O Instituto da Coisa Julgada nas Ações Coletivas

AutorAlessandra Cristina Furlan
CargoMestre em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) Docente da Universidade Norte do Paraná (UNOPAR)
Páginas25-31

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Introdução

Como ensina Cândido Rangel Dinamarco (1995, p. 26), é dos romanos que o Direito positivo herdou a "singularidade da tutela jurisdicional", assentada no tripé: legitimidade individual, efeitos da sentença limitados às partes e limitação subjetiva da coisa julgada. Sob esse tripé foi criado e sedimentado o Direito Processual Civil pátrio, impregnado de individualismo e considerado o receptáculo natural das controvérsias intersubjetivas.

Nada obstante, com as transformações ocorrentes na sociedade e a proteção dos interesses coletivos, o processo civil deixa de ser instrumento para a solução de lides intersubjetivas para transformar-se igualmente em meio de compor os conflitos coletivos. Mas para que assim seja considerado, é necessária a adaptação dos mecanismos tradicionais do Código de Processo Civil, possibilitando sua aplicação de forma subsidiária na defesa dos interesses coletivos.

Nesta esteira, a regulamentação do instituto da coisa julgada no Código de Processo Civil apenas atende a solução de lides individuais, sendo insuficiente em se tratando de ações coletivas, merecendo adequação para sua aplicação.

Essa adequação, isto é, a disciplina da coisa julgada e sua extensão subjetiva, em se tratando de ações coletivas, mereceu tratamento em leis especiais: Lei de Ação Popular - Lei nº 4.717 de 29 de junho de 1965; Lei de Ação Civil Pública - Lei nº 7.347 de 24 de julho de 1985 e Código de Defesa do Consumidor - Lei nº 8.078 de 11 de setembro de 1990.

1 O Instituto da Coisa Julgada nas Ações Coletivas

O Código de Processo Civil atendendo à solução dos conflitos interindividuais estabelece no art. 472, primeira parte: "A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros."

Trata-se da regra geral na disciplina dos limites subjetivos da coisa julgada, afirmando que a mesma deve ficar restrita às partes do processo, não atingindo terceiros estranhos ao processo.1

O mesmo não ocorre em se tratando de ações para a proteção de interesses coletivos, sendo que nesta espécie é inviável identificar todos os interessados e citá-los para que venham compor o contraditório, em respeito ao princípio constitucional do devido processo legal.

Desta forma, o ponto crucial da diferenciação entre a formação da coisa julgada nas ações individuais e nas ações coletivas reside em determinar exatamente qual o rol de pessoas que terão suas esferas jurídicas atingidas pela imutabilidade da decisão, ou seja, os limites subjetivos da coisa julgada. Se nas primeiras a regra é que somente as partes serão atingidas pela sua autoridade; nas segundas, porém, é imperativa a necessidade de delimitar de maneira diferenciada, o rol das pessoas que deverão ter suas esferas jurídicas atingidas pela imutabilidade. A decisão, nessa última, deve atingir todos os membros do grupo, comunidade ou coletividade, conforme se trate de interesses difusos, coletivos stricto sensu ou individuais homogêneos.2

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É nesse ponto que reside a grande dificuldade: é deveras arriscado que a imutabilidade dos efeitos da sentença venha atingir a esfera de outros interessados, os quais efetivamente não participaram da relação processual, foram privados de serem cientificados e de se manifestarem sobre o decorrer dos atos processuais. Estariam estes interessados à mercê de sentenças que lhes seriam prejudiciais e injustas, atentando contra o princípio constitucional do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. Ainda, não se descarte a possibilidade de conluio entre as partes que litigaram no processo, fraudando seu resultado e atingindo a esfera pessoal desses interessados.

Desta forma, pode ser observado que foram adotadas pelo legislador pátrio diversas soluções no tratamento dispensado à coisa julgada no âmbito das ações coletivas.

A Lei n. 4.717 de 29 de junho de 1965 - Lei de Ação Popular - no art. 18 outorga eficácia oponível erga omnes, salvo a possibilidade de ser improcedente o pedido por insuficiência probatória. Assim procedeu igualmente a Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985 - Lei de Ação Civil Pública - no art. 16 estabelecendo a coisa julgada erga omnes, salvo hipótese de insuficiência de provas. De maior precisão e cientificidade reveste-se o tratamento da coisa julgada pela Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990 - Código de Defesa do Consumidor - no seu art. 103, quando outorga eficácia ultra partes e erga omnes, conforme se trate de direitos difusos, coletivos em sentido estrito ou individuais homogêneos.

