Intersectional Violence silenced in Judicial Proceedings/ Violencias Interseccionais silenciadas em Medidas Protetivas de Urgencia.

AutorBernardes, Marcia Nina
CargoTexto en portugues - Ensayo
  1. Introducao

    Claudia estava gravida de 4 meses e tinha uma filha de 4 anos com o companheiro. Os tres viviam com o salario dele. Quando Claudia foi pedir R$50,00 para comprar alimentos para a menina, ele comecou a agredi-la no meio da rua. Nao foi a primeira vez, mas agora, Claudia procurou uma Delegacia Especializada de Atendimento a Mulher e solicitou Medidas Protetivas de Urgencia previstas no Art 22 da Lei 11.340/06, de modo a garantir o afastamento de seu companheiro de si e da familia. Embora o gatilho da agressao esteja ligado a subsistencia familiar, nao foi deferida (alias, nem demandada) a medida, prevista no inciso V do referido dispositivo legal, dos alimentos provisionais. Conquanto a integridade fisica de Claudia esteja protegida formalmente, sua exposicao a violencia, em decorrencia da necessidade de contato para alimentacao sua e da filha, segue identica. A capitulacao dos fatos a partir da figura da lesao corporal (art.129 CP) escamoteia o aspecto patrimonial da violencia, de forma que a resposta juridica (afastamento do agressor) parece, na melhor das hipoteses, inocua para fazer cessar a violencia. (2)

    O caso de Claudia ilustra estatisticas majoritarias do cenario fluminense de violencia contra a mulher: o crime de lesao corporal e o primeiro mais praticado contra mulheres no estado do Rio de Janeiro e as medidas indicadas sao largamente as mais requeridas (3). Contudo, a narrativa apresentada permite-nos identificar formas de violencia que a quantificacao estatistica nao explicita, ou nem mesmo sugere. Seu relato nao so situa a vitima do ponto de vista racial e social, mas, sobretudo, situa a violencia por ela denunciada dentro de ambos.

    Este artigo pretende discutir a invisibilizacao de violencias praticadas contra sujeitos vulneraveis em funcao de raca, genero e classe, simultaneamente. Partimos de uma base de dados relativos a Medidas Protetivas de Urgencia (MPU) deferidas por tres Juizados de Violencia Domestica e Familiar contra a Mulher (JVDFM) no estado do Rio de Janeiro, que coletou informacoes relativas a 355 procedimentos, entre os anos 2013 e 2015, em que 187 procedimentos envolviam mulheres negras/pardas e de baixa renda. (4) A partir das narrativas das denuncias das mulheres contidas nessas MPUs, de modo a contornar as invisibilizacoes numericas e estatisticas, buscamos destacar as carencias persistentes na recepcao juridica, que so podem ser percebidas se utilizarmos lentes sensiveis as formas interseccionais de violencia, decorrentes da simultaneidade de formas de dominacao sobre corpos subalternizados. Ressalvamos que, como pesquisadoras brancas, nao podemos experimentar em primeira pessoa o fenomeno que visamos retratar. Entendemos que o recurso as narrativas dos autos, ainda que nao tenham sido produzidas diretamente pelas mulheres denunciantes, mas mediadas pelas equipes judiciais, permite-nos uma maior aproximacao dessas experiencias.

    Os estudos do feminismo interseccional tem destacado o fato de que a simultaneidade das discriminacoes racial, de genero e de classe cria experiencias especificas de violencia. Estas experiencias, contudo, nao consistem em uma simples "soma" das discriminacoes proprias a cada um destes modelos de dominacao, e, por isto, nao sao compreensiveis, e normalmente nem mesmo visiveis, a partir de somente uma destas categorias. Da mesma forma, a violencia (interseccional) contra a mulher negra e pobre tampouco e alcancada pelos metodos tradicionais de estudo da violencia contra a mulher. As proprias categorias "genero" e "violencia de genero" nao dao conta da complexidade das dominacoes que se manifestam nesta forma de agressao. Nem sao as formas de analise regularmente utilizadas capazes de tangenciar estes dados. O tratamento exclusivamente quantitativo e generalizante, via de regra, acaba por reproduzir padroes excludentes insitos as epistemologias dominantes, centradas em sujeitos considerados abstratamente, portanto, sujeitos desencarnados sem raca, sem genero e sem classe. Igualmente, a recepcao juridica da violencia interseccional acaba sendo falha justamente por nao considerar as imbricacoes destas dominacoes, deixando de alcancar efetivamente a mulher em situacao de violencia. Ao destacar mecanismos de protecao voltados para uma "mulher" universal e abstrata, sem raca ou classe, o aparato juridico institucional acaba por excluir as mulheres que experimentam as violencias de classe, raca e genero de maneira simultanea.

