Interrupção da prescrição pelo protesto cambial

AutorVinícius Jose Marques Gontijo
Páginas66-71

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1. Introdução

Seguindo a tradicional conceituação de Cesare Vivante,1 o Código Civil brasileiro conceituou título de crédito a partir de seus três princípios básicos ou características ou, ainda, como preferem outros, atributos essenciais: âcartularídade, a lite-ralidade e a autonomia (art. 887, CC).2

Considerando que todos eles são essenciais para a existência de um título de crédito, não se poderia afirmar, coerentemente, que haveria um deles que se sobreporia aos demais. Contudo, não causa estranheza quando se afirma que a autonomia se trata "de um dos princípios mais importantes do título de crédito, que surgiu a partir do século XIX, quando o título de crédito deixou de ser considerado mero documento probatório da relação causai, para ser entendido como documento constitutivo de direito novo, autônomo, originário e inteiramente desvinculado da relação causal"3

O entendimento da autonomia é foco central deste nosso articulado. A sua perfeita compreensão trouxe, na interpretação dos novos comandos do Código Civil, conseqüências diretas de grande impacto na aplicação e operacionalização dos títulos de crédito, não apenas atípicos, aos quais se aplicam o novo Digesto Substantivo, por força do art. 903 do CC,4 mas também aos títulos de crédito típicos.

Ao aqui examinarmos a autonomia, traremos à apreciação sua aplicação aos chamados títulos de crédito típicos, com a conseqüente interrupção da prescrição pelo protesto cambial (art. 202, III, CC).

2. A autonomia em seus dois aspectos

Considerando o objetivo deste artigo proposto na Introdução, interessa-nos o estudo do princípio da autonomia das obrigações cambiais, tomando-se em perspectiva seus dois aspectos.

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Fran Martins5 já atentava para o fato de que reiteradas vezes os operadores do direito confundem autonomia com abstração. Esta é uma confusão comum, mas inadmissível, uma vez que se tratam de características diversas. Contudo, para que não pairem dúvidas conceituais na compreensão deste nosso artigo, demonstraremos a distinção entre a autonomia e a abstração, bem como demonstraremos os reais conteúdos da autonomia.

De fato, a autonomia está presente em todos os títulos de crédito, sendo-lhes mesmo essencial, enquanto a abstração é meramente incidental, na medida em que existem títulos de crédito, plenamente válidos, abstratos, e outros, também plenamente válidos, causais.

A abstração decorre do fato da lei que criou o título não lhe prever as causas de suas emissão, dessa sorte, como em direito privado o que não é proibido é permitido, o título poderá ser sacado tendo como negócio jurídico subjacente qualquer obrigação lícita, é o caso, por exemplo, do cheque, da nota promissória e da letra de câmbio. Por outro lado, o título de crédito causai é aquele em que a lei que o cria também prescreve os negócios jurídicos que lhe podem ser subjacentes, ou seja, a lei prescreve quais as obrigações que autorizam a emissão do título de crédito, é o caso, também como exemplos, da duplicata, do warrant e da cédula de crédito bancário.

A autonomia, por sua vez, e como leciona João Eunápio Borges,6 pode ser examinada sob dois aspectos, sendo que ambos nos interessam para o tema proposto: primeiro, a autonomia como o desprendimento da relação subjacente ou fundamental que originou o título. O título de crédito não gera novação e não representa apenas e tão-somente um documento comprobatorio da relação subjacente, ou seja, dacausa debendi. O título é obrigação diversa da que lhe é subjacente, é obrigação cartular, "embora conexa, é autônoma em relação àquela".7

Assim, se a origem do título de crédito é um contrato de mútuo ou uma prestação de serviços, esta relação jurídica que lhe é subjacente não se confunde com a própria cambial ou cambiariforme. As obrigações são autônomas.

A autonomia deve ser estudada também sob seu segundo aspecto,8 que nada tem a ver com os negócios jurídicos que deram origem ao título, mas, sim, aos coo-brigados cambiais. Como decorrência da autonomia, tem-se que cada signatário de um título de crédito tem uma relação jurídica cambial exclusiva, que independe das dos demais coobrigados.

A partir da autonomia, os vícios que maculariam a obrigação de um dos coobrigados não se estendem às dos demais, da mesma maneira que as virtudes não aproveitariam. Cada signatário tem uma relação jurídica cambial per si.

Logo, cada um dos signatários de um título de crédito tem uma obrigação exclusiva, que independe da regularidade, da validade ou mesmo da existência da obrigação de outros signatários da mesma cambial ou cambiariforme. Não há relações acessórias, como se dá no direito civil comum. Aqui, a nulidade de uma obrigação não se estende às demais, nem mesmo quando a obrigação do avalizado é nula. Neste caso, a obrigação do avalista persiste sem qualquer reflexo (art. 32 da LUG).

A autonomia, neste contexto geral, é bem sintetizada por Fran Martins, que leciona: "Desse modo, ao falar-se em autonomia deve-se entender que autônomas são as obrigações, resultantes do título, o que significa que uma obrigação não fica a depender de outra para ter validade".9

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3. Interrupção da prescrição pelo protesto cambial

O art. 70 da Lei Uniforme de Genebra (LUG)10 derrogou os prazos prescricionais para as ações cambiais no Brasil, que eram ditados pelo art. 52 do Decreto 2.044, de 31 de dezembro de 1908, reduzindo-lhes o tempo.11

"A prescrição tem como uma de suas características a possibilidade de ser suspensa ou interrompida; os casos de suspensão ou interrupção, não sendo matéria cambiaria, regem-se pelo direito comum".12 Assim, os casos de interrupção da prescrição dos títulos de crédito são ditados pela legislação comum, mas a legislação cambial se orienta pela autonomia que se aplica, inclusive, no que se refere ao instituto da interrupção do prazo prescricional.

Como decorrência lógica do princípio da autonomia que informa os títulos de crédito, agora já mesmo positivado no Código Civil (art. 887), o art. 71 da LUG diz que a interrupção da prescrição levada a efeito contra um dos coobrigados não aproveita aos demais (cada coobrigado tem uma obrigação autônoma). Destarte, tem-se, por exemplo, a interrupção do prazo prescricional em relação ao devedor cambial direto não implicará necessariamente na interrupção da prescrição em relação aos devedores indiretos. Nesse sentido, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça em acórdão assim ementado:13

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