Inquérito policial, democracia e constituição – Modificando paradigmas

AutorBruno Vinícius da Rós Bodart
CargoBacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Advogado.
Páginas125-136

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Introdução

Afirmar que o inquérito policial caracteriza-se pela inquisitorialidade é lugar comum na doutrina. Sem muita reflexão, os autores utilizam a expressão "inquisitório" para designar três fenômenos distintos: (I) coisificação do sujeito passivo, que se torna mero objeto; (II) ausência de contraditório 1; (III) sigilosidade e escritura.

Ocorre que o jurista não pode se furtar de rever as bases de sua teoria, mormente quando se observa um corte epistemológico no ramo da ciência em que atua. E este corte ocorreu nas CiênciasPage 126Jurídicas com o neoconstitucionalismo, que se caracteriza por uma Constituição invasiva, que condiciona a legislação, a jurisprudência, a doutrina e os comportamentos dos atores políticos. Na lição de Paolo Comanducci (2002), a constitucionalização do Direito pressupõe: (I) a existência de uma Constituição rígida, que incorpora direitos fundamentais; (II) a garantia jurisdicional da Constituição; (III) a força vinculante da Constituição (que não é um conjunto de normas "programáticas", mas sim "preceptivas"); (IV) a "sobreinterpretação" da Constituição (se lhe interpreta extensivamente e dela se deduzem princípios implícitos); (V) a aplicação direta das normas constitucionais, também para regular as relações entre particulares; (VI) a interpretação adequadora das leis.

Se o ser humano é cada vez mais o centro das atenções do Direito, se recebeu tratamento diferenciado da nossa Carta Magna, se os mais importantes jusfilósofos contemporâneos preocupam-se sobremaneira com os seus direitos fundamentais de defesa (abstencionistas em relação ao Estado), prestacionais (de atuação material por parte do Poder Público), e de participação (influência na vida política do Estado), por que haveria o inquérito policial de marchar na contramão?

Eis a minha proposta: rever, em algumas linhas, os conceitos básicos que regem a primeira fase da persecução penal à luz da Constituição. O próximo capítulo responderá à seguinte pergunta: "por quê?". Porque o Processo Penal está imerso em um sistema maior, com o qual deve guardar compatibilidade. Em seguida, indagarei: "como?". A revisão do inquérito policial depende da exata compreensão do papel do indivíduo na sociedade e do papel do Estado perante o indivíduo. A maneira de se proceder a tal releitura, portanto, é seguindo os modernos postulados da democracia. Respondidas estas questões, passarei a enumerar quais as características que o nosso inquérito policial deve conter para adequar-se aos preceitos constitucionais.

Sistema jurídico e sistema processual penal

O que é inquisitorialidade? É possível chamar o nosso sistema processual penal de acusatório e ao mesmo tempo admitir que um de seus componentes seja a sua antítese, ou seja, inquisitório? Fixemos antes alguns conceitos.

O que é sistema? Sobre essa pergunta se debruçou Canaris. É um elemento comum a todas as ciências. O cientista é um atento observador, a procura de lógica no objeto de sua análise. Como o jurista estuda normas jurídicas, procurará sempre aspectos que lhe permitam estabelecer uma correlação entre todas elas2. O conceito de sistema proposto por Canaris envolve sempre duas idéias: (I) ordenação, visto que exprime um estado de coisas intrínseco racionalmente apreensível (prisma ou lado científico do sistema), e, por conseqüência; (II) unidade, pois tem por fundamento um princípio ou pequeno conjunto de princípios que impede(m) a dispersão de seus elementos numa multiplicidade de valores singulares desconexos (prisma ou lado objetivo do sistema). O respeito à lógica sistemática traduz e realiza a adequação valorativa e a unidade interior da ordem jurídica, perfazendo-se em verdadeiro postulado. Os componentes de um sistema jurídico carecemPage 127sempre de justificação axiológica e teleológica (realização dos escopos e valores), e não meramente lógico-formal, visando o seu núcleo fundante, para subsistirem. O sistema, segundo o jurista alemão é uma ordem axiológica ou teleológica de princípios gerais de Direito, na qual o elemento de adequação valorativa se dirige mais à característica de ordem teleológica e o da unidade interna à característica dos princípios gerais (2002, pp. 77-78).

Quando se fala em sistema processual penal, em verdade se está tratando de um subsistema menor em relação ao grande sistema do Direito, com "princípio constituinte" próprio3. Podemos chamar este princípio constituinte de sobreprincípio, princípio estruturante ou princípio vago. Quando o sistema processual penal for estruturado com base no princípio acusatório, deste decorrendo todos os demais princípios, estaremos diante de um sistema acusatório.