    Na secao abaixo, apresentamos o referencial teorico do feminismo interseccional, sobretudo, a partir das obras da estadunidense Kimberle Crenshaw e das brasileiras Lelia Gonzalez e Sueli Carneiro. (5) Mais uma vez, atentas ao insight do feminismo interseccional sobre a relevancia fundamental da experiencia em primeira pessoa para a discussao sobre dominacao, abusamos das citacoes literais. Na secao seguinte, tracamos algumas consideracoes pontuais sobre a violencia domestica contra mulheres subalternizadas a partir do que os casos concretos nos revelaram. Por fim, finalmente, trazemos 15 narrativas que nos pareceram reveladoras das mencionadas lacunas no sistema de justica, relidas a partir do marco teorico da interseccionalidade. (6) Tais narrativas foram selecionadas dentre as que continham maior riqueza de detalhes e organizadas em torno de 5 contextos recorrentes que deflagraram os episodios de violencia denunciados ao Judiciario: (i) usurpacao dos patrimonio dessas mulheres por seus agressores, (ii) ameacas e agressoes atuais nos locais de trabalho das mulheres, (iii) conflitos relativos aos cuidados com os filhos, (iv) disputas acerca da posse e propriedade dos locais em que residem as mulheres, e (v) conflitos decorrentes de dependencia quimica dos agressores. Em todas as narrativas, assim como no episodio envolvendo Claudia, que abre este artigo, usamos nomes ficticios, para proteger a privacidade das vitimas.

    Importante registrar que nossa pesquisa corrobora a importancia da Lei 11340/2006, bem como das Delegacias Especiais de Atendimento a Mulher e dos Juizados Especiais de Violencia Domestica e Familiar contra a mulher, no combate a este problema que vitima mulheres de todas as racas e camadas sociais. Nossa analise, no entanto, na medida em que revela como este problema atinge as mulheres de forma desigual e mais severa para algumas delas, visa a contribuir para alargar a capacidade protetiva da lei e torna-la mais eficiente no atendimento a mulheres negras e pobres.

  2. Sobre o Feminismo Interseccional

    O discurso feminista tradicional foi certeiramente criticado por diversas feministas negras, ja a partir da decada de 1960, que denunciavam como tais demandas, aparentemente generalizaveis, reproduziam interesses e cosmovisoes de mulheres brancas, burguesas e de paises centrais. Como destaca Sueli Carneiro em relacao a bandeira feminista de acesso das mulheres ao mundo do trabalho:

    [...] nos [mulheres negras] fazemos parte de um contingente de mulheres, provavelmente majoritario, que [...] nao entenderam nada quando as feministas disseram que as mulheres deveriam ganhar as ruas e trabalhar ! (7)

    Mulheres negras, alerta Lelia Gonzalez, sempre trabalharam nas "lavouras ou nas ruas, como vendedoras ou prostitutas" e nao reconhecem em si o mito da fragilidade feminina. O corpo da mulher negra, marcado simultaneamente pelo sexismo, pelo racismo, e tambem pelo classismo, adquire uma inteligibilidade social especifica, que se materializa no Brasil contemporaneo nas figuras da mulata e da empregada domestica (8). A superacao desse estado de coisas implica medidas de carater redistributivo, assim como de ressignificacao cultural que nao sao necessariamente as mesmas que beneficiam os homens negros ou as mulheres brancas. O discurso tradicional feminista nao dava conta dessa realidade porque desconsiderava o contexto especifico de dominacao a que estava submetida a mulher negra.

    Kimberle Crenshaw tem sido a protagonista nos Estados Unidos na defesa da perspectiva interseccional de "mulheres de cor" (como as negras, as asiaticas e as latinas, por exemplo), e influenciou o debate brasileiro tambem. Sua teoria dialoga com perspectivas antiessencialistas pos-modernas e politicas de identidade contemporaneas, para discutir o que podemos chamar de situacoes interseccionais. A autora entende que as politicas de identidade defendidas pelos multiculturalistas tem o grande merito, em relacao ao pensamento liberal tradicional, de denunciar "como sociais e sistemicos o que era antes percebido como isolado e individual" (9). Com efeito, Crenshaw lembra que, ao inves de entender as categorias raca e genero apenas como marcas de dominacao e de procurar esvazia-las atraves do principio da igualdade formal, como faria o liberalismo tradicional, versoes importantes do feminismo e de movimentos raciais e etnicos afirmam que "o poder social que delineia a diferenca nao precisa ser o poder da dominacao; ele pode ser a fonte de poder social e de reconstrucao." (10)

    Alinhada a critica pos-estruturalista as identidades essencializadas e homogeneas, Crenshaw anuncia as muitas maneiras de "ser mulher" e de "ser um individuo negro". Nem todas as mulheres sao iguais e nem todos os negros sao iguais, e os individuos que estao situados nos cruzamentos destas muitas camadas de dominacao tem uma perspectiva singular da vida e necessidades distintas. Tanto o movimento feminista, quando age em nome da mulher, quanto o movimento antirracismo, quando fala em nome do individuo negro, reproduzem formulas totalizadoras e invisibilizadoras com relacao aos individuos mais vulneraveis dentro de grupos ja subalternizados: a "mulher" do feminismo, na verdade, e branca, e o "negro" do movimento antirracista e homem. O alerta da autora e o de que as experiencias daqueles situados nos cruzamentos de eixos de dominacao, como raca e genero, sao qualitativamente diferentes das dos individuos que nao estao situados socialmente da mesma maneira. Assim, o...

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