Ensino jurídico “versus” positivismo jurídico: para uma visão plural do direito

AutorRenata Pereira Carvalho Costa; Gilsilene Passon P. Francischetto
Páginas1-26

Renata Pereira Carvalho Costa. Mestranda em direitos e garantias fundamentais, Faculdades Integradas de Vitória (FDV), Brasil; Advogada.

Gilsilene Passon P. Francischetto. Pós-Doutora pelo Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra, Portugal; Doutora em Direito, Universidade Gama Filho (UGF), Brasil; Mestre em Direito, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Brasil; Professora da Graduação, Pós-Graduação e Mestrado das Faculdades Integradas de Vitória (FDV), Brasil.

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“Se o papel de professor de Direito devesse limitar-se a comentar leis positivas, não valeria a pena um minuto de esforço e de trabalho.” (Dugui)

1 Introdução

No ensino jurídico brasileiro não é preciso se empreender muito esforço para se concluir pela predominância do modelo positivista. Certamente que a primazia deste paradigma importará numa série de conseqüências para o processo de ensino como um todo, já que apresenta uma visão totalmente mecanicista e formalista do Direito. Pode-se dizer que a causa primeira que conferiu ao positivismo tamanho sucesso em sua empreitada foi, certamente, a possibilidade de se conferir cientificidade ao direito. A busca pelo status de “ciência” fez com que o direito se isolasse em um campo fechado de regras, imune a qualquer influência exógena, dando conta de responder, por si só, suas próprias inconsistências.

Dentre os autores que mais se destacam na propagação do positivismo jurídico podemos citar Kelsen, Hart e Austin. Embora haja peculiaridades que diferem cada um destes autores, todos, de uma maneira ou de outra, concebem o direito como um conjunto fechado de regras e negam normatividade aos princípios.

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Neste trabalho, vale dizer, não se irá defender a inutilidade do estudo do positivismo jurídico, e sim os prejuízos oriundos de se adotar tal paradigma como sendo o único possível. Isto porque impossível olvidar que em uma sociedade complexa como a atual, as respostas para as demandas que vão surgindo só podem ser dadas num contexto plural. A formação do profissional do direito, nessa toada, não pode apontar para uma única direção, antes deve estar estreitamente ligada às necessidades impostas pela realidade social. Ora, se o fim perseguido pelo direito é promover paz social, não pode de modo algum seguir indiferente às demandas sociais, exaltando-se por pertencer a um campo essencial e estritamente deontológico.

Entendemos que um ambiente universitário que pretenda democrático deve ser capaz de oferecer aos alunos a possibilidade de se trabalhar com as mais variadas perspectivas teóricas, cabendo aos discentes, ao aplicar qualquer delas, tão somente atentar para as particularidades que envolvem cada caso concreto. Será no mundo dos fatos que o aluno irá analisar qual teoria estudada mais se adéqua a fim de prestar um trabalho justo e legítimo, não só para o Judiciário, mas para toda a sociedade. Infelizmente, romper o círculo vicioso que envolve o ensino jurídico é uma tarefa muito difícil, já que ele abrange não só a relação professor-aluno, mas todos envolvidos no processo, ainda que inconscientemente.

Mas acreditamos que possível saída possa estar na democratização do ambiente universitário, na apresentação de respostas complexas e plurais que possam ser criticamente debatidas por todos os envolvidos no processo de aprendizagem, na superação, embora lenta, mas gradativa, da idéia de que o direito se resume à lei e que ao profissional do direito cabe exercitar seu silogismo aristotélico e sua tarefa subsuntiva.

Evidentemente, o direito é muito mais do que isso e não se pode compreendê-lo através de uma visão unidimensional, e sim plural, que trabalhe construtivamente os princípios e as regras constitutivos do Direito vigente.

2 Algumas considerações acerca do positivismo jurídico

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Antes de tratarmos especificamente do positivismo jurídico, cumpre tecer algumas considerações acerca do termo “positivismo”. Considerada isoladamente, a palavra "positivismo" pode assumir diferentes significados, podendo englobar tanto perspectivas filosóficas e científicas do século XIX quanto outras do século XX.

Na verdade, o sentido do termo mais difundido e mais comumente utilizado é o que remonta ao filósofo Augusto Comte (1793-1857). Este autor francês propôs um sistema doutrinário que se assentava na indução positiva, rejeitando a alienação dedutivista perante os fatos observáveis. A positivismo comteano, representa, na verdade, uma fase de transição, marcada pelo abandono da abstração em prol do experimentalismo (RICHE, 2005, p. 142-143).

No século XIX, mas, sobretudo, no século XX, o termo positivismo passou a ser utilizado com significados diversos do que lhe fora atribuído inicialmente por Comte. É o que ocorre, por exemplo, com o Positivismo Jurídico, doutrina que trataremos neste trabalho, tendo por base, mormente, os ensinamentos de Hans Kelsen, considerado verdadeiro arauto do positivismo jurídico.

