A Revisão Judicial das Escolhas Orçamentárias e a Efetivação dos Direitos Fundamentais

AutorAlceu Mauricio Jr.
CargoMestre em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Juiz Federal no Rio de Janeiro.
1. Introdução

A noção de uma Constituição com força normativa, que declara direitos e liberdades fundamentais e atribuiu aos órgãos judiciários a tarefa de controlar o respeito a essas normas, coloca em tensão a atuação dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Esta tensão se agrava quando reconhecemos que o conteúdo desses direitos e liberdades fundamentais - vistos como princípios - não é a priori determinado. Da indeterminação do Direito resulta que a jurisdição constitucional exercerá, pelo menos em certa medida, um poder discricionário.

A intervenção judicial nas políticas públicas - e por conseqüência nas escolhas orçamentárias - enfrenta problemas de diversos matizes. O estudo do princípio da divisão dos poderes nos mostra que a Constituição não atribui ao Judiciário competência originária para resolver questões relativas à alocação de recursos, salvo a administração dos próprios tribunais; tais poderes foram endereçados primariamente aos órgãos políticos - Legislativo e Executivo - e mesmo a existência de uma regra geral de competência judicial deve ser vista com cautelas, pois está endereçada a casos extraordinários, e não à elaboração ordinária de políticas públicas.1

O princípio da divisão dos poderes, analisado em sua dimensão positiva, exige também uma relação de adequação - ou justeza funcional - entre a função estatal e o órgão incumbido de sua realização.2 Sob este prisma, o Judiciário também enfrenta problemas, pois nem seu corpo funcional, nem os procedimentos judiciais, são especializados na solução de problemas como a definição de uma política de saúde pública, de habitação, ou de educação, por exemplo, que demandam análise técnica profunda e, principalmente, continuada, que não se encaixa bem na idéia de um processo que busca a extinção no menor prazo.3

Por sua vez, o princípio democrático impõe que as decisões sobre as questões de interesse da comunidade sejam decididas prioritariamente pelos detentores de representação popular, o que não é o caso dos juízes no Brasil, que não são eleitos e possuem vitaliciedade no cargo.4

Não obstante, o princípio da divisão dos poderes e o princípio democrático não impõem uma barreira absoluta à revisão judicial de decisões sobre a alocação de recursos no Estado, mas exigem o respeito - e até uma precedência - das decisões tomadas pelos órgãos políticos. É necessário, então, buscar critérios que tracem as fronteiras de atuação do Judiciário na revisão das escolhas orçamentárias. Certamente, não será possível traçar critérios precisos o suficiente para resolver qualquer questão relativa à implementação de prestações estatais, pois isto seria uma contradição com a própria idéia de indeterminação do Direito. Mas é possível, ao menos, apresentar alguns parâmetros que, a priori, limitam a atuação do Judiciário - resguardando o princípio democrático e o da divisão dos poderes - mas ao mesmo tempo protegem a força normativa da Constituição.

Na tentativa de estabelecer critérios para a intervenção judicial da escolhas orçamentárias, delinearemos questões de natureza formal ou metodológica, ligadas ao controle judicial das decisões legislativas e administrativas. Nestas, destaca-se que, em um Estado Democrático de Direito, os órgãos com representação popular possuem margens de ação - estrutural e epistêmica - que devem ser respeitadas pelo Judiciário, criando uma gradação entre a intensidade do controle judicial e o nível de intervenção - ou grau de não realização - de um direito constitucional, proporcional ao grau de certeza sobre as premissas empíricas que justificam a respectiva intervenção ou não realização.

Em seguida, faremos breve incursão sobre o direito comparado para apresentar a solução adotada pela Corte Constitucional da África do Sul no caso Grootboom, em que se adotou uma interessante combinação de justiciabilidade de prestações sociais previstas na Constituição com o respeito à reserva do possível e à deliberação democrática.

Por fim, apresentaremos uma proposta de roteiro para a implementação judicial de prestações estatais, defendendo que a revisão das escolhas orçamentárias deve ser realizada através do próprio orçamento.

