Ideologia, direitos sociais e o combate ao trabalho escravo

AutorRenan Bernardi Kalil
Páginas172-190

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Introdução

A exploração da mão de obra por meio do trabalho escravo é repudiada no Brasil, sendo o tema tratado mais pormenorizadamente por dois ramos jurídicos: o direito penal e o direito do trabalho. No primeiro, há o tipo penal de "redução a condição análoga à de escravo" no art. 149 do Código Penal. No segundo, a caracterização do trabalho escravo ocorre por meio de desrespeitos contumazes e intensos da legislação trabalhista, em que há violação da dignidade e/ou da liberdade do trabalhador.

O presente trabalho pretende estudar o combate ao trabalho escravo, sob a perspectiva dos direitos sociais, mais especificamente do direito do trabalho, levando em conta a noção de ideologia, bem como analisar a interação que ocorre entre esses três elementos.

Inicialmente, será realizada a contextualização do trabalho escravo no Brasil, abordando as medidas, tanto repressivas como preventivas, que o país adotou no combate a essa ilicitude, os casos em que se obteve êxito e as necessidades de adaptação das ações para se conseguir fazer frente às novas configurações do capitalismo.

A seguir, realiza-se um estudo sobre o conceito de ideologia, com base em Karl Marx e Friedrich Engels, e sobre os direitos sociais e as interfaces entre ambos. Ainda, analisa-se a forma pela qual os direitos sociais, com enfoque no direito do trabalho, estão inseridos na sociedade capitalista, indicando os limites e as possibilidades existentes.

Adiante, a partir das reflexões feitas anteriormente, investiga-se a maneira pela qual o combate ao trabalho escravo se situa no debate sobre ideologia e direitos sociais, bem como se tratam das medidas preventivas e repressivas e o direito do trabalho para, ao final, apresentar as conclusões do estudo feito.

1. Trabalho escravo, prevenção e repressão

O trabalho escravo continua a ser um problema global, apesar de não existir na atualidade nenhum ordenamento jurídico que admita a redução de uma pessoa à condição de coisa e o seu tratamento como mercadoria. De acordo com dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), relativos ao ano de 2012 e apresentados no relatório "Lucros e pobreza: a economia do trabalho forçado", existem no mundo mais de 21 milhões de pessoas submetidas à escravidão, sendo que os lucros obtidos com esse

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crime ultrapassam US$ 51 bilhões2. Portanto, nota-se que a existência dessa exploração ilícita de mão de obra é, essencialmente, um problema de ordem económica3.

O Estado Brasileiro reconheceu a existência de trabalho escravo em seu território no ano de 1995. À época, houve uma solução amistosa perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), relacionada ao caso em que o trabalhador rural José Pereira foi gravemente ferido e o seu colega foi assassinado quando tentavam fugir de uma fazenda no interior do estado do Pará em que eram submetidos a trabalhos forçados. A partir de então, o país passou a desenvolver uma série de políticas com o objetivo de combater essa forma ilícita de exploração de mão de obra, sendo que essas podem ser de caráter repressivo ou preventivo.

As medidas preventivas têm o propósito de evitar que os trabalhadores se submetam ao trabalho escravo como meio de subsistência e que os trabalhadores resgatados não ingressem novamente no ciclo de exploração que leva à escravidão contemporânea. Pode-se mencionar como exemplos a oferta de educação em direitos, de cursos de qualificação profissional, o apoio à organização da produção e o monitoramento da cadeia produtiva. Neste âmbito, as políticas adotadas pelo Brasil são tímidas e não obtiveram êxito em diminuir o número de trabalhadores escravizados.

As ações repressivas têm a finalidade de resgatar os trabalhadores encontrados em condições análogas a de escravo e aplicar penalidades aos empregadores que adotam esta prática. Nesta seara, o Brasil desenvolveu políticas efetivas, apontadas por organismos internacionais como exemplos a serem observados.

A medida mais eficaz desenvolvida pelo Brasil nesse âmbito foi a criação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM), coordenado por auditores-fiscais do trabalho - que são os servidores com atribuição para resgatar trabalhadores submetidos a condições análogas a de escravo-, e integrado por procuradores do trabalho, procuradores da República, policiais federais, policiais rodoviários federais e, mais recentemente, por defensores públicos da União. Em 2015, o Grupo completou 20 anos de existência,

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período em que foram resgatados 49.353 trabalhadores em 1.785 operações realizadas em 4.100 estabelecimentos, com o pagamento de mais de R$ 92 milhões aos trabalhadores a título de indenização4.

