Da impossibilidade de mercados artificiais: o caso da medição da produtividade acadêmica

AutorFábio Barbieri
CargoProfessor do Departamento de Economia, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto (FEA-RP/USP)
Páginas60-79

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Meu palpite, então, é que os falsos lucros da Enron são como as falsas realizações da academia, representadas por montanhas de publicações que ninguém aprecia, nem lê. (WATERS, 2006, p.13-14)

Fábio Barbieri1

1. O problema

Na última década ganhou ímpeto no Brasil a idéia de que a produtividade dos professores nas suas atividades de ensino e pesquisa deveria ser medida objetivamente, a im de facilitar o desenho de mecanismos de incentivos que estimulassem a produção acadêmica, tal como é feito nos Estados Unidos.

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Os economistas, inluenciados pelas teorias de crescimento econômico, que salientam a importância do progresso tecnológico, derivado em parte do esforço de pesquisa acadêmica, consideraram fundamentais medidas que tivessem como propósito o aumento da produção cientíica. Cônscios dos efeitos benéicos da competição, a princípio apoiaram a iniciativa, pois esta representaria a adição de elementos competitivos ao mercado das idéias.

Contrariar a tendência de diferenciar os acadêmicos produtivos dos improdutivos, por outro lado, passou a ser visto com desconiança, especialmente pelo economista, pois este, dada sua formação teórica, não pode se entregar à incoerência de defender seus interesses corporativistas enquanto os denuncia em sala de aula. Ainal, sempre desdenhamos tal comportamento, tão presente em associações de classe como as dos advogados e médicos.

Contudo, com o passar dos anos, conforme os indicadores de desempenho de produtividade acadêmica foram implementadas, cresceu a sensação de que existe algo errado com elas2. Cada “mecanismo de incentivo” empregado resultava não em melhoras de produtividade, mas sim em várias distorções, na medida em que os agentes passaram a responder aos novos incentivos de forma a dedicar cada vez mais tempo à busca dos indicadores objetivos de produtividade, e não a produção em si. Isso acabou gerando: a) um processo de burocratização da pesquisa – a antítese do ambiente competitivo almejado e b) distorções no que se refere ao conteúdo e valor das pesquisas.

O objetivo deste texto é criticar, sob o ponto de vista da teoria econômica, a tendência ao que icou conhecido como o “produtivismo” nas universidades. Na próxima seção, documentaremos algumas das distorções resultantes da tentativa de criar um mecanismo de incentivo “mais próximo àquele existente nos mercados”. Na seção seguinte, forneceremos uma explicação teórica para o invariável surgimento dessas distorções. Veremos como o problema em questão é mais um exemplo da impossibilidade de criar mercados artiiciais que funcionem a contento. Em seguida, focaremos a análise na incompatibilidade dessa política com a idéia de liberdade acadêmica e como isso afeta no longo prazo a própria produtividade da academia. Ao mesmo tempo, discutiremos quais características um verdadeiro “mercado das idéias” possui. Por im, a última seção reúne os principais pontos do texto.

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2. A (necessariamente anedótica) evidência empïrica

Em uma deliciosa sátira da tentativa de desenhar mecanismos que aumentem a produtividade nas universidades, Stigler (1987) nos fala de um jovem reitor de uma universidade sulamericana que decretou que os professores poderiam desaiar outros com um cargo imediatamente superior aos seus em exames competitivos, cuja banca seria composta de professores americanos. Caso ganhasse, o professor trocaria de posto e salário com o perdedor. Ocorreu então uma corrida à biblioteca e professores mais velhos anteciparam a aposentadoria. Porém, surgiu o fenômeno de entesouramento do conhecimento: os especialistas não discutiam com pessoas que soubessem menos que eles e ensinavam assuntos irrelevantes em seus cursos, com medo de perder o cargo. Diante dessa distorção, o reitor passou a conferir 5 pontos (máximo de 100) para o professor cujo aluno vencesse um desaio. Um certo professor foi vencido por 7 alunos, mas manteve o cargo pelos 35 pontos conquistados... Os cursos de pósgraduação icaram vazios, pois os candidatos foram estudar nos EUA, terra dos examinadores. De fato, brilhantes professores foram substituídos por alunos que izeram cursos com examinadores. Além disso, a atividade de pesquisa cessou e todos se concentravam nos estudos para os exames. Diante disso, o reitor conferiu 2 pontos por artigo e 7 por livro produzido3. Os professores passaram a preferir preparar um aluno bom por ano (5 pontos) a produzir um livro que demora 3 anos. Outro publicou como artigos os 19 capítulos do seu livro, enquanto outro publicou uma transcrição de conferências.

No relato de Stigler, cada regra desencadeava uma reação inesperada e indesejável, o que convidava a formulação de um outro conjunto de regras. O processo nunca resultava no aumento de produtividade propriamente dita, mas em desvios dos esforços para a busca dos indicadores objetivos de produtividade.

