Inato versus adquirido: a persistência da dicotomia

AutorEmma Otta - Fernando Leite Ribeiro - Vera Sílvia Raad Bussab
Páginas285-311

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Introdução

A noção* de herança de características físicas e psicológicas, bem como a de sua aquisição por influência do ambiente são categorias de pensamento de nossa cultura. Expressões como “tal pai, tal filho”, “dize-me com quem andas [...]”, “é de pequenino que se torce o pepino”, “quem puxa aos seus não degenera”, mostram que a idéia de classificar aspectos psicológicos dos indivíduos, ora como inatos, ora como adquiridos, faz parte da cultura popular.

A observação informal de animais domésticos e de pessoas certamente foi o que deu origem à dicotomia, apesar das enormes complexidades, tanto da transmissão genética, quanto dos efeitos do ambiente. Foram essas mesmas complexidades, no entanto, que impediram que a observação cotidiana, ainda que interessada e intensa, como no caso de criadores de animais, agricultores e educadores, chegasse a algo mais do que alguns conceitos confusos. Por mais que se acumule a experiência ingênua, a trama de semelhanças e diferenças entre pais e filhos é um desafio difícil demais para a informalidade. Somente quando o assunto foi examinado com um esforço científico formal foi possível chegar a uma conceituação coerente da vaga idéia da herança. E os efeitos do ambiente, não obstante todo o empenho científico do século XX, ainda não receberam uma organização conceitual equivalente à da genética.

Há cerca de 135, anos Francis Galton (1822-1911), a propósito destas questões, cunhou a expressão “natureza e criação” ou “natureza e educação” para se referir às duas principais fontes de diferenças individuais – genética e ambiente (PLOMIN E MCCLEARN, 1993). Galton usou os termos da dicotomia, nature versus nurture , parafraseando Shakespeare, que na obra The tempest usou a expressão nature nurture para se referir aos elementos que compõem a personalidade, valendose do sugestivo jogo de palavras sugerido pela referida expressão na língua inglesa 2 (RIDLEY, 2003).

O tema “natureza-criação” continua atual na Psicologia; a dicotomia persiste. Em diferentes áreas recebe diferentes nomes: a) nativismo vs. empirismo, nas áreas de sensação e percepção; b) maturação vs. aprendizagem, na psicologia do desenvolvimento;Page 286c) aprendizagem geral vs. aprendizagem preparada, nas áreas de aprendizagem e cognição; d) hereditariedade vs. ambiente como determinante da variação humana, na psicologia das diferenças individuais (KIMBLE, 1993).

No século XX deu-se um confronto entre os dois pólos da dicotomia, em grande parte devido à oposição entre etólogos e psicólogos behavioristas. Os etólogos, por sua formação zoológica, e entusiasmados com algumas descobertas de grande repercussão, julgaramse proprietários do comportamento. Afinal, depois do enorme progresso do conhecimento biológico de anatomia e fisiologia, teoria da evolução e outros avanços, o comportamento do animal integral era a última área a ser submetida ao pensamento científico. Ao chegar a ela, deram-se conta que os psicólogos a tinham invadido, com estratégia de pensamento e método completamente diferentes do que sugeria a vitoriosa tradição biológica. É verdade que o Behaviorismo recebeu do fisiologista russo Ivan P. Pavlov (1849-1936) um impulso conceitual mais forte, a idéia de condicionamento. No entanto, Pavlov estava longe do Ocidente, e foi fácil superar esse toque bastardo e considerar a Psicologia como proprietária do comportamento. Acresce que o ambiente filosófico predominante favorecia o empirismo, e, assim, o Behaviorismo procurou acomodar todo seu objeto à noção de aquisição, rejeitando, explicitamente, o pólo oposto da dicotomia. E de outras áreas da Psicologia, alheias ou mesmo avessas ao Behaviorismo, não surgiu nenhum movimento forte de resistência contra o predomínio do adquirido sobre o inato. Na obra de Piaget, por exemplo, não obstante sua formação biológica, todo o empenho conceitual e metodológico voltou-se para a aquisição, e pouco mais do que algumas estruturas gerais foram concedidas ao inato.

O confronto era inevitável. Os psicólogos viram nos etólogos uma certa fragilidade conceitual, em comparação com as discussões internas da Psicologia, e também uma lassidão metodológica, em contraste com seus elaborados instrumentos de mensuração e tratamentos estatísticos. E os etólogos denunciavam a ingenuidade ou a pretensão desmesurada de uma Psicologia que não observava a natureza e que se restringia a uma ou duas espécies, colocando-as em ambientes tão artificiais que o comportamento parecia reduzido a algumas reações de preparações fisiológicas, sem dar-lhe oportunidade de exibir toda a sua natureza.

