História da arbitragem ao longo do tempo

AutorAntonio Sodré
Páginas103-117

Page 103

7.1. Introdução

O estudo do desenvolvimento histórico de um instituto do Direito é capaz de fornecer elementos à sua melhor compreensão e, por conseqüência, aprimorar-lhe a técnica, a dimensão prática atual em que se desenrolam os atos voltados à concretização daquelas regras jurídicas.

Quer-se com isso dizer que a observação do desenvolvimento da arbitragem na história, ainda que limitada a breves apontamentos, somente pode trazer benefícios ao âmbito de realização do Direito arbitral enquanto efetivo instrumento para a composição dos litígios decorrentes das práticas da contemporânea atividade empresarial.

Isso porque os elementos fornecidos possibilitam a formação linguística de novas estruturas de sentido, postas à disposição das partes, ou de seus representantes, e dos árbitros, na busca por uma solução rápida e equânime dos juízos arbitrais.

Igualmente, aos potenciais participantes de uma arbitragem é acessível, cada vez mais, uma maior gama de informações a respeito dos sucessos e infortúnios, das características e dos limites, desse modo de composição, permitindo uma melhor disposição pessoal e psicológica das partes em conflito.

De nossa parte, pretendemos nessa seção mostrar que a arbitragem foi (e ainda é) um mecanismo de larga utilização no Direito de vários povos ao longo do tempo, quer seja no âmbito privado, entre habitantes de uma mesma localidade ou entre moradores em países diferentes, quer seja no âmbito público.

Se a arbitragem hoje, no Brasil ou mesmo no plano internacional, se mostra muito diferente da arbitragem como fora praticada no Império Romano ou na Idade Média, tampouco isso significa que entre essas formas de resolução de conflitos somente haja diferenças.

Page 104

Essa identificação não poderia ser diferente, uma vez que a atual estrutura do Direito arbitral e a da arbitragem nada mais são que o resultado do desenvolvimento das anteriores estruturas, em adequação à suas novas finalidades, diante de um novo contexto social.

7.2. Os conflitos e as formas de sua composição

É clássica a fórmula empregada por THOMAS HOBBES acerca da igualdade entre os indivíduos: “se dois homens desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo que é impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se inimigos [uma vez que] a diferença entre um e outro homem não é suficientemente considerável para que qualquer um possa com base nela reclamar qualquer benefício a que outro não possa também aspirar.”1Ele percebeu, assim como outros pensadores o fizeram, que a relação necessariamente existente entre os desejos das pessoas – considerados infinitos – e os bens aptos a satisfazê-los – estes em quantidade determinada no mundo – é um dos principais fundamentos das trocas sociais e assim, portanto, a base tanto das relações jurídicas, como das relações econômicas que se desenrolam na sociedade.

Em outras palavras, a relação “desejos infinitos/bens escassos” é observada como base dos conflitos intersubjetivos, que são transportados para o âmbito do Direito, pois este tem por função “exatamente a de harmonizar as relações sociais intersubjetivas, a fim de ensejar a máxima realização dos valores humanos com o mínimo de sacrifício e desgaste.”2Logo, a resistência oposta contra a pretensão, individual ou coletiva, de satisfazer uma necessidade através de um ou mais bens considerados aptos a tanto, configura um conflito de interesses, marcado pela insatisfação de uma, ou ambas as partes.

E esse conflito, gerado pela frustação do desejo, requer uma solução, porque a “experiência de milênios mostra que a insatisfação é sempre um fator anti-social, independentemente de a pessoa ter ou não ter direito ao bem pretendido. A indefinição de situações das pessoas perante outras, perante

Page 105

os bens pretendidos e perante o próprio direito é sempre motivo de angústia e tensão individual e social.”3Essa função ordenadora dos conflitos, exerceu-a o Direito a partir de estruturas de diversos tipos, organizadas de acordo com o grau de complexidade atingido pelas sociedades que dele se utilizaram. Entretanto, de todas as formas de resolução dos conflitos, algumas se destacaram por sua recorrência ou persistência, sendo classificadas em categorias distintas.

ANTONIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELLEGRINI GRINOVER e CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO organizam as formas de resolução dos conflitos em três categorias: a autotutela, a autocomposição e a heterocomposição.4“Autotutela” significa a imposição de determinada resolução ao conflito, por uma das partes, à outra, independente da anuência desta à solução escolhida. As formas pertencentes a essa categoria valem-se da força física para a sua realização, como no caso da vendetta (aplicação de uma sanção a um infrator por parte do ofendido ou de seus familiares).

A “autocomposição”, por seu turno, diz respeito às formas de solução de conflitos obtidas a partir do consenso entre as partes. Pertencem a esse grupo a desistência, a submissão e a transação (respectivamente, a renúncia à pretensão, a conformação com a resistência oposta, e a realização de concessões mútuas).

Por fim, a “heterocomposição” abrange os mecanismos de solução de conflitos de que participam terceiros, como a defesa de terceiro, a conciliação, a mediação, o processo estatal (judicial) e a arbitragem.

Para JOEL DIAS FIGUEIRA JR., são quatro as categorias em que se organizam as formas de solução dos conflitos: a autotutela, o arbitramento facultativo, o arbitramento obrigatório, e a justiça pública.5A “autotutela”, como já mencionado, é identificada como a solução das questões pela força individual ou do grupo. Já o “arbitramento facultativo” ocorre quando o ofendido opta em comum acordo com a parte contrária por receber uma indenização ou escolher um terceiro (árbitro) para fixá-la.6O “arbitramento obrigatório” existe na medida em que as partes não

Page 106

indiquem árbitro(s) para a solução do conflito, indicando-o(s) a Autoridade Pública para suprir a omissão. Por fim, a “justiça pública” é aquela encampada pela Autoridade Pública, com a execução forçada da sentença, se preciso.

A partir dessas informações, temos que a arbitragem é um mecanismo de pacificação social em que terceiro - o árbitro – intervem necessariamente, por escolha das próprias partes ou por determinação do Estado, a fim de decidir o conflito deduzido.

GUIDO FERNANDO SILVA SOARES definiu a função do árbitro como “aquele que julga uma causa, segundo a lei da sede do tribunal ou segundo a eqüidade (se as partes assim dispuserem e se aquela lei o permitir), num processo instituído pelas partes, segundo um ritual definitivamente caracterizado.”7Como tal, existiu na Antiguidade e persistiu ao longo das Idades Média e Moderna, chegando até a sociedade contemporânea. E é esse desenvolvimento histórico da arbitragem que passamos a tratar, com a ressalva de que cuidaremos primordialmente da arbitragem privada, dada sua relevância para com o tema do trabalho.

7.3. A arbitragem na Antiguidade helênica

Vários são os indícios de que existiria, na Antigüidade clássica, meios para a resolução de conflitos privados e públicos, que não o recurso à autotutela ou à manifestação jurídico-estatal. Exemplo muito citado é um caso de arbitragem entre as cidades-Estados da Babilônia, cerca de 3.000 a. C.

Com efeito, leciona CARLOS ALBERTO CARMONA que a “arbitragem era já conhecida e praticada na antigüidade, tanto para a solução de controvérsias no âmbito do direito interno como também para a solução de controvérsias entre cidades-estado da Babilônia, cerca de 3.000 anos antes de Cristo”.8Na Grécia antiga, a prática da arbitragem estava associada com a mitologia, ou seja, com o sistema de crenças da época, uma vez que mesmos os deuses chegaram a atuar como árbitros em determinadas questões, como, por exemplo, quando Zeus foi eleito juiz entre Atené e Posseidon, a propósito de Egina; o mesmo com Foroné, entre Hera e Posseidon, a propósito de Argólita. Dessarte, a concepção da arbitragem como forma de solução dos conflitos

Page 107

estava presente no ideário dos cidadãos das cidades-Estado gregas.9De fato, a estrutura da religião politeísta helênica influenciou a utilização da arbitragem, assim como a dos contratos, tanto entre particulares, como entre cidades-Estado. Cada cidade-Estado tinha seu deus epônimo, os quais se reuniam hierarquicamente no Monte Olimpo. Contudo os deuses do Olimpo, em conjunto, protegiam todos os helenos, também em conjunto, permitindo assim a construção de certos conceitos como, isopolitéia (concessão dos mesmos direitos civis aos habitantes das cidades-Estados contratantes) e sympolitéia (mesmos direitos civis e políticos aos habitantes cidades-Estados contratantes).

O procedimento arbitral na Grécia antiga, realizado, por exemplo, pelos diaitetai - árbitros públicos para contendas privadas, coexistiu com o processo judicial, até o séc. II a. C., quando deu-se o início da dominação romana.

“A base jurídica da arbitragem entre particulares ou entre cidades gregas [segundo GUIDO FERNANDO SILVA SOARES] era um compromisso, contrato especial, ou uma cláusula compromissória inserta nos contratos ou tratados de comércio, de aliança ou de paz. O direito aplicável era o direito comum dos helenos”.10Contudo a arbitragem não se dava somente mediante compromisso, pois havia também modalidades obrigatórias de arbitragem, lembra Eduardo Lemos.11Escreveu GUIDO FERNANDO SILVA...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT