A invisibilidade do Esporte e da Cultura como Direitos da Crianca e do Adolescente/The invisibility of Sport and Culture as Rights of Children and Adolescents.

AutorLopes, Ana Christina Brito

Introducao

Decorridos quase 30 anos da Convencao dos Direitos da Crianca da Organizacao das Nacoes Unidas (ONU), ainda muitas sao as hipocrisias e os desafios, especialmente em realidades perifericas e economicamente dependentes do sistema-mundo, nao raro envolvidas com o "desenvolvimento do subdesenvolvimento" (1), como infelizmente e o caso do Brasil.

A proposta do presente texto foca em dois direitos garantidos tanto pela Convencao quanto pelo Estatuto da Crianca e do Adolescente (Lei 8.069/90) e pelo Estatuto da Juventude (Lei 12.852/13) que ainda nao sao suficientemente "levados a serio" (2) pelos poderes e, inclusive, pelas instituicoes do Sistema de Garantia de Direitos (SGD (3)): a cultura e o esporte.

Criancas, adolescentes ou mesmo jovens, na realidade brasileira, estao muito longe do (re) conhecimento da cultura e do esporte como direitos fundamentais, nao obstante tais direitos sejam reconhecidos como parceiros e "vizinhos" desde o texto normativo expresso da propria Constituicao.

Como bem expoem tragedias recentes ocorridas no recem-iniciado ano de 2019, muito do que o Brasil ainda nao e como pais, enquanto espera-se um desenvolvimento social que se anteponha a pura e simples exploracao economica, passa pela hipocrisia, subalternidade e descaso com que sao tratados os direitos fundamentais das criancas, dos adolescentes e dos jovens no que diz respeito a cultura e ao esporte.

Cultura e esporte que, antes de serem concedidos como direitos fundamentais para serem efetivados "se" e "quando" der, sem a devida prioridade, precisam ser compreendidos de modo integrado e articulado com diversos outros direitos correlatos, como, por exemplo, lazer, educacao, profissionalizacao e protecao do trabalho etc.

Apos breve apresentacao descritiva dos campos da cultura e do esporte na perspectiva eminentemente legislativa a partir de determinado recorte, pretende-se examinar, igualmente sob certa delimitacao, qual o espaco efetivamente ocupado pelo poder publico e pelo Sistema de Garantia de Direitos (inclusive o proprio sistema de justica), respectivamente, para a promocao e para a fiscalizacao desses esquecidos e relevantes direitos.

  1. O direito a cultura e ao esporte na legislacao brasileira

    Passa-se a expor de maneira brevemente descritiva qual a localizacao da cultura e do esporte na legislacao brasileira vista sob tres perspectivas: a Constituicao Brasileira de 1988, o Estatuto da Crianca e do Adolescente de 1990 e o Estatuto da Juventude de 2013 (4), o que, tanto no primeiro como no segundo caso, precisa ser feito sempre a luz da Convencao dos Direitos da Crianca da ONU de 1989, normativa internacional da qual o Brasil e signatario e que, portanto, integra o ordenamento juridico nacional, seja pelo Decreto n. 99.7 10/90 (5), seja na forma do artigo 5 da Constituicao e seus paragrafos segundo e terceiro (6), sempre devendo servir como referencia hermeneutica.

    A Convencao dos Direitos da Crianca, definida, no seu artigo 1, como "todo o ser humano menor de 18 anos", em diversos de seus dispositivos, demonstra a importancia dos direitos culturais e esportivos. Veja-se.

    De inicio, o artigo 4 (o) dispoe que, com relacao aos direitos culturais, os Estados Partes adotarao "medidas administrativas, legislativas e de outra indole com vistas a implementacao [...] utilizando ao maximo os recursos disponiveis e, quando necessario, dentro de um quadro de cooperacao internacional".

    O artigo 23 assegura "direito a uma vida plena e decente" de modo a garantir dignidade, autonomia e facilitar participacao ativa na vida em comunidade, deixando claro que o desenvolvimento pessoal inclui o dominio cultura.

    O artigo 27 exige que o Estado reconheca "direito a um nivel de vida suficiente", inclusive para permitir o desenvolvimento (~)fisico, mental, espiritual, moral e social (~), sendo seguido pelo artigo 30 que, especialmente para as minorias etnicas, religiosas, linguisticas ou de origem indigena, assegura o direito de cada crianca ter "a propria vida cultural".

    O artigo 31 assegura expressamente "o direito de participar em jogos e atividades recreativas proprias da sua idade e de participar livremente na vida cultural e artistica", inclusive com o alerta de que para o respeito e a promocao desses direitos cabe aos Estados partes o encorajamento da "criacao de oportunidades adequadas, em condicoes de igualdade, para que participem da vida cultura, artistica, recreativa e de lazer".

    1.1. O direito a cultura e a sua construcao na Constituicao da Republica de 1988

    Independente de segmento etario, diversas sao as passagens da Constituicao Brasileira sobre a cultura.

    O artigo 4, paragrafo unico, menciona a necessidade de se buscar a integracao cultural com os povos da America Latina.

    O artigo 5, LXXIII, assegura a possibilidade de acao popular a qualquer cidadao para proteger o patrimonio cultural.