Outro instrumento efetivo utilizado no combate ao trabalho em condições análogas a de escravo foi a elaboração do cadastro de empregadores flagrados praticando esse crime, conhecido como "lista suja". Trata-se de mecanismo que publiciza as empresas e pessoas que se utilizam da exploração ilícita de mão de obra. Ainda, bancos públicos e privados adotavam esse cadastro para restringir crédito e algumas empresas de determinados setores económicos não contratam serviços de empregadores que constam na lista como medida de responsabilidade social.

Apesar de o Brasil ter admitido a persistência de trabalho escravo no país somente em 1995, o Código Penal prevê o tipo de reduzir alguém à condição análoga a de escravo desde 1940.0 conceito legal era considerado muito aberto e em 2003 foi realizada uma reforma no art. 149 do Código Penal, em que passou a ser considerado como trabalho escravo a prática de trabalho forçado, a restrição de locomoção, as condições degradantes e a jornada exaustiva5.

Durante o período em que foram implementadas e desenvolvidas as políticas públicas de repressão ao trabalho escravo no Brasil, as relações de trabalho foram afetadas com as modificações ocorridas no processo produtivo das empresas a partir da adoção do toyotismo (ou modelo japonês ou ohnismo). Esse modelo de produção substituiu o taylorismo-fordismo e possui as seguintes características6: produção vinculada à demanda, trabalho realizado em equipe, processo produtivo flexível e descentralizado, justin time (produção conforme a demanda), sistema de kanban (estoques mínimos), estrutura fabril horizontalizada, organização dos trabalhadores pelos Círculos de Controle de Qualidade (CCQs) e estímulo à intensificação do trabalho.

No Brasil, as referidas medidas passam a ser implantadas na década de 1990, com a abertura comercial. A partir de então, conforme observam Mareio

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Pochmann, Reginaldo Muniz Barreto e Sérgio Eduardo Arbulu Mendonça, há uma desarticulação de parte da cadeia produtiva, a descentralização da produção, a aplicação de novos métodos de gestão de mão de obra e o aumento da terceirização e da remuneração flexível7

A nova configuração do mundo do trabalho interfere de maneira intensa sobre as relações entre empregador e empregado. No padrão prevalecente no modelo taylorista-fordista, em que o empregador e principal beneficiário da exploração da mão de obra alheia estava ligado diretamente ao trabalhador por meio do contrato de trabalho, a subordinação era entendida como o poder da empresa dar ordens diretamente ao empregado. Contudo, com o toyotismo e a importância conferida à descentralização da produção e a disseminação da terceirização, a relação entre o maior favorecido com o produto do trabalho alheio e o trabalhador não ocorre de forma direta, o que permite a releitura do conceito de subordinação, em que se analisa a inserção do trabalhador na dinâmica da organização empresarial (subordinação estrutural)8.

Também é relevante mencionar que a reestruturação produtiva e a pulverização da produção tornaram mais complexas as relações entre as empresas, o que levou ao desenvolvimento de novas formas contratuais para regular essas relações, como as redes contratuais9.

A configuração da nova realidade do mundo do trabalho demanda a adaptação e a inovação de instrumentos jurídicos para lidar com as características contemporâneas das cadeias produtivas e promover a efetividade das normas que vedam o trabalho análogo ao de escravo10.

No âmbito da prevenção, é importante destacar o papel que as grandes empresas possuem ao auditar e monitorar toda a cadeia produtiva dos bens que manufaturam, com o objetivo de evitar a existência de trabalho escravo ao longo do processo produtivo. Existem experiências internacionais que

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merecem análise, como a Califórnia Transparency in Supply Chains Act (2010) e a Modern SlaveryAct (2015), a primeira dos Estados Unidos e a segunda da Inglaterra, que exigem que empresas com faturamento acima de determinado valor tornem pública a relação que possuem com as demais empresas que fazem parte de suas cadeias produtivas.

Em 2014, a Organização Internacional do Trabalho elaborou o Protocolo complementar à Convenção n. 29, em que seu art. 4a, "j" prevê que as empresas devem tomar medidas efetivas para identificar, prevenir e mitigar a existência de trabalho escravo em suas cadeias produtivas11. A Organização das Nações Unidas (ONU), no recente "Relatório especial sobre formas contemporâneas de escravidão, incluindo suas causas e consequências", também apontou determinadas ações que as empresas devem adotar para combater o trabalho escravo nas cadeias produtivas12.

Sob o viés da repressão, o mencionado novo cenário das cadeias produtivas levou à elaboração de novas leituras da responsabilidade do empregador nas relações de trabalho, de forma a suprir as lacunas de responsabilização do ente que comanda, coordena e orienta a produção e que se beneficia da submissão do trabalho em condições análogas a de escravo13. A mencionada...

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