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No confronto entre nativistas e ambientalistas, uma parte importante da questão resulta da complexidade da própria noção de comportamento. Não é fácil descrevê-lo nem medi-lo. Não há unidades adequadas . Nossa linguagem, ao dizermos que este comportamento é inato ou aquele é adquirido, está carregada de imprecisões. Ao dar como certo que, se é inato, não é adquirido, e vice-versa, é enorme a probabilidade de estarmos errados a respeito de componentes ou aspectos do comportamento em questão. Em casos especiais, nos quais estão implícitos vários pressupostos, esse tipo de afirmação pode ser razoavelmente aceito. Ao dizer que o choro de um recém-nascido é inato, ou que um urso, ao andar de bicicleta, está fazendo algo adquirido, sentimo-nos razoavelmente seguros de nossa linguagem. Mesmo assim, pelo menos no caso do urso, precisamos dar como subentendido que a afirmação se refere à montagem do conjunto todo, e não aos seus componentes (equilíbrio, coordenações, etc.).

Contudo, os casos especiais servem apenas como instrumentos de retórica na discussão sobre a dicotomia. Em muitos outros, o que se vê é que a escolha entre inato e adquirido não pode ser feita para o conjunto completo que estiver sendo estudado. Sempre será possível mostrar que este ou aquele componente escapa à noção radical de “puramente” inato ou adquirido. Outra ingenuidade, nessa discussão, é atribuir ao inato características que, teoricamente, ele não precisa ter: inevitabilidade e imutabilidade. E a contrapartida disto é que o fato de sofrer alterações resultantes da experiência não impede que um dado aspecto do comportamento seja inato.

As informações genéticas orientam a construção do sistema nervoso central, assim como os outros sistemas, dando-lhe uma organização que é muito mais complexa do que uma simples máquina de aprender. O estudo do comportamento animal mostra abundantemente que é possível nascer já conhecendo um vasto e relevante conjunto de características ambientais e já sabendo o que fazer diante delas (ALCOCK, 2001).

Nas últimas décadas do século passado, depois de um verdadeiro confronto entre ambientalistas e nativistas, duas conclusões importantes, para certos autores, foram: a) a impossibilidade de qualificar o comportamento como inato ou aprendido, na medida em que ele é sempre produto complexo das duas fontes de determinação;Page 288e b) a necessidade de orientar as pesquisas para a identificação do processo pelo qual os fatores inatos e adquiridos se integram (ADES, 1986; HINDE, 1973). Esta concepção ainda é atual e vem sendo reiteradamente afirmada. Entretanto, o que se tem assistido desde a sua formulação não tem sido uma assimilação efetiva desta idéia, mas sim sucessivos renascimentos da dicotomia. Há uma forte resistência em admitir qualquer controle genético sobre o comportamento, especial- mente o humano, em parte por maus entendimentos do que seja o controle genético. Mata-se a dicotomia e ela ressurge das cinzas, tal qual Fênix. Os reaquecimentos constantes da polêmica são reveladores da necessidade de aprimoramentos conceituais. A nossa tese é que a dicotomia persiste porque ela é necessária. As tentativas de se abandonar um dos lados, especialmente as tentativas de abandonar o inato, têm se revelado pouco úteis.

Emoções

O terreno das emoções é particularmente propício para a identificação das determinações genéticas sobre o comportamento e para reflexões sobre a dicotomia inato-aprendido. Quem nos ensinou a ficar alegres ou a sentir tristeza? A própria palavra desperta emoções e re- mete às emoções reconhecidamente primárias: alegria, tristeza, medo, raiva, surpresa e repugnância, assim como às consideradas secundárias, vergonha, ciúme, culpa e orgulho, e ainda às emoções de fundo, como calma ou tensão. Todas elas universais.

A emoção nos acompanha em nossa vida cotidiana. Tem inspirado os escritores, os músicos e os poetas, e também os etólogos e os psicólogos. Não é por acaso que as emoções estão presentes nos dois extremos da Etologia, desde sua origem até agora. O nome de Charles Darwin (1809-1882), criador da teoria da evolução, que foi um etólogo antes mesmo que a palavra tivesse sido inventada, destaca-se por sua influência em determinar o modo como se pensa hoje a respeito de emoções. A sua obra The expression of the emotions in man and animals , publicada em 1872, é um clássico na área.

Darwin sustentou a natureza inata de grande parte da expressão emocional, baseando suas conclusões em evidências que ainda podem ser consideradas atuais: o aparecimento precoce em bebês, antes de haver oportunidade suficiente de aprendizagem; a similaridade de forma,Page 289contexto e função entre indivíduos com experiências notadamente diferentes entre si, como entre pessoas cegas e com visão normal, e entre diferentes grupos culturais humanos, e, finalmente, as homologias e analogias reveladas pelos estudos comparativos de diferentes espécies animais. Desse modo, o estudo das emoções foi posto no contexto evolutivo, e foi colocada a questão funcional: de que forma uma particular emoção ou um comportamento ajuda na sobrevivência? Darwin produziu uma série...

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