Ilícito antitruste e acordos entre concorrentes

AutorLuís Fernando Schuartz
Páginas47-71

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O tema das consequências antitruste 'relacionadas aos acordos entre concorrentes é, ao certo, um dos mais ricos em contribuições academicamente credenciadas, tanto no campo da Dogmática como nos da Microeconomia e da Teoria de Organização Industrial. Em face da vastíssima literatura disponível e do indeterminismo que é característico das análises jurídico-econômicas nesse âmbito, é de fato extraordinário o atual grau de convergência das conclusões dos especialistas no que toca aos principais problemas, métodos e parâmetros analíticos aplicáveis.

Não nos parece que existam boas razões para suspeitar desse consenso, nem mesmo boas justificativas para atitudes de ceticis-mo em relação à solidez dos seus fundamentos. Tratando-se de argumentos instrumentais à aplicação de normas jurídicas, ao contrário, tudo indica que, neste âmbito pelo menos, as lacunas teóricas estejam não numa carência de novos conceitos e critérios de análise e julgamento, mas sim nos esforços de reconstrução do material já existente em termos de diferenciações que sejam juridicamente operacionalizáveis e que possam servir como pontos fixos de referência para autoridades e agentes económicos.

O presente artigo apresenta-se como sugestão nesse sentido. Sua única preocupação é recolher, selecionar e sistematizar as contribuições mais significativas sobre o assunto, sem quaisquer pretensões de originalidade; e seu único objetivo é inspecio-nar argumentos teóricos em busca de dire-trizes práticas para a racionalização dos procedimentos de aplicação do Direito nos casos concretos.

1. "Bem-estar social" e ilícito antitruste

Um dos traços mais salientes da técnica de definição de ilícitos que se incorporou à Lei 8.884/1994 é o elevado grau de indeterminação no tocante à explicitação das condições necessárias e suficientes para a caracterização de uma determinada conduta como infração. O argumento sistemático que serve de fundamento teórico a essa técnica pode ser condensado na ideia de que o ponto de vista geral que confere unidade às referidas condições está no que se convencionou denominar - seguindo o jargão microeconômico - de "bem-estar social", e de que a maneira mais corre ta de se ope-racionalizar tecnicamente esse critério de unidade está na determinação, tanto quali-

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tativa como quantitativa, dos efeitos líquidos produzidos pela conduta em questão sobre a referida "grandeza".

Com isso, a análise da natureza (se positivos, negativos ou neutros) e da magnitude dos mencionados efeitos pode aplicar-se virtualmente a qualquer conduta; e as conclusões da análise podem valer como razões determinantes das decisões das autoridades acerca da existência, nos casos concretos, de uma infração da ordem económica de qualquer espécie, vale dizer, com base em qualquer dos incisos do art. 20 da Lei 8.884/1994. Em outras palavras, os diferentes efeitos económicos previstos nesses incisos nada mais seriam que instâncias de um tipo genérico de infração, definível então como produção efetiva ou potencial de efeito líquido negativo sobre o bem-estar social.1

A expressão "efeito líquido sobre o bem-estar social", pelo menos como usualmente interpretada e aplicada, possui um sentido técnico que pode ser flexibilizado apenas dentro de limites semânticos bem estreitos. O quadro de referência conceituai dentro do qual esse sentido se localiza delineou-se a partir de hipóteses de teoria mi-croeconômica (neoclássica) associadas aos conceitos de eficiência (alocativa), excedente do consumidor, excedente do produtor e poder de mercado.

Nesse referencial teórico, uma determinada configuração económica (ou mudança entre duas configurações) é "eficiente" se e somente se os ganhos dos agentes económicos beneficiados por essa configuração (ou por essa mudança) são suficientes para compensar as perdas dos agentes económicos prejudicados pela mesma - isto é, se e somente se o valor total desses ganhos é maior ou igual ao valor total dessas perdas.2 Posto dessa maneira, o conceito de eficiência (aqui denominada de eficiência económica, alocativa ou "potencial de Pareto") irá servir como instrumento de mediação entre a ideia normativa de bem-estar social - agora despida das habituais conotações ético-políticas - e sua opera-cionalização sob a forma de uma aplicação tecnicamente controlável da legislação antitruste.3 De fato, a tradução do antitrust

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goal (identificado difusamente com o "bem-estar do consumidor") em termos do vocabulário microeconômico associado ao conceito de eficiência alocativa lhe garantiria não apenas um significado jurídico com contornos aparentemente precisos, mas também, e sobretudo, a possibilidade - ao menos em princípio - de mensuração quantitativa e a daí resultante univocidade.

