Hans Kelsen: ruptura ou continuidade entre a Teoria Pura do Direito e a Teoria Geral das Normas/Hans Kelsen: rupture or continuity between Pure Theory of Law and the General Theory of Norms.

AutorMirante, Daniela
  1. Nota Introdutoria

    HANS KELSEN (1881-1973) e comummente classificado como um dos nomes mais influentes da Ciencia Juridica do ultimo seculo, bem como uma das mentes mais produtivas nas mais diversas areas juridicas, tendo deixado, a data da sua morte, cerca de 600 publicacoes, traduzidas para mais de 24 linguas diferentes (4). Para alem da sua producao cientifica directa, KELSEN teve um impacto inegavel na producao de outros, existindo centenas de obras que se dedicam a analise, construcao e desconstrucao das teorias kelsenianas.

    Atendendo ao facto de a actividade academica e cientifica de KELSEN se ter prolongado por seis decadas, surge a questao de saber em que medida e que o seu edificio conceptual foi sendo alvo de ajustes ou alteracoes, uma vez que as teorias, sendo um produto resultante da actividade humana, estao sujeitas ao devir e a propria evolucao do pensamento do seu autor.

    O exercicio a que nos propomos com o presente estudo passa pela analise da evolucao do pensamento de HANS KELSEN balizada entre a publicacao da segunda edicao da sua Teoria Pura do Direito e a edicao da sua obra postuma Teoria Geral das Normas, com vista a responder a uma questao especifica: em que medida e que o ultimo escrito de KELSEN consubstancia uma ruptura com a sua doutrina classica ou, pelo contrario, que ecos de continuidade encontramos na mesma.

    Esta analise, considerando o fim a que destina, bem como as contingencias que, nessa medida, lhe estao associadas, sera delimitada por duas materias especificas: a teoria da Grundnorm e as relacoes entre a logica e o Direito. Deste modo, procuraremos tracar o percurso evolutivo da figura da Grundnorm--pilar fundamental da construcao teorica do autor--e descortinar qual o impacto que a nova formulacao que lhe e dada na Teoria Geral das Normas tem na mesma.

    O nosso segundo topico de reflexao assenta no dominio das relacoes entre a logica e o Direito, com o qual procuraremos explicitar qual o entendimento de Kelsen na materia, nao nos sendo possivel, todavia, uma analise pormenorizada de todo esse campo, pelo que elegemos a problematica da aplicacao dos principios logicos ao Direito e o topico dos conflitos de normas como os subtemas a explorar.

  2. Teoria Geral das Normas--um breve enquadramento

    A obra Teoria Geral das Normas (5) consiste na publicacao de um manuscrito que ficou incompleto aquando da morte de HANS KELSEN, a 19 de Abril de 1973 (6), tendo sido editada somente no ano de 1979, volvidos que estavam, aproximadamente, seis anos sobre o falecimento do seu autor.

    RUDOLF A. METALL, discipulo e amigo de longa data de KELSEN, foi o escolhido para assegurar a conservacao, bem como a organizacao da vasta producao cientifica do autor, tendo sido estabelecido que apos a sua morte, que teve lugar a 30 de Novembro de 1975, tal tarefa teria continuidade pela mao do Instituto Hans Kelsen (7), situado em Viena. O curto espaco temporal em que RUDOLF A. METALL teve acesso ao espolio kelseniano nao lhe permitiu, certamente, desencadear uma organizacao profunda do mesmo, pelo que, necessariamente, apenas efectuou uma analise preliminar de toda a documentacao.

    O percurso que levou a publicacao do manuscrito pode ser caracterizado, deste modo, como sinuoso, repousando a decisao sobre o seu futuro, por expressa vontade da sua mente criadora, nos orgaos do Instituto. Efectivamente, foram estes ultimos que assumiram como missao a tarefa de aferir do interesse, da necessidade e da mais-valia na publicacao da obra, tendo concluido, apos extensa, cuidada e profunda analise, no sentido de avancar com a edicao da mesma.

    De acordo com o prefacio da edicao alema do livro, o manuscrito de KELSEN contava com um elevado grau de completude, na medida em que, muito embora existissem diversas adendas, referencias e reajustamentos manuscritos no texto, o mesmo ja se encontrava dactilografado.

    Existia, no entanto, um ponto essencial que importar frisar no que a versao manuscrita da Teoria Geral das Normas diz respeito, o qual tem que ver com a inexistencia de uma divisao sistematica da obra da autoria do proprio autor. Por conseguinte, recaiu nas maos dos editores, ainda que contando com algumas instrucoes deixadas por KELSEN, a tarefa de pensar e elaborar uma divisao sistematica.

    Ora, KELSEN havia inicialmente fundado a organizacao da obra em 58 seccoes, vindo a adicionar-lhes, no decurso do percurso de escrita, mais algumas. Por outro lado, diz-nos ainda o prefacio da edicao alema, ao longo da obra existia uma lista de topicos, por vezes na forma de cabecalhos, que tinham por funcao descrever os problemas que eram analisados e discutidos em cada ponto.

    Desta feita, e com o proposito de manterem a organizacao da obra o mais fiel possivel aos propositos do seu autor, os editores guiaram o seu trabalho de acordo com as orientacoes existentes, pelo que a divisao em capitulos da obra acabou por corresponde exactamente a organizacao do manuscritos, tendo os titulos da mesma sido extraidos das indicacoes do proprio KELSEN.

