A gestão de programas de atendimento socioeducativo e a voz dos sujeitos de direitos: um olhar antropológico

AutorPaulo Artur Malvasi
Ocupação do AutorAntropólogo, docente e pesquisador do programa de Mestrado Profissional Adolescente em Conflito com a Lei - Universidade Bandeirante de São Paulo (UNIBAN)
Páginas81-114
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A gestão de programas de
atendimento socioeducativo e
a voz dos sujeitos de direitos:
um olhar antropológico
Paulo Artur Malvasi
Antropólogo, docente e pesquisador do programa de Mes-
trado Prossional Adolescente em Conito com a Lei – Universida-
de Bandeirante de São Paulo (UNIBAN); doutor em Saúde Pública
– Universidade de São Paulo (USP); pesquisador do Laboratório
Interdisciplinar de Estudos Sociais em Saúde Pública – FSP/USP.
Introdução
O sistema socioeducativo constitui um campo
político complexo que envolve diversos atores ins-
titucionais. Interfaces entre os programas de aten-
dimento, o poder judiciário, Ministério Público e
Conselhos de Direitos, parcerias entre órgãos gover-
namentais e não-governamentais, busca por ações
descentralizadas que garantam a articulação com
diferentes áreas de políticas públicas no âmbito mu-
nicipal e estadual, em suma, uma imbricada rede de
gestão da política de direitos ao adolescente em conflito com a lei
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interesses, perspectivas e disputas marcam a gestão do sistema. No cerne
de todo este emaranhado institucional, há (idealmente) o adolescente autor
de ato infracional, o “sujeito de direitos” para o qual todo o sistema deve
convergir.
O processo de aplicação e execução de medidas socioeducativas é vi-
vido por adolescentes que não conhecem a teoria da gestão dos programas
de atendimento, mas experimentam na pele os seus percalços. O objetivo
deste artigo é apresentar uma perspectiva antropológica da gestão de pro-
gramas socioeducativos; isto signica, neste caso, chamar a atenção para a
experiência dos próprios adolescentes e problematizar os modelos de ges-
tão e as abordagens que tendem a ignorar ou mascarar as suas perspectivas.
Uma delimitação necessária, já nesta breve introdução, é a da noção de
gestão. Gestar – “formar e sustentar um lho no próprio ventre” (HOUAISS
e VILAR, 2001, p. 1449) remete à ideia de cuidado e proteção, que envolve
tanto uma função pedagógica de formar, cultivar, quanto a de tutelar. A ideia
de gestão que é praticada no sistema socioeducativo se expressa publicamen-
te como gerir – “administrar, dirigir, gerenciar” (HOUAISS e VILAR, 2001,
p. 1447) – mantendo eclipsada (mas latente) sua dimensão tutelar. Segundo
Lima (2002), a tutela no Brasil se caracteriza pelo controle e alocação diferen-
cial e hierarquizada de populações, para as quais se criam estatutos diferen-
ciados e discricionários nos planos jurídico e/ou administrativo.
A ação da administração estatal sobre a infância e a adolescência
pode ser considerada um foco privilegiado para pensar a dimensão tute-
lar do Estado, “na medida em que é exercida sobre os personagens sociais
que mais facilmente podem ser tomados como ‘naturalmente’ tutelados ou
tuteláveis” (VIANNA, 2002, p. 271). No caso daqueles enquadrados como
“infratores” a tutela é muitas vezes tida como uma obrigação do Estado em
defesa da sociedade.
Para delinear o jogo de sombras e luzes na gestão dos programas
socioeducativos, discutir-se-á, primeiramente, as imprecisões do modelo
proposto no Documento Referencial para o Sistema Nacional de Atendi-
mento Socioeducativo (SEDH, 2005)69 no que se refere à participação
69 Em 18 de janeiro de 2012 foi promulgada a Lei n. 12.594 que institui o Sstema Nacional So-
cioeducativo (SINASE), documento que regulamenta o atendimento. Levar-se-á em conta neste
artigo o diálogo com o Documento Norteador do Sistema Nacional Socioeducativo, divulgado
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A gestão de programas de atendimento socioeducativo e a voz ...
dos adolescentes. O SINASE enfatiza a participação, a democracia, a garan-
tia de direitos de um sujeito (o adolescente) autônomo e respeitado em suas
particularidades, mas não ilumina como isto ocorre na forma de gerir po-
liticamente os programas nem contextualiza as diculdades para a efetiva-
ção deste protagonismo do adolescente punido. Na sequência, debater-se-á
o contexto sociocultural que circunscreve o “problema social” do “adoles-
cente em conito com a lei”, iluminando tanto as imagens públicas constru-
ídas em torno do adolescente infrator quanto os desaos para a aplicação
do Estatuto da Criança e do Adolescente nos vinte anos de sua existência.
Na parte central do artigo, apresentar-se-ão dados da pesquisa de
campo que realizo junto a adolescentes que estão em cumprimento de me-
didas em meio aberto após experiência de privação de liberdade70. A partir
de um inventário das trajetórias de adolescentes em Liberdade Assistida
e Prestação de Serviços à Comunidade, a pesquisa tem revelado como os
adolescentes reconhecem e signicam o processo de aplicação e execução
de suas medidas. Neste artigo, mapeio os itinerários descritos por duas
adolescentes com trajetórias e experiências muito parecidas, mas com apli-
cação de medidas desiguais. Da abordagem policial ao atendimento socio-
educativo em meio aberto, da internação (provisória ou não) ao relaciona-
mento com o juiz e o promotor, a passagem pelo sistema socioeducativo
será abordada de acordo com as ênfases e visões dadas pelas adolescentes
em suas falas.
As proposições e as abordagens sobre gestão de programas presente
no SINASE é a “ideal”, a gestão se dá através de processos participativos,
dialogados, em que os diversos atores da “comunidade socioeducativa
(inclusive o adolescente e seus familiares) tomam parte. Entretanto, a
gestão dos programas não é uma ilha de exceção desligada do contexto
político e cultural em que ela se desenrola. Os adolescentes “em conito
com a lei” situam-se em fronteiras sociais que os colocam como a “vida
em 2006, pois foi o documento de referência do atendimento socioeducativo no momento em
que os dados etnográcos foram colhidos (no ano de 2009).
70 “Práticas cotidianas e representações sobre a vida coletiva entre adolescentes em conito com
a lei”, p esquisa realizada junto à linha de pesquisa “Adolescente em Conito com a Lei: violência,
sociedade e criminalidade”, Mestrado Prossional Adolescente em Conito com a Lei/Universi-
dade Bandeirante de São Paulo, de setembro de 2008 a outubro de 2010.

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