A maneira convencional de se implementar essa possibilidade remete aos conceitos anteriormente mencionados de "excedente" (do consumidor e do produtor) e de "exercício de poder de mercado". O conceito de excedente do consumidor refere-se ao valor, acima daquele efetivamente pago, que um consumidor estaria disposto a pagar por uma unidade de um determinado produto para viabilizar seu consumo. O valor total desse excedente pode ser então definido como soma dessas diferenças relativamente a cada consumidor individual e - à parte certas sutilezas matemáticas ligadas ao tipo de função a ser representada - calculado a partir da curva de demanda (v. a Figura I, abaixo) do produto em questão;4 analogamente, define-se o excedente do produtor como a diferença entre o valor recebido pela venda de uma unidade de certo produto e o valor associado ao custo de produzi-la. A soma das diferenças relativamente a cada produtor individual caracterizará o valor total desse tipo de excedente, cujo cálculo se processa agora como a mensuração de uma área definida a partir da curva de oferta de um dado produto (v. a Figura I, a seguir).5

Figura I: Excedentes do Consumidor (A) e do Produtor (B) em Situação de Equilíbrio Competitivo

Ante o exposto, será então a soma dos valores totais dos mencionados excedentes que irá constituir os efeitos líquidos sobre o bem-estar social associados à configuração económica que se trata de analisar. De fato, suposta a equivalência semântica entre "bem-estar social" e "eficiência alocativa", os critérios de mensuração desta constituem-se, por definição, em critérios de mensuração daquela, e os resultados da mensuração podem valer diretamente como base para a decisão acerca da natureza e magnitude dos referidos efeitos líquidos. Já foi dito que o termo "eficiência alocativa" diz respeito a configurações económicas nas quais, grosso modo, somente é possível melhorar a situação de um agente (ou grupo de agentes) piorando a de um outro agente. Rigorosamente falando, configurações com esse atributo representam arranjos económicos de máxima eficiência -máxima no sentido do valor máximo de uma função, no caso, a função definida pela soma dos excedentes do produtor e do consumidor. Como essa soma, por outro lado, se expressa numericamente, é igualmente possível falar em graus variados de efíciên-

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cia, bem como comparar diferentes arranjos económicos entre si do ponto de vista do maior ou menor grau de eficiência que os mesmos incorporam.

Ora, demonstra-se, a partir dos chamados "teoremas fundamentais do bem-estar", que há uma relação biunívoca entre máxima eficiência alocativa e equilíbrio competitivo6. Em termos de implicações normativas para a análise antitruste, já era então esperável que se atribuísse à concorrência perfeita7 o papel de candidato natural para servir de padrão normativo ideal para fins de comparação e, sobretudo, de avaliação de situações alternativas de mercado. Não obstante o caráter excepciona-líssimo da situação de concorrência perfeita na realidade capitalista, o referido padrão normativo poderia funcionar como um ideal para fins de aproximação, no seguinte sentido: quanto maior (ou menor) o grau de afastamento de uma dada situação de mercado da situação ideal de concorrência perfeita, menos (ou mais) eficiente a situação em questão e, em consequência, pior (ou melhor) tal situação da perspectiva da realização de bem-estar social.

No âmbito da dogmática do direito da concorrência, entretanto, foi se cristalizando um ideal normativo menos restritivo no que toca às condições necessárias de realização, ainda que sem deixar de prestar continência ao postulado da maximização do bem-estar social, entendido, conforme exposto, como o valor máximo da soma dos excedentes do produtor e do consumidor (e sem que, ademais, a concorrência perfeita tenha desaparecido de todo do horizonte como estrutura ideal de mercado para fins de análise). Com efeito, passou-se a denominar simplesmente de "concorrência" a qualquer situação ou configuração de mercado em que a quantidade ofertada é maximizada, os preços são iguais aos custos marginais e os demandantes têm liberdade para tomar suas decisões de consumo de acordo com as próprias preferências (e as próprias restrições orçamentarias).8

A função de limite ideal de aproximação e padrão comparativo para as análises normativas passou a ser então desempenhada por uma noção, menos rigorosa teoricamente, de "concorrência" (ou "mercado competitivo"), sem que, como antes observado, fosse completamente abandonada a concepção do bem-estar social em termos de eficiência alocativa e a metodologia da "soma dos excedentes" como técnica de determinação qualitativa e mensuração dos impactos sobre o bem-estar social associados a determinadas situações de mercado e às correspondentes (como fatores determinantes) estratégias, atos e condutas dos agentes económicos.

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Essa recepção - ainda que temperada por...

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