Inscrição em dívida ativa: controle de legalidade e repercussões nos meios de defesa do devedor
Autor | Esdras Boccato |
Cargo | Mestre em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET). |
Páginas | 59-69 |
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Nos últimos anos são de notória evidência as edições de diversas leis reformadoras do Código de Processo Civil na tentativa de tornar mais efetiva a cobrança judicial realizadas através do processo de execução. Podem-se citar como exemplos as Leis ns. 11.232/2005 e 11.382/2006, apesar de não serem as únicas. Contudo, paradoxalmente até poucos anos atrás foi possível observar
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verdadeira recalcitrância de parte da jurisprudência dos Tribunais Regionais Federais em aplicar à execução fiscal as inovações legais introduzidas no Código de Processo Civil, valendo citar a relativa ao art. 655-A, que passou a permitir a penhora eletrônica de ativos financeiros como primeira providência constritiva no processo de execução.1Esta tendência, como seria possível imaginar, estendeu-se para a interpretação das regras jurídicas atinentes aos meios de impugnação previstos ao executado, com destaque àqueles relativos à execução fiscal. Recebimento de embargos de devedor apesar da ausência de garantia integral,2atribuição de efeito suspensivo a eles sem profunda análise dos requisitos do art. 739-A do Código de Processo Civil,3relutância em reconhecer o caráter manifestamente protelatório de embargos de devedor firmado exclusivamente em alegações contrárias à jurisprudência pacificada nos Tribunais Superiores4e, principalmente, admissão quase que irrestrita da chamada exceção de pré-executividade, inclusive com o efeito de obstar a penhora,5 são exemplos de frutos desta hermenêutica.
Ao nosso sentir, um dos motivos a explicar este conservadorismo é a pouca importância que doutrina e jurisprudência costumam atribuir ao significado, relevância e razão de ser do ato administrativo que necessariamente antecede e viabiliza a execução fiscal: a inscrição em Dívida Ativa dos créditos não adimplidos amigavelmente. Sendo ato de controle da legalidade que a Fazenda Pública está obrigada a realizar antes de cobrar seus créditos, as implicações que a inscrição em Dívida Ativa acarreta à segurança jurídica não podem continuar a ser desprezadas.
Por isso, o ato de inscrever em Dívida Ativa merece ser analisado com mais vagar, pois a partir de sua compreensão será possível identificar a lógica de construção das regras
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sobre a execução fiscal e, consequentemente, os equívocos interpretativos cometidos em relação à matéria. Este é, portanto, o objetivo do presente artigo, a seguir explicitado.
A execução fiscal é procedimento judicial através do qual a Fazenda Pública busca a satisfação de seus créditos, tributários ou não, mencionados em Certidão de Dívida Ativa constituída através do ato administrativo de inscrição. Por opção do art. 1º da Lei n. 6.830, o rito especial da execução fiscal aplica-se somente para a cobrança da Dívida Ativa dos entes federativos (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) e suas respectivas autarquias, valendo ressaltar que, por equiparação, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem admitido seu uso pelas fundações públicas.6A inscrição em Dívida Ativa, por sua vez, constitui-se em ato de controle de legalidade praticado por órgão da administração fazendária, através do qual se objetiva apurar a liquidez e certeza do crédito público antes do início da cobrança judicial. Trata-se de um típico ato jurídico-administrativo, deixando de ser um mero ato material de registro nos livros contábeis,7tal como podia ser considerado à época da vigência do art. 39 da Lei n. 4.320/1964 em sua redação original até a promulgação da Lei n. 2.642/1955 (art. 4º, inciso XIII).8Por ser assim, no ato de inscrição, cabe ao órgão competente verificar se os créditos foram regularmente constituídos e se foi respeitado o procedimento administrativo fiscal cabível, de modo a impedir que os que contêm irregularidades formais ou materiais venham a ser cobrados e, posteriormente, cancelados por decisão judicial.9O propósito da inscrição em Dívida Ativa é precisamente evitar que execuções fiscais fadadas ao insucesso sejam ajuizadas e, consequentemente, ocasionem prejuízos não só aos contribuintes, mas também à própria Fazenda Pública, comumente condenada ao pagamento de honorários advocatícios ao executado nesses casos.10Ordinariamente, o ato de inscrever em Dívida Ativa deve comportar, dentre outros, os seguintes requisitos: examinar se houve notificação ou intimação regular do devedor, verificar se os fundamentos legais da constituição do crédito constam no auto de infração e se foi lavrado pela autoridade competente.11
Deste modo, será possível averiguar se os créditos a receber contêm ou não irregularidades formais, tais como são os erros de cálculo, a influírem no exato montante da dívida, a má