2 Da Coisa Julgada no Código de Defesa do Consumidor e na Lei de Ação Civil Pública

Como enfatizado, o sistema da coisa julgada constante no Código de Processo Civil é adequado para os litígios intersubjetivos, dispondo no art. 472 a regra res inter alios iudicata, aliis nec prodest, nec nocet, evitando que terceiros sejam prejudicados pela decisão proferida em processo de que não participaram. Contudo, em se tratando de conflitos de massa é da índole das ações coletivas a extensão subjetiva da coisa julgada para abranger os interessados que não tenham formalmente participado do processo, beneficiando-os com seu resultado.

Portanto, a imutabildade dos efeitos da decisão, quando se trata de tutela coletiva projetará seus benefícios para além das partes que compuseram o contraditório, alcançando as diversas gradações que compõem o universo coletivo - coletividade, grupo, categoria ou classe de um determinado seguimento - sem risco da garantia do devido processo legal. Assim, o sistema utilizado pelo Código de Defesa do Consumidor, seguindo a tradição da ação popular e da ação civil pública foi da coisa julgada secundum eventum litis.

Denota-se que o Código de Defesa do Consumidor adotou técnicas já utilizadas pela Lei de Ação Popular e pela Lei de Ação Civil Pública, mas foi mais além, tendo sido considerado um grande avanço ao tratar minuciosamente cada uma das hipóteses.

É em relação à reciprocidade existente entre o Código de Defesa do Consumidor e a Lei de Ação Civil Pública que se procederá a análise em conjunto dessas duas regulamentações do instituto da coisa julgada no âmbito das ações coletivas3.

Desta maneira, é o art. 103 do Código de Defesa do Consumidor que contém a disciplina da coisa julgada nas ações coletivas, definindo seus limites subjetivos e tratando dos limites objetivos, sendo complementado pelo art. 104 do mesmo Estatuto. O legislador estabeleceu vários regramentos específicos objetivando o resguardo de interesses coletivos, já que para cada uma das espécies de interesses coletivos - difusos, coletivos stricto sensu e individuais homogêneos - o Código disciplinou uma maneira de extensão dos efeitos subjetivos da coisa julgada, conforme o bem tutelado seja pertencente a um grupo maior ou menor de pessoas.

3 Da disciplina da coisa julgada nas ações versando sobre interesses difusos

O art. 103, I do Código de Defesa do Consumidor trata da formação da coisa julgada nas ações coletivas que versem sobre interesses difusos. Estes, segundo o art. 81, parágrafo único, I do Código são "os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato".

O dispositivo afirma que a coisa julgada se formará erga omnes, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação, com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova [...].

Três hipóteses podem ocorrer no caso de uma ação coletiva para a defesa de interesses difusos, segundo o dispositivo. A análise será feita separadamente para cada uma destas possibilidades.

No caso de ter transcorrida a ação e com base na suficiência probatória julgado procedente o pedido, a coisa julgada estender-se-á a todos os interessados, ou seja, repercutirá erga omnes, beneficiando toda a coletividade e também a esfera individual de seus componentes. Formará a coisa julgada material e o pedido não mais poderá ser rediscutido.

Procedente, desta forma, o pedido, haverá ainda a chamada extensão in utilibus da imutabilidade do comando da sentença coletiva: aqueles que sofreram algum tipo de prejuízo individual apresentarão um título executivo judicial para apurar os danos em processo individual de liquidação e execução, sem que tenha que propor nova ação de conhecimento.

Considerando-se ainda que, julgado procedente o pedido na ação coletiva, a via jurisdicional individual para

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discussão da causa não fica propriamente vedada, pois se tratam de ações distintas, com objetos distintos. Nada obstante, poderá ocorrer a extinção do processo sem julgamento de mérito por falta de interesse de agir do autor, pois já existe uma decisão que lhe aproveitará.

Se contudo, esta ação já estava proposta quando da propositura da ação coletiva, o autor, com fulcro no art. 104 do Código de Defesa do Consumidor, poderá requerer-lhe a suspensão até o julgamento desta última. Versando o pedido sobre o interesse coletivo julgado procedente, restar-lhe-á apenas a liquidação e a execução. Caso seja improcedente, por infundada a pretensão, poderá continuar com a ação individual que até o momento...

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