Reconhecimento judicial dos interesses dos animais: um novo tipo de ato ilícito

AutorDavid. S. Favre
CargoProfessor de Direito da Michigan State University College of Law
Páginas13-64

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1. Introdução

Este artigo procura explorar uma questão simples, mas profunda: como deve o nosso sistema jurídico lidar com as reivindicações dos animais por proteção contra danos provocados pelos humanos. Em vez de focar na dor e no sofrimento ou nas habilidades cognitivas dos animais1, este artigo adotará um enfoque não comparativo, baseado na teoria do interesse. Uma resposta inicial é que nosso sistema jurídico pode e deve fazer o que sempre tem feito: ponderar o conflito entre os interesses dos indivíduos em um contexto de política pública, sempre visando uma ponderação eticamente apropriada. O braço legislativo do nosso Estado trata, atualmente, dos interesses dos animais com base nestes fundamentos. Este artigo examina como o atual sistema

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jurídico pondera tais interesses e como os juizes do common law poderiam expandir, de maneira avançada, a consideração dos interesses dos animais. Finalmente, este artigo sugere uma consideração mais ampla dos interesses dos animais, através do reconhecimento de um novo tipo de dano: a interferência intencional sobre um interesse fundamental de um animal2.

2. O atual debate sobre os direitos dos animais

Os primeiro ativistas dos direitos dos animais se concentravam no ponto de vista de que os animais sentem dor e podem sofrer3. Se o ponto de partida da discussão é "animais não deveriam sentir dor", então a natureza do debate não pode alcançar os animais que não têm a capacidade de sentir dor pelo que nós entendemos por dor. Ademais, se o debate se limita a dor, poderia haver inúmeras intervenções humanas, tal como, sofrimento, morte precoce e desenvolvimento mental limitado, os quais não teriam nenhuma repercussão na esfera jurídica. Da mesma forma, se o ponto de partida é auto-consciência, consciência, habilidade lingüística então, aqueles que não se inserirem no padrão não podem integrar a esfera jurídica4, não há razão para restringir o debate sobre reconhecimento das necessidades dos animais pelo nosso sistema jurídico, limitando os parâmetros iniciais. Em vez disso, o campo de atuação deveria ser o mais amplo possível, oferecendo, a cada animal, a oportunidade de ter o seu próprio caso.

A condição de acesso na esfera jurídica é saber se uma enti-dade tem "interesses". Essa noção possui pelo menos duas conotações. Primeiro tanto em homens e cachorros, por exemplo, um ser pode "desejar" um objeto ou um resultado, que é, ter um interesse em um carro ou um osso. Segundo, em humanos e em cachorros, o ser possui "interesse" em viver a vida em um ambiente protegido e sustentável, por exemplo, interesse em não ser mordido e em ter acesso a água potável. Esses interesses

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nunca serão especificamente ou conscientemente articulados no cérebro de um individuo, através de experiências de vida e de informações fornecidas pela ciência, eles são percebidos como presentes. Como utilizado nesse artigo, ambos os aspectos podem ser aplicados, porém o último é o foco primário. Entretanto, apenas um número limitado desses interesses serão reconhecidos e protegidos pelo sistema jurídico.

Na década passada houve uma série de livros e artigos que propuseram mudança significativa na forma que o sistema jurídico trata os animais5.

Steven Wise elaborou um sólido argumento para o reconhecimento de direitos subjetivos para alguns animais com base nos direitos da dignidade, tais como: a liberdade e a igualdade. Os fundamentos desses "direitos" são desenvolvidos extensamente em dois livros6. O cerne dos seus argumentos sugere que os juízes do common law possuem a autoridade inerente para expandir alguns direitos subjetivos para os animais. Uma vez que alguns animais vivenciam o mundo de uma forma similar a dos homens,qualquer diferença entre eles e os homens , é de grau e não de essência. Por conseguinte, pelo menos alguns direitos subjetivos fundamentais familiares aos homens, devem ser estendidos para os animais também7. Os escritos do senhor Wise não sugerem como pensar sobre a ponderação dos direitos dos animais e humanos quando eles estão em conflito. Seu foco é no triunfo da capacidade dos direitos dos não-humanos de se verem livres da escravização da pessoa e da necessidade de desfrutarem da integridade corporal.