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identificação do devedor e do seu domicílio, a incompleta indicação do título legal da dívida ou ausência dela, omissões quanto a outros elementos necessários à validade jurídica formal da certidão de dívida.12
Portanto, em regra, o controle de legalidade cinge-se aos aspectos formais atinentes ao crédito público.13Excepcionalmente, contudo, também se admite que irregularidades materiais nos créditos a receber sejam apuradas no ato de inscrição e, nesses casos, impedida a formalização do respectivo título executivo extra-judicial. Para tanto, é necessário expressa previsão legal a permitir tal juízo à autoridade competente para efetuar a inscrição em Dí-vida Ativa. Por exemplo, é o que ocorre com o art. 18 da Lei n. 10.522/2002, em que se estabelece explícita autorização legal para que os órgãos da Procuradoria da Fazenda Nacional deixem de inscrever em Dívida Ativa créditos devidos a título de determinados tributos declarados inconstitucionais e relacionados em seus incisos.14REVISTA DE DIREITO TRIBUTÁRIO-122
Além dessas irregularidades, a apreciação da prescrição e da decadência também integra o controle de legalidade a ser praticado pelo órgão administrativo. Sempre há de haver a derradeira análise quanto à eventual ocorrência de prescrição e decadência a fulminá-los, antes de serem inscritos em Dívida Ativa.15Caso seja constatado que a constituição do crédito ocorreu após o prazo decadencial, ou que já transcorreu o prazo prescricional entre a constituição definitiva do crédito e alguma das causas de sua inter-rupção, deve ser negada a inscrição em Dívida Ativa, restituindo-se o procedimento administrativo ao órgão público de origem. Nestes casos, evita-se que sejam levados à cobrança judicial créditos que inevitavelmente serão declarados extintos pela autoridade judicial, especialmente se for adotado o entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça de que nem mesmo a espontânea confissão de
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dívida tem o condão de reavivar créditos cujo direito de constituição já havia decaído.16De qualquer modo, caso sejam apurados vícios formais ou materiais passíveis de serem saneados, compete à autoridade competente ao efetuar o controle de legalidade restituir os autos do processo administrativo relativo ao crédito irregular ao órgão fiscal de origem, a fim de que este efetue as devidas correções.17
No entanto, caso sejam constatadas irregularidades que impliquem a extinção do próprio crédito a receber, a inscrição em Dívida Ativa deve ser rejeitada pela autoridade competente, a qual deverá proceder ao arquivamento definitivo do respectivo procedimento fiscal, pois a ela compete dizer a última palavra na esfera administrativa acerca da legalidade do crédito público.18Por causa da natureza dessas providências administrativas, a lei deve outorgar ao órgão jurídico do ente público a atribuição de inscrever créditos em Dívida Ativa, uma vez que a análise da legalidade de atos administrativos em geral e o exame de títulos executivos é atividade típica de advogado.19
Não por outro motivo que, no que tange à Dívida Ativa da União, compete à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional o ato de inscrição, conforme previsto no art. 2º, § 4º, Lei n. 6.830/1980, bem como no art. 12, inciso I, LC n. 73/1993. Semelhantemente, à
Procuradoria-Geral Federal compete apurar a liquidez e certeza dos créditos devidos às autarquias e fundações públicas federais, inscrevendo-os em dívida ativa do respectivo ente (art. 10, Lei n. 10.480/2002).
Logo, somente após o efetivo controle de legalidade é que a Procuradoria competente deverá levar o crédito fiscal à inscrição em Dívida Ativa, lavrando respectivo termo nos moldes do art. 2º, § 5º, Lei n. 6.830/1980, isto é, fazendo constar a qualificação do devedor (inciso I), a natureza, origem, fundamento e valor da dívida (incisos II e III), a fórmula do cálculo (incisos II e IV), a data e número da inscrição (inciso V) e o número do processo administrativo ou do auto de infração (inciso VI).
Do que se expôs até aqui, infere-se que o ato de inscrição não é - ou ao menos não deve ser - providência singela ou despida de detalhes, na medida em que a realização do prévio controle administrativo de legalidade impõe o atendimento dos requisitos acima mencionados. Nas palavras de Luciano Benévolo de Andrade,20inexiste automatismo na inscrição da dívida ativa, pois como ato de controle de legalidade é um ato de inteligência, mesmo nos casos em que o Termo de Inscrição e a Certidão de Dívida Ativa são preparados por processo eletrônico (art. 2º, § 7º, Lei 6.830/1980).21Com ele, objetiva-se realizar a apuração da liquidez e certeza, a fim de impedir a precoce ou a ilegal formalização da respectiva Certidão de Dívida Ativa, assim como o
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consequente ajuizamento de uma ação de execução fiscal fadada ao insucesso. É de se concluir, deste modo, que por força...
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