    O livro A Teoria Geral das Normas conta assim com um total de sessenta e um capitulos, de dimensao variavel, aos quais acrescem cento e oitenta e cinco notas de rodape, as quais constituem, aproximadamente, metade da obra (8).

    O manuscrito de KELSEN regista, no entanto, uma natureza ambivalente, pois se, por um lado, tem um elevado grau de completude tecnica, por outro, nao e possivel afirmar o mesmo do seu conteudo. Em bom rigor, e necessario antever que a obra tenha algumas debilidades, as quais se devem a todo um conjunto variado de motivos, desde logo pelo facto do autor ter falecido antes mesmo de a ter terminado e aperfeicoado (9).

    Por conseguinte, foi impossivel proceder a um processo de revisao e maturacao tao cuidado como sucedeu com a segunda edicao da Teoria Pura do Direito. Assim, e sem negar a sua profundidade cientifica e o seu caracter intelectualmente estimulante, a obra apresenta-se, necessariamente, fragmentada e a escrita nao surge tao fluente como noutras obras do autor, sendo, porvezes, repetitiva, pelo que requer um especial cuidado na sua leitura e interpretacao.

  3. Teoria Geral das Normas--a ultima fase de Kelsen

    1. Uma tentativa de periodizacao

      A obra postuma de HANS KELSEN assume-se, segundo a critica, como o ponto alto da sua ultima fase, a qual e comummente caracterizada por um cepticismo acentuado (10). Importa, pois, ensaiar um pequeno excurso pelos contributos que visam periodizar a producao cientifica de KELSEN.

      Na verdade, as tentativas de periodizacao da obra kelseniana tem sido levadas a cabo, essencialmente, por dois grandes vultos da teoria do Direito: STANLEY L. PAULSON e CARSTEN HEIDEMANN (11), os quais apresentam poucos pontos de convergencia, mas, sobretudo, diferencas assinalaveis.

      De acordo com STANLEY L. PAULSON, a caminhada juridico-filosofica de KELSEN pode ser repartida em tres fases (12), as quais denomina como (i) Construtivismo Critico (ii) Classica (iii) Ceptica (13).

      Sustenta o autor norte-americano que a primeira fase de KELSEN inclui todo o periodo temporal ate 1912, ano apos o qual tem inicio o periodo de transicao, que apenas vem a terminar no ano de 1922. Nesta fase inicial, KELSEN estaria a desenvolver e a consolidar os seus conceitos-base. STANLEY L. PAULSON defende que, neste periodo, o autor tinha objectivo fundamental o estabelecimento da ciencia juridica como disciplina normativa (14)

      O segundo momento de KELSEN, que da pela designacao de Classico, tem a duracao mais longa de todas as suas fases, considerando que engloba todo o periodo temporal compreendido entre 1922 e 1960. Nao obstante ser concebida como uma fase una, o autor defende que devem ser assinalados dois momentos distintos no interior da mesma; por um lado, entre 1922 e 1935 assistiu-se a um periodo neo-kantiano, por outro lado, entre 1935 e 1960 registou-se aquilo que STANLEY L. PAULSON designa de periodo hibrido.

      A fase Ceptica e o ultimo momento de KELSEN, desenvolvendo-se, por conseguinte, a partir de 1960, no amago da qual e elaborada a Teoria Geral das Normas. Esta e, na perspectiva de STANLEY L. PAULSON (15), a fase que marca a ruptura com as doutrinas de KANT que haviam acompanhado KELSEN ao longo do seu percurso. Por outro lado, segundo este autor, KELSEN defende, neste seu ultimo periodo, uma teoria do Direito voluntarista, ou seja, baseada na vontade.

      Por sua vez, CARSTEN HEIDEMANN (16) conceptualiza a estruturacao da obra de HANS KELSEN em quatro momentos, os quais designa de (i) Construtivista ou fase da obra Hauptprobleme der Staatsrechtslere (ii) Transcendental ou Neo-Kantiana (iii) Realista (iv) Analitico-Linguistica ou Linguistica. A primeira epoca desenvolveu-se, segundo sustenta o autor, entre 1911, ano da tese de habilitacao de KELSEN (17), e 1915. Nesta fase inicial Kelsen estaria a proceder ao desenvolvimento da sua teoria, bem como dos seus conceitos isto e, dedicou-se ao estabelecimento, ou noutras palavras, construcao, da ciencia legal como uma disciplina normativa.

      A fase transcendental iniciou-se, por sua vez, em 1922 (18) e terminou em 1934, tendo sido durante esse periodo que foi publicada a primeira edicao da Teoria Pura do Direito (19). Ambos os autores em analise concordam que esta e uma das fases mais ricas e produtivas de KELSEN, tendo sido nesta epoca que o autor austriaco procura fundar as construcoes centrais da sua teoria em bases kantianas ou neo-kantianas.

      A terceira fase e aquela que se inicia em 1935 e termina somente em 1962. A designacao de realista funda-se no facto de, segundo HEIDEMANN, ter sido, por volta de 1940, que sucedeu a ruptura mais radical na teoria, aquando do abandono por KELSEN da concepcao de norma enquanto identica ao juizo hipotetico da ciencia juridica, substituindo-a por uma concepcao realista (20).

      A quarta e ultima fase, na perspectiva de CARSTEN HEIDEMANN, arranca em 1962 e prolongase ate ao final da vida de KELSEN, tendo o seu apogeu na elaboracao da obra Teoria Geral das Normas.

    2. A...

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