Como o sistema de Processo Penal é apenas um dos muitos sistemas que são englobados pelo ordenamento jurídico, o seu princípio estruturante (e, conseguintemente, todas as normas que dele decorram) deve ser compatível com o princípio basilar do grande sistema, aquele que está no seu ápice e informa todas as demais normas jurídicas.

E qual é o fundamento do Direito? Neste ponto os jusfilósofos se dividem. Liberais igualitários, como Rawls e Dworkin, sustentam que os direitos fundamentais são a base e condição para a democracia4. Por sua vez, Habermas traça o raciocínio inverso no seu procedimentalismo ético, colocando o princípio da democracia como justificação para a existência de direitos fundamentais, com supedâneo na teoria do discurso. Há ainda a teoria da legitimação pelo procedimento de Niklas Luhmann, segundo a qual o Direito é válido em razão das decisões que estabelecem sua validez, como um ciclo que se justifica tão somente pela observância dos seus próprios postulados.

Não há aqui espaço para tal discussão. Entretanto, uma conclusão é certa: o Processo Penal deve ser democrático e pautar-se pelo respeito aos direitos fundamentais. Então, dependendo do que se entenda por inquisitorialidade, seremos obrigados a inferir que um procedimento inquisitório é inaceitável em face da nossa Constituição.

Inquisitorialidade

É chegado o momento de definir o conceito de inquisitorialidade. O recurso ao Direito romano, neste ponto, é essencial.

Superada a época em que toda a jurisdição criminal era exclusiva do Rei, observava-se primordialmente a existência de um procedimento público, a que se deu o nome de cognitio, realizado por delegatários do Governante que detinham extensos poderes de iniciativa, instrução ePage 128deliberação, até mesmo devido à ausência de forma definida. A cognitio era iniciada de ofício, não tinha procedimento formal estabelecido em lei e nem partes, sendo que o acusado tinha o dever de colaborar com o magistrado, não podendo negar-se a dar respostas no interrogatório – baseava-se, assim, na chamada inquisitio. Por fim, o inquisidor poderia aplicar a punição (coercitio) de forma discricionária.

Contudo, exceto nos delitos militares e políticos, havia para o acusado a provocatio ad populum, que nada mais era que um recurso da decisão proferida pelo magistrado, levando o feito a julgamento em comícios populares, precedido de um procedimento denominado anquisitio, dividido em três sessões na presença do povo, onde o acusado poderia defender-se e convencer o magistrado a não pronunciar sua pena perante a assembléia popular. Caso fosse condenado ao fim da anquisitio, poderia o acusado interpor a provocatio, e a decisão final (judicium populi) era feita com base em votações secretas. Conforme aponta Geraldo Prado, este período, conhecido como comicial, revelou-se já na República, insuficiente para a necessidade social de repressão da criminalidade. Prossegue o autor, assinalando que com o passar do tempo, o poder de império próprio da inquisitio foi sendo limitado às decisões absolutórias, na medida em que das condenatórias se recorria, transformando-se a inquisitio em mero procedimento instrutório (2006, pp. 74-77).

Após a cognitio, com o advento da República em Roma, é criada a accusatio 5, chamada também de judicium publicum ou quaestio, utilizada em delitos contra a ordem pública, e consistia em conceder ao particular, mais comumente ao ofendido, a prerrogativa de, por sua conta, reunir provas da ocorrência do fato criminoso e imputá-lo a um determinado acusado diante da Assembléia do povo, precedidamente da inquisitio ou não. Dava-se, portanto, a qualquer do povo a oportunidade de mover a ação penal, desde que fundadamente – nemo in iudicium tradetur sine accusatione.

Pode-se notar, destarte, que o modelo processual na República Romana era público e oral, regido pelo contraditório, atribuindo-se exclusivamente às partes a produção probatória.

No Império, que seguiu-se à República, cada vez mais os magistrados concentravam em suas mãos amplos poderes, sob a escusa de se perseguir a verdade real a qualquer custo, chegando mesmo, segundo Manzini, a assumir todas as atribuições que competem hoje ao Ministério Público.

O procedimento de iniciativa do magistrado era exceção e denominava-se cognitio extra ordinem, mas tornou-se a regra no Império de Diocleciano, com a promulgação da de pedaneis iudicibus, ditada por Maximiano. Diversamente do que ocorria na cognitio anterior, na extra ordinem o magistrado tinha vasto poder investigatório, lançando mão, inclusive, da tortura. A oralidade e a publicidade ainda vigoravam mesmo no procedimento extra ordinem, mas, em virtude do amploPage 129poder atribuído ao julgador, o sigilo e a escritura acabaram por prevalecer ao longo do tempo, servindo de inspiração para a Inquisição que viria a ocorrer na Idade Média.

Verifica-se nesta análise histórica, portanto, que a inquisitorialidade tem por característica a reunião das funções de acusar, defender e julgar em um só sujeito, o inquisidor. Aliás, quando a função de defender não compete ao acusado, é certo que...

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