Direitos indígenas e políticas públicas: análise a partir de uma realidade multicultural
Autor | Clarissa Bueno Wandscheer; Fabiane Lopes Bueno Netto Bessa |
Páginas | 123-133 |
Clarissa Bueno Wandscheer. Mestre pela PUC-RS. Graduada em Direito pela PUC-PR. Atualmente é professora da Faculdade Metropolitana de Curitiba.
Fabiane Lopes Bueno Netto Bessa. Doutora em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Mestre em Direito Público. Graduada em Direito. Atualmente é diretora do Programa de Pós-Graduação em Direito Econômico e Socioambiental e professora no Programa de Pós-Graduação em Gestão Urbana e no Curso de Especialização em Proteção Social e Redes de Direitos. Professora convidada em cursos relacionados à Responsabiidade Social das Empresas do ISAE-FGV.
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A crise da sustentabilidade e as respostas da sociedade brasileira e dos governos vêm-se construindo ao longo dos últimos trinta anos. Da prioridade absoluta para as ações de comando e controle chegamos à participação social e governança como eixos indissociáveis em uma concepção socioambientalista de políticas públicas. Sentimo-nos parte dessa trajetória e estamos dispostos a fazer o nosso papel. Essa é a premissa do diálogo e ela não tem volta1.
As políticas públicas são temas novos na agenda e na pesquisa jurídica. Considerando que muitos dos anseios e necessidades da população são semelhantes, elaborar políticas públicas capazes de atender a essas demandas similares - particularmente quando são destinadas a uma determina região ou grupo de pessoas - não parece tarefa difícil.
No entanto, quando se trata de povos indígenas, as demandas e necessidades semelhantes não são uma realidade. Isso se justifica pela diversidade sociocultural que esses povos representam. Em consequência, o poder público se depara com uma multiplicidade de demandas e formas de organização social - o que exige uma análise mais apurada e o desenvolvimento de políticas especializadas.
Por isso merece reflexão a dificuldade em estabelecer e em implementar uma política pública para os povos indígenas, que contemple e atenda essa complexidade de maneira efetiva, integrando as alternativas encontradas pelos povos para manifestarem seus anseios perante a sociedade.
A preocupação em estudar políticas públicas teve início nos anos 1950, nos Estados Unidos. No Brasil, foi somente com o fim dos regimes autoritários que o desenvolvimento de trabalhos relacionados com políticas públicas nas áreas sociais ganhou importância, merecendo destaque a criação do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas da Universidade Estadual de Campinas, em 1984, que foi a primeiraPage 124 universidade com pesquisa voltada especificamente ao tema no país2. Os primeiros estudos foram estimulados pelo momento de discussão sobre os tipos de bem-estar social e, ao mesmo tempo, introduziram novos atores sociais – entre os quais os partidos políticos e os sindicatos, que passaram a influenciar na análise dessas políticas públicas3.
O reconhecimento da necessidade e da importância de uma política pública bem estruturada e capaz de ser realizada está cada vez mais presente nas sociedades modernas e, conseqüentemente, no Brasil.
Pode-se identificar a política pública como:
o programa de ação governamental que resulta de um processo ou conjunto de processos juridicamente regulados – processo eleitoral, processo de planejamento, processo de governo, processo orçamentário, processo legislativo, processo administrativo, processo judicial – visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados.
Como tipo ideal, a política pública deve visar a realização de objetivos definidos, expressando a seleção de prioridades, a reserva de meios necessários à sua consecução e o intervalo de tempo em que se espera o atingimento dos resultados4.
Boneti apresenta o conceito sob outra abordagem: “por política pública se entende o resultado da dinâmica do jogo de forças que se estabelece no âmbito das relações de poder, relações essas constituídas pelos grupos econômicos e políticos, classes sociais e demais organizações da sociedade civil5” – com isso destacando a dificuldade em elaborar e efetivar uma política pública, uma vez que é necessário romper as barreiras impostas à ampla participação social pelos interesses econômicos e políticos.
O processo político vai repercutir na qualidade da implementação dos programas e projetos, já que estão suscetíveis de sofrerem influência de interesses econômicos, que nem sempre estão sintonizados com os interesses sociais. Por isso a necessidade de se buscar uma estabilidade política, ou seja, a estabilidade das instituições, como forma de garantir que uma política pública possa ser cumprida depois de aprovada e que não venha a sofrer as instabilidades de momentos políticos posteriores, que podem interromper ou prejudicar o desenvolvimento das atividades relacionadas com determinadas políticas públicas6.
