu o detalhamento das contas, em sintonia com o que estava sendo deliberado nos tribunais. O terceiro caso e a disputa por um novo indice de reajuste na telefonia fixa. Este conflito se iniciou nos canais politicos e, dada sua resolucao, acabou desaguando no Poder Judiciario. Por mais que a definicao judicial da controversia tenha admitido a legalidade da regulacao pela agencia, a mesma empreendeu modificacoes nas normas e determinou a criacao de um indice especifico para o reajuste das tarifas em telecomunicacoes. Por fim, o quarto caso e composto por diversas acoes contra a estipulacao de areas locais e de registro para o sistema de telefonia de longa distancia. O Superior Tribunal de Justica sistematicamente definiu que os parametros da agencia seriam legais e nao deveriam ser alterados pelo Poder Judiciario. Todavia, novamente, apos a massa de acoes, a agencia reguladora empreendeu a revisao das areas definidas inicialmente. Na ultima parte do trabalho e realizada uma apreciacao dos casos relatados, demonstrando que a atuacao do Poder Judiciario, em especial nos tribunais superiores, e marcada por uma tensao entre a atuacao em prol dos consumidores e a manutencao das regras fixadas pela Administracao Publica para regulacao dos servicos. Assim, a tensao pode ser expressa pela dicotomia entre a deferencia do Poder Judiciario a agencia reguladora--e aos seus parametros administrativos--e o ativismo moderado, expresso na revisao judicial dos padroes fixados pela entidade da Administracao Publica. A conclusao do trabalho e que a atuacao e funcao do Poder Judiciario ultrapassa a mera arena neutra de lutas. Assim, e concluido que--apos a finalizacao das demandas--o Poder Judiciario se mostra como um ator relevante no processo de revisao--em termos amplos--da regulacao em telecomunicacoes. Todavia, a sua interveniencia e indireta e gradual, ja que nao ha--usualmente--a definicao de novas regras, como a decretacao da ilegalidade daquelas antes fixadas pela agencia reguladora. A interveniencia se da pelo fato dos processos judiciais induzirem acoes administrativas da agencia, em prol da fixacao de novas regras, sem desconstituir as regras vigentes. O artigo critica um eventual diagnostico otimista, que localizaria os tribunais como instancias de ampla protecao aos direitos dos consumidores com base em dados empiricos. Afinal, as cortes superiores, em especial o Superior Tribunal de Justica e o Supremo Tribunal Federal, possuem sua atuacao marcada por casos evidentes de deferencia judicial a acao administrativa, ainda que--na menor parte dos casos--tenha induzido o veto de determinados regulamentos e acoes da Agencia Nacional de Telecomunicacoes. Os casos da assinatura basica, da luta por um novo indice de reajuste, das definicoes de areas locais e de registro justificam a identificacao de uma atuacao deferente. Somente o caso da discriminacao das faturas em telefonia fixa evidencia uma acao ativa, em prol da revisao da regulacao. Nao obstante isso, a atuacao do Poder Judiciario como instancia re-reguladora fica patente, ja que a agencia notadamente considerou a insurgencia judicial como parte de uma racionalidade que precisava ser incluida nos regulamentos que acabaram por suceder as ondas judiciais. Em sintese, a mobilizacao social dos consumidores pelo direito nao gera a acao judicial de mudanca da regulacao; mas, permite a reacao administrativa em prol do alinhamento em parte ao que era pleiteado judicialmente.

  2. Judicializacao das relacoes sociais: a teoria social e luta judiciaria

    O marco teorico da judicializacao ja esta bastante assentado na literatura derivada das pesquisas acerca do fenomeno, realizadas no campo da sociologia e da ciencia politica (2). Em sintese, pode ser indicado que o conceito de judicializacao foi a razoavel derivacao da constatacao refinada de que o Poder Judiciario, ao longo da decada de 90 do seculo XX e depois, comecava a ganhar maior importancia relativa no contexto das instituicoes politicas. O motivo para tal incremento certamente varia de acordo com cada contexto nacional e local. Alguns analistas indicavam, por um lado, a solidificacao de uma cultura de direitos. Outros pesquisadores frisavam os impasses da democracia representativa. Neste sentido, e possivel indicar que o consenso residia muito mais na identificacao da externalidade--o fenomeno em si--do que na causa.

    Um dos pontos centrais e a estranheza de verificar que o sistema judiciario figurava como um campo apartado dos estudos da teoria politica e mesmo da sociologia. No que concerne a ciencia politica, tal estranheza ganha contornos mais relevantes, pois e obvio que o processo politico funciona com atencao as "regras do jogo". Mesmo que tais regras sejam alteradas constantemente, o papel dos juristas em sua definicao, ou re-definicao e relevante. Desta forma, o fortalecimento do diagnostico, acompanhado da tentativa de construcao de conceitos para sua compreensao, foi crucial naquele periodo dos anos 90 do seculo passado. Ele deu azo a producao de uma extensa quantidade de estudos, que repercutiu as diversas analises de quadros nacionais, permitindo fortalecer um campo de pesquisa. Para alem de listar a variada gama de trabalhos produzidos, cabe identificar a emergencia de uma area academica, relacionada ao presente estudo: o uso do direito--e do sistema juridico--para o avanco de demandas sociais. No Brasil, tal campo ficou adstrito ao conceito de judicializacao das relacoes sociais, em um paralelo com a area de estudos de judicializacao da politica (3). Se existem criticas severas ao conceito (4), na chave da politica, pode-se frisar que o quadrante da interacao e uso do direito nas relacoes sociais, tem sido pouco refinado, do ponto de vista teorico. E possivel indicar dois motivos para tanto. O primeiro motivo e o evidente interesse no estudo do Poder Judiciario como ator politico, que demandou atencao recente dos pesquisadores. A propria reconstrucao institucional dos sistemas politicos ocidentais, com o reforco dos sistemas de controle judicial de constitucionalidade, em reinterpretacoes do modelo norte-americano e do tipo alemao, despertou ampla curiosidade acerca do eventual comportamento--presente e futuro--dos corpos julgadores ao enfrentar questoes politicas. E inegavel que a alocacao do poder de declarar inconstitucional uma lei (ou, alguns dispositivos dela) por meio de um tribunal de magistrados--oficiais nao eleitos--indica uma mudanca que merece reflexoes. Afinal, e o caso de juizes poderem vetar uma norma juridica aprovada pelo parlamento e sancionada por um presidente, todos oficiais eleitos e representativos. Nos paises da America Latina, bem como no caso de paises europeus que passavam pela re-democratizacao, como Portugal e Espanha, resta evidente que o tema estava colocado na agenda politica e, por derivacao academica. Em consequencia do problema institucional e fatico, pesquisadores debrucaram-se sobre o assunto.

    O segundo motivo esta ligado a dificuldade da tematica do uso do direito como um elemento crucial ao avanco das relacoes sociais. Ele e de dificil diagnostico. Por um lado, ele requer a mensuracao de um determinado estado de um conjunto de direitos. Por exemplo, proximo ao tema do...

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