2. O respeito às margens de ação do legislador e do administrador
2.1. A Constituição como "ordem marco"

A introdução de direitos fundamentais sob a forma de princípios nas Constituições provocou uma mudança no conceito de Estado de Direito, pois este não mais poderia ser entendido simplesmente como um Estado-legislação, mas também como um Estadojurisdição.5 Todavia, essa mesma noção de direitos fundamentais como princípios pode gerar dois tipos de riscos.6 O primeiro, como alerta Habermas, é que os direitos fundamentais perdem sua firmeza, que poderia ser garantida unicamente com a estrutura deôntica própria das regras. Adquirindo a estrutura de princípios, os direitos fundamentais perderiam sua característica de "barreira corta-fogo" que está associada ao entendimento deontológico das normas em um discurso jurídico, já que, em caso de colisão, todo o tipo de razões pode adotar o caráter de argumentos que estabelecem fins e, assim, derrubar aquela "barreira". Além disso, pela falta de medidas racionais para levar a cabo a ponderação, os direitos fundamentais como princípios estariam sob o risco de juízos irracionais.7

O segundo tipo de risco aponta para direção oposta. Segundo Böckenförde, os direitos fundamentais entendidos como princípios teriam seus efeitos desdobrados em todo o ordenamento jurídico, gerando eficácia direta em relação a terceiros e exigindo atuação do Estado através do fornecimento de prestações positivas. Entretanto, mais do que isto, a idéia de direitos fundamentais como princípios dá a entender que o ordenamento jurídico em seu conjunto já está plenamente contido na Constituição, só faltando concretizar-se, o que corresponde à sarcástica metáfora de Forsthoff da Constituição como um "ovo jurídico originário", "do qual tudo surge, desde o Código Penal até a Lei sobre fabricação de termômetros". Neste modelo, de acordo com Böckenförde, o legislador perderia toda a sua autonomia, pois sua atividade se resumiria em detalhar aquilo que já está decidido pela Constituição. O processo político perderia consideravelmente a sua significação, transladando-se relevante parcela de poder ao Tribunal Constitucional.8

A disjuntiva entre Estado jurisdicional e Estado de legislação tem paralelo com duas diferentes concepções de Constituição. A Constituição pode ser vista como uma ordem fundamental, se considerarmos nela incluídos todos os princípios jurídicos e possibilidades de configuração da ordem jurídica. Sob esta ótica, segundo Alexy, a Constituição seria equivalente ao "ovo jurídico originário" de Forsthoff, e o legislador estaria limitado a somente declarar - sob o controle do judiciário - o que já fora decidido pela Constituição. Esta concepção de Constituição certamente não seria compatível com o princípio democrático e o princípio da divisão dos poderes.9 Mas a Constituição também pode ser vista como uma ordem marco, em que existe um espaço no qual o legislador não está obrigado a agir nem proibido de agir; um espaço em que o legislador tem permissão para atuar ou para se omitir, ou seja, um espaço de discricionariedade. A metáfora do marco, conforme Alexy, pode ser precisada do seguinte modo: "o marco é o que está ordenado e proibido. O que se confia à discricionariedade do Legislador, ou seja, o que não está ordenado ou proibido, é o que se encontra no interior do marco". 10

2.2. A margem de ação estrutural do legislador

A Constituição como ordem marco preserva margens de ação para o legislador que podem ser de dois tipos: estrutural e epistêmica. O que as normas da Constituição não ordenam nem proíbe se enquadra dentro da margem de ação estrutural do legislador, que, por sua vez, pode ser de três tipos: a margem para fixação de fins, a margem para a eleição de meios e a margem para a ponderação. Para Alexy, o legislador tem uma margem para fixação de fins frente a um direito fundamental quando este contém uma reserva de competência, deixando abertas razões para a intervenção legislativa, ou mencionando razões para intervir, porém não ordena essa intervenção, mas somente a permite quando ocorrerem as mencionadas razões.11

A margem para a eleição de meios surge "quando as normas de direito fundamental não só proíbem certas intervenções legislativas, mas também ordenam a execução de algumas condutas positivas, como quando se trata de direitos de proteção". Esta margem não traz maiores problemas quando os diversos meios são igualmente idôneos para alcançar o fim determinado; o problema surge quando os meios promovem o fim em diferentes graus. Neste último caso, a decisão dependerá de distintas ponderações.12

Surge, desta forma, a questão da margem de ponderação. Alexy, em sua Teoria dos...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT