O trabalho humano na interface dos Estados Liberal e social e o desdobramento de sua valorização na Constituição de 1988

AutorClodomiro José Bannwart Júnior; Sharon Cristine Ferreira de Souza
Páginas255-280

    Este artigo é resultado de estudos realizados no projeto de pesquisa "Estado e relações empresariais: diálogos filosóficos e jurídicos diante da regulação estatal sobre a ordem econômica nacional" do Curso de Mestrado em Direito Negocial da Universidade Estadual de Londrina.

Clodomiro José Bannwart Júnior. Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas; Professor do Departamento de Filosofia e do Programa de Mestrado em Direito Negocial da Universidade Estadual de Londrina. Email: cbannwart@hotmail.com

Sharon Cristine Ferreira de Souza. Mestre em Direito Negocial e Especialista em Direito do Estado, ambos, pela Universidade Estadual de Londrina. Email: sharon_cris@uol.com.br

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1 A dialética do trabalho na visão da teoria social crítica

Nos escritos do jovem Hegel de Jena, a categoria "trabalho" aparece ao lado de outras duas categorias – linguagem e interação – e juntas representam a tríplice identidade da consciência, consideradas respectivamente como consciência astuta, consciência que nomeia e consciência reconhecida. Os três tipos de consciência assim apresentados constituem o processo dialético do trabalho, da representação e da luta pelo reconhecimento (HABERMAS, 1968, p. 30). A dialética da representação e do trabalho é alicerçada na relação entre sujeito e objeto e mediada por símbolos lingüísticos e instrumentos de trabalho, os quais colocam o sujeito diante da natureza (objeto) numa relação de exterioridade e de apropriação. Já a dialética da luta pelo reconhecimento é resultado da interação na qual a autoconsciência fixa-se na base de um reconhecimento recíproco, onde a identidade do 'eu' depende necessariamente da identidade do 'outro' e vice-versa.

Marx manteve-se na esteira do pensamento hegeliano, no entanto, revendo a conexão entre trabalho e interação mediante a dialética entre forças produtivas e relações de produção. Mesmo assim, a categoria 'trabalho' continuou prevalecendo na leitura marxista como elemento chave para a compreensão da autoformação social sob a rubrica das condições materiais da existência humana.

Já a linguagem detém em si as condições para a intersubjetividade ou interação, diferentemente da categoria 'trabalho' que determina o modo específico de o ser humano relacionar-se com a natureza. Portanto, o processo de autoformação dos seres humanos em sociedade ou o desenvolvimento da cultura humana passa necessariamente por estes dois conceitos chaves (GIDDENS, 1995, p. 246-247).

A idéia, portanto, de que a espécie humana enquadra-se em um processo de preservação e de reprodução permite entender que a mesma integra-se a um decurso evolutivo que se efetua continuamente pelas duas condições essenciais da existência: o trabalho e a interação. Nesse sentido, deve-se considerar que a realidade social constitui-se existencialmente por estas duas categorias ou condições. Trabalho e interação integram quase que condições transcendentais ao especificarem os meios de reprodução – material e simbólico – do gênero humano.

A categoria trabalho é integrada ao sistema de ação instrumental e busca satisfazer a tudo aquilo que é passível de controle e de produção de conhecimentos tecnicamente utilizáveis. O trabalho, nesse sentido, coloca-se como fundamento do interesse técnico na ordem do conhecimento que se pretende racional, visando à organização dos meios para alcançar possíveis metas ou objetivos previamente estabelecidos. A sistematização dos conhecimentos adquiridos noPage 257 processo acumulativo de aprendizagem "[...] conduz a constituição das ciências empírico-analíticas, que caracteristicamente apontam a explicação causal e a predição condicional" (OLIVÉ, 1985, p. 145). Nesse contexto, Habermas não considera, como Herbert Marcuse, que o conhecimento técnico ou científico seja, na sua própria formulação, um conhecimento ideológico, mas equaciona o trabalho como "ação racional orientada por fins" (Zweckrationalität) e, desse modo, restringe o alcance do conhecimento técnico científico à esfera da racionalidade instrumental (GIDDENS, 1995, p. 249).

A teoria crítica da sociedade não deve e não pode limitar-se à manutenção de uma filosofia da história que tenha uma visão teleológica no sentido forte, ou seja, a pressuposição de um telos imanente ao desenvolvimento histórico, como o projetado por Marx. A teoria crítica levada adiante por Habermas busca ser fiel ao mesmo referencial advindo de seus pais fundadores – Adorno e Horkheimer – quanto ao potencial crítico e à possibilidade de emancipação inscrita na dimensão própria da teoria. A teoria crítica reivindica a possibilidade de diagnosticar a constelação histórica no momento presente e 'mostrar como as coisas são' a partir da perspectiva de 'como deveriam ser'. Portanto, ela agrega o potencial crítico, posto que se propõe a apresentar 'as coisas como são' dentro do delineamento histórico presente, e assegurar a perspectiva emancipatória ao sinalizar 'como as coisas deveriam ser'. Acresce ainda que essa perspectiva teórica somente encontra sua confirmação se vinculada à prática das relações sociais. (NOBRE, 2004, p. 27) É correto afirmar que não se pode creditar nem à teoria crítica nem a Habermas a fixação de um telos, nos moldes marxistas, que sinalizava onde deveria ocorrer o equacionamento final da sociedade. Porém, mesmo diante de tais limitações, não se pode abandonar uma teoria que aponte o possível desenvolvimento progressivo da sociedade, a não ser que se abra mão da perspectiva da emancipação, situando a teoria no nível meramente descritivo, como queria o positivismo.

A proposta de Habermas é deslocar a emancipação, que o marxismo havia atribuído às forças produtivas, para o âmbito das relações de produção, ou seja, ao campo dos argumentos sócio-morais. Porém, esse deslocamento amplia-se na ótica habermasiana, uma vez que são introduzidos os conceitos de trabalho e interação, os quais correspondem, respectivamente, às categorias marxistas de forças produtivas e relações de produção. Mesmo que o conceito de trabalho carregue em sua estrutura, de forma inerente, o modelo de racionalidade instrumental e seja o responsável pela reprodução material da sociedade, isso não significa, para Habermas, que ele esteja destituído completamente de condições emancipatórias. Contudo, a dimensão do trabalho não é emancipatória porPage 258 si própria, mas dependente da dimensão interativa (HABERMAS, 1968). Isso é bastante significativo porque, como Habermas busca suporte para sustentar que o desenvolvimento social é resultado do progresso moral – estruturas normativas –, ele está, ao mesmo tempo, fortalecendo a dimensão prática da emancipação social inscrita na teoria crítica. É uma demonstração de que a teoria social não terá nenhum comprometimento com prognósticos futuros amarrados em pressupostos metafísicos ou teleológicos, mas tão somente com o pressuposto prático, no sentido de fornecer a sinalização dos bloqueios que impedem a efetiva realização da ação em direção à emancipação.

É manifesto que Habermas reconhece o papel de crítica do qual o pensamento de Marx é portador, no entanto, não admite que seja possível para uma teoria que pretende ser crítica, eleger como base paradigmática de análise o status científico proveniente das ciências naturais, restringindo, dessa forma, o alcance de sua reflexão tão somente à síntese do homem com a natureza pela categoria 'trabalho'.

Não tivesse Marx embaralhado interação e trabalho sob o denominador comum da práxis social, houvesse ele aplicado, em vez disso, o conceito materialista da síntese às realizações instrumentais e às inter-relações do agir comunicativo da mesma forma, então a idéia de uma ciência do homem não teria ficado obscurecida pela identificação com uma ciência da natureza (HABERMAS, 1982, p. 77).

Para Habermas, a filosofia deve preservar-se enquanto crítica e toda teoria da sociedade que reivindica ser uma auto-reflexão da história da espécie não pode simplesmente negar a filosofia. Sem desconsiderar a síntese técnica – produto da mediação entre homem e natureza –, Habermas almeja levar também em consideração, no plano da interação, a síntese prática – resultado da mediação entre os sujeitos no plano institucional e cultural.

Tendo Marx, portanto, reduzido a sua reflexão à dimensão do trabalho, restringiu inevitavelmente o escopo do seu pensamento teórico ao nível do agir instrumental. "[...] Marx interpreta, porém, aquilo que ele mesmo faz usando o modelo bem mais limitado de uma autoconstituição da espécie a realizar-se única e exclusivamente pelo trabalho. [...] Marx reduz o curso da reflexão ao nível do agir instrumental" (HABERMAS, 1982, p. 59-60). Não se espera daí – sinaliza Habermas – que seja possível brotar do paradigma da produção e do trabalho um processo de emancipação prático para o homem. "A emancipação relativamente à fome e à miséria não converge necessariamente para a libertação a respeito da servidão e da humilhação, pois não existe uma conexão evolutiva automática entre trabalho e interação" (HABERMAS, 1968, p. 46). Essa idéia dePage 259 Habermas permanece sedimentada ao longo de seus escritos, podendo ser lida, por exemplo, em o Discurso Filosófico da Modernidade:

[...] a perspectiva da emancipação não se origina precisamente do paradigma da produção, mas do paradigma da ação orientada para o entendimento recíproco. É a forma dos processos de interação que tem de ser alterada, se se quer descobrir praticamente o que os membros de uma sociedade poderiam...

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