Mas, afinal, o que é o positivismo jurídico1? Nas palavras de Noberto Bobbio (2006, p. 119) é “aquela doutrina segundo a qual não existe outro direito senão o positivo” e que concebe “direito positivo” como sendo o “direito posto pelo poder soberano do Estado, mediante normas gerais e abstratas, isto é, como lei”.

Conforme pode se inferir do conceito restrocitado, o positivismo jurídico tem na lei seu presuposto e, ao mesmo tempo, seu fim, já que dela parte e nela se encerra. Essa visão extrai do positivismo comteano a rejeição ao metafísico, daquilo que não pode ser objeto dePage 6 experimentação. O positivismo jurídico deu ao direito a materialidade necessária para que fosse suscetível de experiência: a lei.

Quanto à sua origem, o positivismo jurídico tem como precursora a escola histórica do direito, a qual possui como maior expoente Savigny. A contribuição desta escola para o positivismo jurídico está em que ela desempenhou importante papel no declínio do pensamento jusnaturalista, não lhe poupando de severas críticas. E, como o direito positivo sempre foi visto em relação de dicotomia com o direito natural, com a reação antijusnaturalista o positivismo jurídico teve a chance de ganhar terreno (BOBBIO, 2006, p.56).

O ideal jusnaturalista era visto como um óbice para que a ciencia do direito lograsse valor científico, já que sustentava-se em fundamentos de ordem, eminemtemente, axiológica. Como a onda iluminista havia elevado a grau máximo a rejeição a essa ordem de explicação, o positivivmo jurídico se apresentava como a metodologia perfeita para conceder ao direito o status de “ciência” que tanto almejava.

De bom alvitre ressaltar que não obstante a escola histórica do direito tenha contribuído para a crítica ao direito natural, o direito consuetudinário por ela propugnado irá sofrer duras críticas pelos iluministas, que o consideravam uma pesada e danosa herança da esconjurada Idade Média (BOBBIO, 2006, p.54).

Na verdade, com o advento da Filosofia das Luzes, praticamente tudo que remetia à Idade Média causava repugnação. O movimento iluminista surge, aliás, como forma de resistência e superação daquele período de trevas para o conhecimento humano, considerado verdadeiro entrave ao desenvolvimento das ciências.

No campo do direito, o ideal iluminista apontava para a constituição de um “conjunto sistemático de normas jurídicas deduzidas pela razão e feitas valer através da lei” (BOBBIO, 2006, p.55). Incorporando esse ideal, o positivismo jurídico surge a fim de oferecer ao direito o status de “ciência” e dar cabo, definitivamente, ao complexo de inferioridade que assolava este campo do conhecimento.

Isso pelo fato de que cientificidade, após o Movimento das Luzes, havia se tornado sinônimo de credibilidade, e, até mesmo, de verdade. Fazer ciência havia se tornado um imperativo daPage 7 razão humana, que passava a negar explicações que fugissem de seu crivo para alcançar o campo teológico ou metafísico.

Assim, inúmeros autores, a partir do século XVIII, reuniram esforços a fim de conferir sistematicidade ao estudo do direito. Pode se dizer que esse desiderato parecia ter sido alcançado já no início do século XIX, com o advento da codificação napoleônica, em 1804. Neste período, vigorava a todo vapor a idéia de que o direito se esgotava nas previsões normativas inseridas no código, chegando a ser difundida a máxima napoleônica de que “se não está no código não está no mundo”.

A codificação napoleônica teve seus efeitos propagados para muito mais além das fronteiras francesas, vindo a repercutir na codificação de inúmeros países. A reunião em um código do maior número possível de normas afins emanadas pelo poder soberano do Estado indicava ser a solução perfeita para a questão da segurança jurídica.

Mas, mesmo após isso, o direito ainda reclamava um método próprio para sistematizar sua teoria, que encontrava-se bastante fragmentada. O direito ainda sofria com o influxo de diversas áreas, como a da política, da moral, da filosofia etc. Soava necessário isolar o objeto de estudo, qual seja: o direito, de toda sorte de influências externas, para assim, confiando na imparcialidade do sujeito, se chegar a um resultado que garantisse total neutralidade.

Ao direito não mais cabia discutir justiça, ética ou moral, questões essas que ficaram reservadas a outras áreas do conhecimento. O direito precisava se purificar para ser ciência. A resposta a tal anseio veio com maior intensidade com austríaco Hans Kelsen2 no século XX, através de sua célebre obra “Teoria Pura do Direito”, considerada “como o maior exemplo de construção lógico-estrutural do ordenamento jurídico até o momento” (CAMARGO, 2003, p.101).

São palavras do autor que bem ilustram o objetivo de sua teoria:

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Quando a si própria se designa como “pura” teoria do Direito, isto significa que ela se...

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