Intersexualidade

AutorÉrika Pretes
Páginas27-66
CAPÍTULO 1
INTERSEXUALIDADE
“Os seres humanos vêm em uma variedade maravilhosa de tipos: muitos
tamanhos, muitas habilidades, muitas características e muitas formas de
experimentar e organizar o mundo. A variação humana é verdadeiramente
extraordinária.”1
Antes de adentrar as especificidades do que a comunidade
médica entende por intersexualidade e as divergências quanto ao
manejo e tratamento de tais condições, faz-se necessário
compreender o modelo considerado, nesta área científica, como o
“correto” ou o “normal” de determinação e diferenciação sexual
humana, ou seja, a configuração sexual mais típica e esperada nos
seres humanos.
Isso para que, assim, possamos compreender por que a
intersexualidade é considerada por parte dos profissionais de saúde
um “erro”, “desvio” ou “anormalidade” do desenvolvimento sexual
que deve ser corrigido cirurgicamente nos primeiros meses ou anos
de vida, sob pena de representar um risco biológico e social para o
recém-nascido.2
1.1 Determinação e diferenciação sexual
típicas
O processo ou cascata3 de determinação e diferenciação sexual
típicas, formação de testículos ou ovários, bem como o
desenvolvimento dos órgãos sexuais internos e externos, envolve
conhecimento técnico próprio das ciências médicas e biológicas.
Acreditamos que conhecer minimamente como se a
determinação e diferenciação sexual pode lançar luz sobre a
complexidade que envolve a designação sexual em sujeitos
intersexuais.
Neste sentido, buscaremos aqui apresentar de maneira sucinta
o que se sabe, até o momento, sobre como o sexo se desenvolve
biologicamente, de modo a melhor compreender as consequências
ético-jurídicas envolvidas nos procedimentos cirúrgicos e hormonais
realizados em pessoas intersex menores de 18 anos.
Para a historiadora da medicina, Alice Dreger, pessoas pouco
familiarizadas com a diversidade intersexual costumam pensar que
a única variabilidade sexual possível é aquela que se dá entre o
modelo típico e popularmente conhecido dos cromossomos XX
(designado como determinante do sexo feminino) e XY (designado
como determinante do sexo masculino). Já aquelas pessoas que
têm algum contato com a intersexualidade, mas não possuem
conhecimento técnico sobre a variabilidade de fatores que podem
interferir nas etapas de determinação e diferenciação sexual
costumam acreditar que a intersexualidade se dá pelo excesso ou
falta de algo no sexo cromossômico, visto como responsável pela
diferenciação anatômica dos sexos.4
As teorias sobre o processo de determinação e diferenciação
sexual em mamíferos são construídas a partir de análises sobre a
presença ou ausência do cromossomo Y no cariótipo. Assim, com
base nos trabalhos da área da saúde a que tivemos acesso,
subentende-se que o padrão para a análise de tais processos de
determinação e diferenciação sexual é o masculino.5
De acordo com as teorias produzidas pelas áreas da biologia e
medicina, compreende-se que até cerca da semana após a
fertilização, todos os embriões humanos são bissexuais (dois
sexos), nas palavras dos endocrinologistas pediátricos Gil Guerra-
Junior e Andrea Maciel-Guerra6, ou potencialmente hermafroditas:7
“Na quinta semana de gestação, os primórdios gonadais (os tecidos que formarão
as gônadas) surgem como um par de cristas gonadais (genitais) associado a cada
rim do embrião. O embrião é potencialmente hermafrodita porque, nesse estágio,
seu fenótipo gonadal é sexualmente indiferenciado – as estruturas genitais
masculinas ou femininas não podem ser distinguidas, e o tecido da crista gonadal
se desenvolve, formando as gônadas masculinas ou femininas. À medida que o
desenvolvimento progride, as células germinativas primordiais migram para essas
cristas, onde são formados um córtex externo e uma medula interna (córtex e
medula são os tecidos externo e interno de um órgão, respectivamente). O córtex
é capaz de se desenvolver em um ovário, ao passo que a medula pode
desenvolver-se em testículo. Além disso, em cada embrião existem dois conjuntos
de ductos indiferenciados, chamados ductos wolffianos e mulleriano. Os ductos
wolffianos se diferenciam em outros órgãos do trato genital masculino e os ductos
mullerianos se diferenciam em estruturas do trato genital feminino.”8
As etapas do processo de determinação e diferenciação sexual
típicas, podem ser, resumidamente, divididas da seguinte maneira:
na fertilização ocorre a determinação do sexo cromossômico; as
gônadas se diferenciam em testículos (estrutura morfológica
definida como masculina) ou em ovários (estrutura morfológica
definida como feminina);9 a depender da presença da gônada
(testículo ou ovário), ocorre a diferenciação dos genitais internos e
externos; e por fim, ocorre a diferenciação sexual secundária ou
fenotípica, que se pelo desenvolvimento de características
corporais em razão da produção dos hormônios pelas gônadas
(pelos faciais e peitorais, seios).10
Os endocrinologistas pediátricos Durval Daminiani, Nuvarte
Setian, Hílton Kuperman, Thaís D. Manna, Vaê Dichtchekenian
compreendem que:
“O caminho a ser percorrido para que se chegue a um desenvolvimento sexual
normal, quer masculino ou feminino, é bastante longo e sujeito a erros em vários
momentos. Não é somente necessário que os estímulos ocorram em determinadas
estruturas embriológicas, mas também sua cronologia é absolutamente
fundamental para que o processo se realize a contento. Podemos dividir
didaticamente este processo de diferenciação em dois momentos distintos: a
determinação gonadal, que é a transformação da gônada bipotencial,
indiferenciada em testículo ou em ovário; e a diferenciação sexual, que ocorre a
partir da gônada diferenciada e que leva o indivíduo ao seu fenótipo final, incluindo
ductos internos e genitália externa. Se por um lado a determinação gonadal tem
suscitado muitas dúvidas e podemos afirmar, seguramente, que ainda não
conhecemos todos os mecanismos envolvidos nesse processo, por outro lado, o
caminho percorrido a partir da gônada diferenciada tem se tornado mais claro.” 11
De acordo com as geneticistas Maricilda de Mello, Juliana
Assumpção e Christine Hackel, de modo geral, podemos
compreender que a determinação ou desenvolvimento sexual diz
respeito aos processos biológicos que dão origem às gônadas e a
diferenciação sexual envolve os processos posteriores a

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