Como já notou o leitor, a história é um retrato da situação da academia brasileira atual4. Os congressos, artigos e livros são classiicados por órgãos que se baseiam na opinião de comissões a respeito do valor relativo dos

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mesmos. Os congressos no exterior, mesmo que deles participem prêmios Nobel, pontuam menos que um congresso local, simplesmente porque este já é conhecido pelo comitê “regulador de preços”. Enquanto na Europa um artigo é discutido em vários congressos, com o intuito de melhorálo através da crítica, no Brasil a participação nos poucos congressos existentes é almejada apenas para colecionar os pontos que a sua aprovação rende. A intensa competição pelos pontos escassos tende adicionalmente a aprovar nesses congressos trabalhos prontos para publicação, contrariando a razão de ser dos mesmos.

O economista teórico, com publicações mais esparsas que reletem o período maior de maturação da pesquisa, é pressionado a trocar sua linha de pesquisa por artigos empíricos, pressionado pela “produtividade” maior do econometrista aplicado. As contratações nos departamentos de Economia tendem, portanto, a formar batalhões de professores de Econometria aplicada em detrimento da diversidade de opiniões requerida por um ambiente universitário pluralista. O historiador econômico, por outro lado, não consegue comprimir seus estudos em 15 páginas, o tamanho geralmente disponibilizado pelas revistas que pontuam mais. A publicação de um livro, por sua vez, não é uma alternativa, porque embora geralmente contenha em suas 250 páginas mais “produção” do que um artigo de 15 páginas (digamos, algo como 4 artigos se reescritos na forma ultracondensada destes), vale apenas uma fração da pontuação de um artigo em revista nacional, a menos que a editora do livro seja grande e conhecida. Neste caso, um autor de HPE tem que trocar a sua especialização na teoria do capital do século XIX por um estudo sobre “globalização” ou um livrotexto de Introdução à Economia para que seja aceito por essas editoras, caso contrário seu livro valerá pouquíssimos pontos.

Além de distorcer os recursos de pesquisa para assuntos publicáveis em prazos menores e gerar um processo de burocratização (a obtenção do certiicado de participação se torna o ponto culminante dos seminários!), o sistema de pontuação introduz um viés conservador na atividade de pesquisa ainda maior do que o habitual, pois as revistas especializadas que admitem abordagens alternativas (geralmente estrangeiras), inicialmente ou não pontuam ou pontuam bem menos do que aquelas dedicadas à pesquisa convencional. Seriam necessários vários artigos

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em revistas especializadas para pontuar o mesmo que um único artigo em uma revista reconhecida, o que torna praticamente proibitivo seguir linhas de pesquisa alternativas.

Os programas de pósgraduação também sofrem intervenção do produtivismo. Um curso de uma universidade grande, com 150 professores, dos quais 100 são doutores, tem uma nota menor no quesito “proporção de doutores” do que uma com 15 professores, todos doutores. A avaliação “objetiva” dos programas de mestrado, não é de surpreender, não coincide nem com a avaliação “subjetiva” da comunidade cientíica nem com as preferências dos candidatos na hora de escolher onde estudar, embora mine a capacidade da instituição de obter bolsas de estudo para seus alunos. Atualmente, a distorção mais grave se manifesta na pressão para reduzir o tempo de duração dos cursos de mestrado. Na lógica produtivista, diminuir o denominador na estatística “dissertações defendidas por ano” representa um grande avanço: o aumento da “produtividade” dos cursos igura bem na apresentação de Powerpoint do ministro da educação e nas medições de capital humano nos trabalhos sobre crescimento, mas sempre às custas da qualidade do curso. O mestrando tem que escolher tema e orientador em tempo recorde, não há tempo para relexão ou estudo aprofundado da bibliograia. Tipicamente, os trabalhos são cada vez menores e com um nível mais próximo dos trabalhos de graduação. Diicilmente há tempo hábil para algo mais do que “testar” irreletidamente um modelo desenvolvido nos EUA com os dados do Brasil.

A princípio, o incentivo a redução no tempo de defesa gera um aumento na produtividade apenas no curto prazo, já que o número total de alunos formados depende apenas do número de entram e saem do programa de pósgraduação. Mas, como a pressão por menor tempo relete negativamente na qualidade do aprendizado e pesquisa, o luxo de longo prazo de alunos de fato aumenta, já que diminui os “custos” de fazer pósgraduação. Isso, por sua vez, gera a distorção adicional de atrair para mestrados stricto sensu alunos com interesses proissionalizantes em detrimento de alunos com inclinações acadêmicas.

Diante dessas histórias, poderíamos ouvir duas objeções: (a) como o proverbial professor de Administração, que em sua...

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