Uma importante limitação deste argumento é que as características humanas se tornam o padrão de medida para o julgamento dos deveres jurídicos para com os animais. Outro problema é que parece ser improvável que o próximo movimento no sistema jurídico venha a ser no sentido de garantir qualquer direito absoluto para grupos ou espécies de animais. Ao invés, é mais provável que o próximo passo seja para permitir que os

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interesses dos animais possam competir plenamente com os interesses humanos, ora prevalecendo, ora não.

Alguns escritores, aqueles que defendem os direitos subjetivos dos animais, argumentam que existe um abismo entre humanos e animais o qual pode ser ultrapassado apenas com um esforço significativo, com um ataque ao status quo jurídico8. De um lado do rio está a humanidade e do outro está o conjunto das coisas, no qual os animais estariam incluídos. O rio, a barreira entre eles, é o status de propriedade dos animais. Tais escritores sugerem que enquanto os animais forem propriedades, estes serão excluídos da nossa comunidade jurídica. Ademais, a reforma que eles vislumbram, não é a que existe hoje, mas sim uma outra, onde as pessoas são vegans e o uso comercial de animais está proibido.9Fornecer ao mesmo tempo uma maneira para que os animais tanto cruzem o rio do status de propriedade, quanto criem uma nova visão de comunidade humana, simultaneamente, não é possível. Para tanto é necessária uma revolução no sistema jurídico, em lugar de evolução. Para mudarmos de onde estamos hoje para essa futura comunidade jurídica, deve-se realmente ultrapassar um grande abismo. Contudo, talvez, estes ativistas dos animais estejam olhando para o lugar errado na promoção dos interesses dos animais. Talvez não seja tão difícil quanto eles pensam10; talvez possa ser achado um lugar mais raso onde se cruzar o rio, não dentro de uma futura comunidade jurídica, e sim, na comunidade atual11.

O que aconteceria se déssemos um passo atrás na luta por uma mudança radical no sistema jurídico? E se fosse possível fazer um progresso para os animais sem eliminar o status de propriedade? E se pudéssemos construir o argumento jurídico em benefício aos animais sem exigir sua igualdade com os ho-mens? Existe um lugar onde o conceito de propriedade não é uma barreira para ser um participante da comunidade jurídica atual? Como será mostrado, muitos animais já subiram uma

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série de degraus dentro da nossa comunidade jurídica; eles já estão quase entre nós.

3. O fundamento do interesse na análise jurídica

Como ponto de partida, necessitamos de um olhar conceitual sobre a visão da nossa atual comunidade jurídica. Um olhar sobre os "interesses" proporciona uma visão mais nítida e útil. Um dos mais brilhantes Reitores da Harvard Law School, Rosco Pound, estabeleceu uma análise compreensiva deste olhar há cinqüenta anos.

No seu quarto volume da sua Jurisprudence, Dean Pound usou a análise dos interesses para explicar a existência e a operação do nosso sistema jurídico12.

Ele sugeriu que o sistema jurídico é um efeito necessário e natural da organização social, independentemente do fato dos indivíduos humanos dentro de qualquer sociedade, possuam interesses conflitantes com outros indivíduos e com a sociedade em geral13. Além disso, "o direito não cria tais interesses. São estes que constituem o direito pressionando-o por reconhecimento e segurança"14. O fundamental para a existência de uma sociedade, é a existência de métodos sistemáticos para lidar com conflitos. O que caracteriza uma sociedade civilizada é a rejeição da violência, ou " o poder faz o direito", como um fundamento da organização social. Outros mecanismos de solução dos conflitos, tais como aqueles que existem dentro das comunidades religiosas, da mesma forma possuem limitações inerentes, e como tais, jamais se tornam padrões da comunidade jurídica mais ampla15.

Dentro do nosso contexto jurídico, quais são estes interesses? Pound sugere que os interesses "podem ser definidos como demanda, desejo ou expectativa que seres humanos, individualmente ou em grupos... buscam satisfazer, os quais, portanto, o ajuste das relações humanas e controle do comportamento

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humano através da força de uma sociedade politicamente organizada, exigem que a sociedade leve em consideração"16. Estes

interesses podem ser tanto positivos quanto negativos. Por exemplo, os homens têm interesse em não sentir dor e o desejo de formar famílias. Ambos os interesses são reconhecidos e assegurados pelo nosso sistema jurídico.

Se os humanos possuem interesses ligados a eles, então o papel do sistema jurídico é servir como mediador entre estes interesses. Entretanto, duas considerações servem para limitar a inclinação do...

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