    O artigo 23, III, estabelece a competencia comum entre os entes federados (Uniao, Estados, Distrito Federal e Municipios) para a protecao de obras e bens de valor historico, artistico e cultural; o mesmo artigo 23, no seu inciso V, afirma que essa mesma competencia comum precisa proporcionar os meios de acesso a cultura.

    Da mesma forma, o artigo 24, VII, assegura a competencia legislativa concorrente para a Uniao e os Estados para a protecao do patrimonio cultural e para tratar da cultura ao lado da educacao, do ensino, do desporto, da ciencia, da tecnologia, da pesquisa, do desenvolvimento e da inovacao.

    Posteriormente, o artigo 30, no inciso IX, estabelece ser competencia dos Municipios a protecao do patrimonio historico-cultural local.

    Mais adiante, em capitulo que trata "da educacao, da cultura e do desporto", no artigo 210, fala-se da importancia de fixacao de conteudos para o ensino fundamental de modo a assegurar uma formacao basica comum e o respeito aos valores culturais e artisticos, nacionais e regionais.

    Ate que se chega aos pouco estudados artigos 215 e 216 da Constituicao, que tratam da cultura como direito que o Estado deve garantir a todos o seu pleno exercicio, inclusive com acesso as fontes e origens, com apoio e com incentivo, estabelecendo algumas diretrizes.

    O artigo 215 fala em cultura popular, indigena e afro-brasileira e de outros grupos participantes do processo civilizatorio nacional; no mesmo dispositivo, no seu paragrafo terceiro, preve-se um "Plano Nacional de Cultura" de modo a conduzir a determinados objetivos.

    O artigo 216, por sua vez, trata de conceituar a ideia de cultura, prevendo a possibilidade de fundos estaduais de fomento a cultura, enquanto que o artigo 216-A trata de delimitar o que seja "O Sistema Nacional de Cultura", definindo os seus principios e a sua estruturacao, aspecto ultimo que preve, entre outras iniciativas, conselhos, conferencias, planos, programas e sistemas.

    Com todas essas proposicoes, nao se pode dizer que a Constituicao nao tenha se preocupado com a cultura como direito. Por outro lado, dai a ocorrer o efetivo cumprimento dessas normas na realidade vai uma grande distancia.

    1.2. O direito a cultura na perspectiva do Estatuto da Crianca e do Adolescente (Lei 8.069/90)

    Ja na abertura do Estatuto da Crianca e do Adolescente, no artigo 4, estabelece-se como dever da familia, da comunidade, da sociedade em geral e do poder publico "assegurar, com absoluta prioridade, a efetivacao dos direitos referentes" a cultura e ao esporte.

    Conforme se observa no Capitulo IV do mencionado Estatuto, composto pelos artigos 53 a 59 no Titulo II que trata de direitos fundamentais, percebe-se que a concepcao do direito a cultura se deu de modo conjunto nao apenas com a educacao e o lazer, mas tambem com o esporte.

    Especificamente em relacao a cultura, o artigo 58 estabeleceu que o processo educacional deve respeitar "os valores culturais [...] proprios do contexto social da crianca e do adolescente, garantindo-se a estes a liberdade da criacao e o acesso as fontes de cultura".

    Para alem disso, no mesmo sentido, alcancando tambem o esporte, o artigo 59 estabeleceu que "os municipios, com o apoio dos estados e da Uniao, estimularao e facilitarao a destinacao de recursos e espacos culturais voltados para a infancia e juventude.

    Mais adiante, o artigo 71 definiu que a crianca e adolescente tem direito a cultura, tudo de modo a respeitar sua "condicao peculiar de pessoa em desenvolvimento".

    1.3. O direito a cultura de acordo com o Estatuto da Juventude (Lei 12.852/13)

    Nos parametros da legislacao brasileira, enquanto o Estatuto da Crianca e do Adolescente bem define crianca como todo ser humano com ate 12 anos incompletos, posicionando o adolescente como aquele que tem de 12 a 18 anos incompletos--e se a Convencao da Crianca da ONU de 1989 atende a toda esta faixa etaria, o Estatuto da Juventude, embora considere jovens sob ponto de vista legal todas as pessoas com idade entre 15 e 29 anos (artigo 1, paragrafo primeiro), tem sua aplicacao prioritaria para jovens de 19 a 29 anos (artigo 1, paragrafo segundo).

    O Estatuto da Juventude, ao longo dos seus 48 artigos, que se divide em duas grandes partes (os Direitos e as Politicas Publicas de Juventude--artigos 1 a 38 e o Sistema Nacional da Juventude--artigos 39 a 48), a partir da definicao de oito principios estruturantes ja no seu artigo 2 (autonomia, emancipacao, valorizacao e promocao da participacao social e politica, reconhecimento do jovem como sujeito de direitos, promocao de bem-estar, desenvolvimento integral, respeito a identidade e diversidade, promocao da vida segura, solidariedade, nao discriminacao e valorizacao do dialogo e convivio), deu um significativo destaque para a cultura como direito.

    O Capitulo II do referido conjunto de normas expoe, ao longo de 11 sessoes, quais os direitos relacionados a juventude, o que se faz na seguinte ordem: direito a cidadania, a participacao social e politica e a representacao juvenil; a educacao; a profissionalizacao, ao trabalho e a renda, a diversidade e igualdade; a saude; a cultura; a...

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