Também deve ser levado em consideração que para a implementação de novas políticas públicas será necessário uma nova reestruturação institucional e política para garantir a participação da população nesse processo, de modo a efetivar o Estado Democrático de Direito apregoado pela Constituição Federal de 1988 – o que, para Frey, vem se consolidando em relação à política de proteção ambiental que
levou a transformações significativas dos arranjos institucionais em todos os níveis de ação estatal. Por outro lado, em consequência da tematização da questão ambiental, novos atores políticos [associações ambientais, institutos de pesquisa ambiental, repartições públicas encarregadas com a preservação ambiental] entraram em cena, transformando e reestruturando o processo político7.
Sob o aspecto prático a política pública é concebida como um “programa de ação governamental para um setor da sociedade ou espaço geográfico.8”. Isso quer dizer que o Estado pode desenvolvê-la para o nordeste, representando um benefício a uma região geográfica; ou para as mulheres, ou as crianças, ou os idosos ou os indígenas, estabelecendo um programa de ação para um determinado setor da sociedade.
A partir de toda essa discussão é possível identificar que o objetivo de uma política pública é estabelecer um plano de fim e meio: o que se pretende atingir e como se pretende fazer isso. Ou seja, a “formulação da política consistiria num processo, e os programas de ação de governo seriam as decisões decorrentes desse processo.9” Com isso, vê-se que as políticas públicas são compostas de um grupo de programas de ação, que serão efetivados pelo Estado na medida em que houver força política suficiente para exigir a execução do programa de ação respectivo.
Assim, os esforços voltados à promoção dos direitos fundamentais e do desenvolvimento sustentável associam-se diretamente ao equilíbrio das forças presentes no jogo do poder pontuado no conceito de política pública apresentado por Boneti. Daí a necessidade de instituições consolidadas para fazer valer o interesse social ao invés do interesse econômico, que através da força política acaba direcionando as políticas públicas desenvolvidas pelo Estado.
A política pública indigenista é elaborada pelo governo, que desde as primeiras legislações (antigo Código Civil e Estatuto do Índio) estabelece como objetivo a integração do índio à sociedade nacional.
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Essa política voltada para os indígenas tem um caráter eminentemente homogeneizante. No entanto, passados mais de trinta anos desde a promulgação do Estatuto do Índio, verifica-se que não houve a incorporação à sociedade nacional de todos os índios brasileiros. Mas, ao contrário, a sociedade brasileira se demonstra plural com a existência de 225 povos indígenas10.
E essa variedade imensa de povos exige uma especial atenção do poder público na elaboração de suas metas e mecanismos de ação, para garantir a efetivação das suas diferentes demandas, que nem sempre estão localizados numa mesma região geográfica e tampouco com os mesmos anseios e necessidades sociais frente ao Estado.
O problema na implementação de políticas públicas de acordo com o histórico dessas iniciativas, está relacionado com um elevado grau de fragmentação e descontinuidade de ações e, em conseqüência, com o desperdício de recursos e com resultados insuficientes11.
Outro complicador para as políticas públicas é a falta de espaço para o diálogo entre governo e sociedade. No caso dos povos indígenas o distanciamento é ainda maior, em face das peculiaridades de suas formas de organização, o que requer novos mecanismos de consulta.
Apesar da previsão do direito à autodeterminação12 dos povos indígenas - em tratados internacionais13, e até mesmo na própria Constituição Federal de 198814, que em alguns casos exige a consulta dos povos para o aproveitamento dos recursos hídricos, dos potenciais energéticos e de lavras das riquezas minerais que se encontrem em suas terras tradicionais – os povos indígenas continuam pouco ouvidos pelos governos.
A outra dificuldade é inerente ao jogo político, uma vez que os fatores primordiais para a concretização de uma política pública é o interesse ou a necessidade política. E alguns participantes da arena política detêm grande poder de decisão no que se refere a quais políticas públicas serão escolhidas e efetivadas.
Dentre os participantes dessa arena encontram-se os grupos de pressão15, que através do lobby16 tentam adquirir o maior número de partidários favoráveis aos seus interesses – o que é uma constante no jogo político.
Um exemplo dessa disputa entre lobbies é a polêmica para autorizar e como autorizar a atividade minerária em terras indígenas - até mesmo no...
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