Os 'jogos vorazes' das crianças trabalhadoras no Brasil

AutorKátia Magalhães Arruda
Páginas213-217

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Ver nota 1

1. Introdução: a luta pela sobrevivência em panem e no brasil

O filme "Jogos Vorazes"2 atraiu uma multidão de espectadores aos cinemas e suscitou algumas discussões sobre o forte conteúdo de violência e opressão trazido pela ficção dramática vivida pelos jovens dos distritos de uma nação chamada Panem, criada depois da destruição da América do Norte. Os jovens, representantes de cada distrito, eram obrigados a participar de jogos transmitidos ao vivo, expostos a obstáculos perigosos, cujo resultado final era a morte de 23 dos 24 participantes, com apenas um sobrevivente.

Panem é composta pela Capital (onde havia riqueza e fortuna) e treze distritos originários. Sabe-se no primeiro livro/filme que o décimo terceiro distrito foi esmagado com toda a sua população posteriormente a uma rebelião contra a ditadura dominante. Cada distrito possui uma atividade especializada: carvoaria, agricultura, madeireira e todos trabalham para sustentar a Capital. Todos os anos, um casal é sorteado entre crianças de 12 a 18 anos para participar dos jogos mortais, como um tributo pela rebelião e uma forma de mostrar o poder opressor a que estavam submetidos.

A personagem principal é Katniss Everdeen, uma garota órfã de pai, morto nas minas de carvão quando ela estava com onze anos. Aos dezesseis anos, ela trabalha e se sacrifica para sustentar a mãe e a irmã mais nova, no lugar de quem se oferece para participar dos "jogos vorazes", salvando assim a vida da irmã e se expondo a riscos, dores e desespero. Ela é oriunda do Distrito 12, uma região muito pobre, sobre a qual descreve a própria Katniss: "morrer de fome não é um destino incomum no Distrito 12. Quem não viu as vítimas? Pessoas mais velhas que não podem trabalhar, crianças de alguma família com muitos para alimentar. Pessoas feridas nas minas."

O livro, no qual se baseia o filme, é mais complexo, e muitos o acusam de não se tratar de literatura infantojuvenil, em razão do intenso drama e da injusta opressão em que vive a maioria dos personagens nesse tipo de literatura muito em moda na atualidade, que mostra uma distopia e retrata o que os filósofos também chamam de antiutopia (o contrário das utopias - sociedades perfeitas e felizes). As comunidades distópicas sempre expressam de forma potencializada um poder tirânico, dominado por um grupo, com ausência de liberdade ou liberdade vigiada.

Como bem observado por Raquel Carneiro3, as distopias tiveram grandes representantes na primeira metade do século XX, logo depois da 1ª Guerra Mundial, com os livros clássicos Admirável Mundo Novo, de 1932, e 1984, de George Orwel, publicado em 1949. O Brasil também apresenta esse tipo de literatura, a exemplo do livro Não verás país nenhum, de Ignácio de Loyola Brandão, lançado em 1981 ou, mais recentemente, o livro Blecaute, de Marcelo Rubens Paiva.

Panem, a nação retratada no livro e no filme, além de tirânica e com fortes desigualdades entre seus habitantes, convive com esse circo de horrores, representado anualmente pelos "jogos vorazes" de suas crianças e adolescentes. A personagem principal assim descreve:

As regras dos jogos vorazes são simples. Como punição pelo levante, cada um dos doze distritos deve fornecer uma garota e um garoto - chamados tributos - para participarem. Os vinte e quatro tributos serão aprisionados em uma vasta arena a céu aberto que pode conter qualquer coisa: de um deserto em chamar a um descampado congelado. Por várias semanas os competidores deverão lutar até a morte. O último tributo restante será o vencedor. Levar as crianças de nossos distritos, forçá-las

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a se matar umas às outras enquanto nós assistimos pela televisão. Essa é a maneira encontrada pela Capital de nos lembrar de como estamos totalmente subjugados a ela".4

A maioria dos expectadores assiste ao grande espetáculo sem senso crítico sobre o seu conteúdo brutal. São poucos os que se sensibilizam ou se solidarizam com a luta dos jovens pela sobrevivência e se identificam com a jovem órfã, obrigada a trabalhar à exaustão.

No entanto, não teríamos no Brasil uma sociedade que se assemelha a Panem?

É claro que não existem jogos televisionados e transmitidos ao vivo para o delírio da população, nem os tributos são pagos com a vida dos inocentes, mas em muitos outros aspectos somos similares: crianças pobres são obrigadas a trabalhar pela sobrevivência, são submetidas a todas as formas de exploração e necessitam ultrapassar inúmeros obstáculos para garantir o pão de cada dia e o amanhecer do dia seguinte.

As desigualdades também são imensas: enquanto uma criança de classe média tem em torno de sete a oito anos de estudo, as crianças pobres têm uma média de 4 anos e 90% apresentam defasagem escolar. Quando estão nas ruas, as crianças têm elevadíssima possibilidade de sofrer transtornos físicos, inclusive violência sexual e uso de drogas, além dos acidentes de trânsito, e, quando trabalham precocemente, têm dobrado risco de acidentes de trabalho.

Aliás, existe no Brasil um grande número de jovens mutilados pelo trabalho irregular. Entre 2007 e 2011, o Ministério da Saúde registrou 5.353 casos graves de acidentes, quase três por dia. Segundo a pesquisa "Perfil do trabalho decente no Brasil"5, morre uma criança por mês em acidentes relacionados ao trabalho.

Portanto, o Brasil possui uma Panem, com a Capital (representada não por uma única cidade, mas por pessoas de bom nível econômico), e incontáveis distritos (representados por jovens pobres) nos quais o Estado Brasileiro precisa atuar de forma mais efetiva para que sobre ele não recaia a responsabilidade de estimular ou, pelo menos, omitir-se diante da morte dessas crianças.

Segundo o Censo de 2000, quando o País registrava 160 milhões de habitantes, 61 milhões eram crianças e adolescentes de 0 a 17 anos de idade. À época, 23% dos brasileiros viviam em estado de pobreza, logo, proporcionalmente, algo como 14 milhões de jovens eram pobres, com renda familiar per capita inferior a ½ salário mínimo e 15% desses estavam em pobreza extrema6.

Ainda, segundo dados da época, um milhão de crianças entre 7 e 14 anos estava fora da escola, 1,9 milhões de jovens analfabetos, 2,9 milhões trabalhavam de...

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