A inconstitucionalidade do fim da contribuição sindical compulsória e o 'quadripé do peleguismo

AutorValdyr Perrini
Páginas216-224

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1. Contribuição sindical compulsória como instrumento da unicidade sindical

A malversação dos suados recursos pagos pelos trabalhadores a título de contribuição sindical por diversas entidades classistas levou a grande mídia que apoia e se beneficia do desmonte do Estado Social ao delírio generalizante com o beneplácito dos mais despolitizados, come-morando em prosa e verso o fim do caráter compulsório da contribuição sindical.

Essa exação de natureza obrigatória é de fato uma herança da famigerada Carta del Lavoro de Mussolini transplantada por Getúlio Vargas em pleno Estado Novo para a estrutura sindical brasileira como uma forma engenhosa de domesticar a tendência sindical anarquista e comunista muito forte naqueles tempos e forjar um sindicato subserviente estruturado dentro de um Estado paternalista.

Conjuntamente com a representação classista na Justiça do Trabalho, a unicidade sindical e o rígido controle do Estado sobre o sindicato, a contribuição compunha, na era Vargas, o que denomino de “Quadripé do Peleguismo”.

Agrega-se a esse “Quadripé” como elemento coadjuvante que exacerba o paternalismo do Estado e, portanto, contribui em muito para o desenho do sindicato assistencialista do Estado Novo, o poder normativo da Justiça do Trabalho.

Pelego, segundo o Dicionário virtual Michaelis refere-se não somente à “pele de carneiro com a lã, geralmente usada sobre a montaria, para amaciar o assento”, mas também, por inspiração dessa utilidade campestre “sindicalista cooptado por órgãos patronais ou do governo” ou “pessoa servil e bajuladora, capacho, puxa-saco”.

A ideia fascista (abstraído na medida do possível o tom pejorativo do termo) de estruturação do sindicato pressupunha essa sucessão de afagos e chicotadas cuidadosamente consolidada com o advento da Consolidação das Leis do Trabalho de sorte a forjar o dirigente sindical como verdadeiro algodão entre cristais, minimizando a luta de classes e forçando uma acomodação artificiosa de interesses ontologicamente divergentes.

O Estado Novo pretendia preservar direitos trabalhistas básicos dos trabalhadores garantindo-lhes a sobrevivência e um mínimo de dignidade, no varejo. No atacado pretendia arrefecer a luta de classes inerente ao antagonismo existente entre os detentores dos meios de produção e os prestadores de trabalho. Assim garantia alguns direitos trabalhistas básicos ao mesmo tempo em que coibia a mobilização da classe trabalhadora para conquistar direitos além dos estabelecidos em lei. Nesse sentido – pasmem – os defensores da atual reforma trabalhista são ainda mais truculentos que os camisas negras de Mussolini e verdes de Plinio Salgado. E geram situações potencialmente bem mais explosivas.

Conclui-se assim que no âmbito da unicidade sindical o que se pretendia era consolidar a existência de um Estado paternalista, que provê os direitos básicos dos trabalhadores, mas não tolera que eles avancem além do previamente estabelecido.

Para um fascista bem-intencionado (se é que isso é possível) o progresso de uma sociedade decorria do máximo de disciplina que se pudesse estabelecer entre os seus integrantes. E atingir essa finalidade pressupunha pleno conformismo dos trabalhadores com os direitos estabelecidos pela ordem jurídica vigente sem maiores perspectivas de avançar além do que o Estado reputava possível em dado momento histórico. Mantinha-se assim a ordem econômica capitalista imune de maiores perturbações.

Nesse quadro assentava como uma luva a figura do sindicato único representativo de uma categoria de trabalhadores, rigidamente monitorado pelo Estado por meio do Ministério do Trabalho tanto no que se refere à sua constituição quanto no que tange ao seu funcionamento.

Só ele era capaz de absorver e refletir a conduta subserviente esperada dos trabalhadores para com o Capital e para com os poderes constituídos, que atuavam para preservar os interesses empresariais. E na sua origem recebia como contrapartida polpudas recompensas pela passividade: ascensão social e econômica meteórica pela via da magistratura classista (era possível ser ministro classista do TST sem sequer ter cursado a Faculdade de Direito) e a receita independente de contrapartida, representada pela contribuição sindical compulsória.

Para amortecer definitivamente o ímpeto mobilizador desse sindicato único o Poder Normativo da Justiça do

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Trabalho atuava como instrumento que retirava do trabalhador a responsabilidade pela conquista e manutenção de seus direitos, garantidos de forma paternalista pelo Estado autoritário. Não era necessário que os trabalhadores fossem à greve pressionar a classe patronal para manutenção ou ampliação dos seus direitos, na medida em que extensas pautas de reivindicação eram submetidas ao exame dos Tribunais do Trabalho por ocasião do ajuizamento dos chamados dissídios coletivos de natureza econômica, que congestionavam as pautas judiciais até o advento da Emenda 45.

Coerente com essa conjuntura paternalista estava o fato de a entidade sindical representar não só os seus associados, mas todos os integrantes da sua categoria. Dessa forma, para se beneficiar das conquistas sindicais e exigir o que a lei estabelece como dever do sindicato, o trabalhador sequer precisava associar-se ao mesmo.

Bastava que fizesse parte da categoria, beneficiando-se da atuação de sua entidade de classe sem precisar integrá-la formalmente responsabilizando-se pelo seu custeio e pela discussão acerca de seus desígnios e das estratégias de mobilização necessárias para persuadir a classe patronal e seus aliados estatais.

Para custear as obrigações legais impostas ao sindicato e viabilizar sua representatividade ampla tanto em relação aos associados quanto no que se refere aos não associados, o Estado fascista paternalista coerentemente concebeu a criação de uma contribuição sindical compulsória exigível de todos os integrantes da categoria, associados ou não. O comodismo do trabalhador terceirizando a luta pela manutenção e ampliação de direitos custava-lhe o preço módico de um único dia do salário do mês de março de cada ano.

Afinal, não era razoável que se impusesse à entidade sindical deveres em relação a associados e não associados, atribuindo-se exclusivamente aos primeiros a responsabilidade pelos custos correspondentes.

Seria uma forma de fragilizar em demasia a organização sindical, que até aos fascistas repugnava propiciar o “enriquecimento sem causa” com as conquistas decorrentes da atuação sindical extensiva aos não associados se os mesmos em nada precisassem contribuir.

Neste contexto, a obrigação de promover a homologação da rescisão contratual estendia-se a todos os empregados integrantes da categoria. O mesmo se diga dos efeitos dos acordos coletivos e convenções coletivas pactuadas, dos dissídios coletivos de natureza econômica e jurídica ajuizados, assim como a extraordinária prerrogativa de substituição processual.

Como todos pagavam essa exação, completamente razoável que os deveres da entidade sindical se estendessem a todos os trabalhadores contribuintes da categoria profissional representados, associados ou não.

2. Contribuição sindical compulsória e a pluralidade sindical

A ideologia do sindicato único contrapõe-se à organização sindical adotada pelos países democráticos após a II Guerra Mundial, uma vez sepultados provisoriamente o fascismo e o nazismo. Eis os fundamentos práticos e teóricos do chamado pluralismo sindical que viceja em praticamente toda a banda democrática do planeta a partir de 1945:

– Liberdade para constituir e implementar o funcionamento do sindicato conjugada com a ausência de controle do Estado na vida sindical de acordo com o que estabelece a Convenção 87 da OIT, bem como fixação de fontes de custeio por iniciativa exclusiva dos associados;

– Adoção de medidas que coíbem a despedida abusiva de sorte a manter o trabalhador protegido contra a ira patronal que comumente recai sobre quem se dedica à organização e funcionamento de um sindicato sério, forte e independente do patrão (Convenção 158 da OIT);

– Proteção jurídica contra atos antissindicais patronais na forma esquadrinhada pela Convenção 98 da OIT coibindo-se a ingerência patronal sobre a organização sindical mediante despedidas arbitrárias e constituição dos chamados sindicatos de fachada ou títeres que tanto fragilizam e escamoteiam a representação da categoria e permitindo-se o exercício do direito de greve de forma ampla e consentânea com o interesse dos próprios trabalhadores.

Nesse diapasão, o pluralismo sindical volta-se para permitir a criação de tantas entidades sindicais quantas as tendências ideológicas e pragmáticas dos trabalhadores sem a camisa de força da unicidade sindical própria do ideário fascista.

No sistema pluralista o sindicato representa apenas seus associados, não se estendendo as conquistas amealhadas aos demais integrantes da categoria associados de outro sindicato ou não associados de nenhuma entidade sindical. Não se compatibiliza com o pluralismo sindical qualquer espécie de paternalismo, colocando-se o Estado Democrático em posição equidistante do Capital e do Trabalho, o que propicia maior mobilização da classe trabalhadora como forma de manutenção (quando ameaçados) e ampliação de seus direitos trabalhistas e sociais.

Já é difícil enfrentar o empregador na busca por melhores condições de vida e de trabalho. Mais complicado ainda é enfrentar o empregador de mãos dadas com o Estado, zelando pela manutenção da ordem capitalista.

Na seara do pluralismo sindical não há, por conseguinte, que se cogitar de contribuição sindical obrigatória para não associados...

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