Os fundamentos constitucionais do direito à diversidade

AutorJosé Emílio Medauar Ommati
Páginas7-51
OS FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS DO
DIREITO À DIVERSIDADE
José Emílio Medauar Ommati1
O presente volume da “Coleção Direito e Diversidade” pretende
apresentar os fundamentos constitucionais presentes na Carta de
1988 a fundamentar e justificar a existência do direito à diversidade.
Aqui, por uma questão de recorte metodológico, não se fará uma
reconstrução histórica do surgimento desse direito, mas apenas será
apresentada uma série de textos normativos constitucionais e sua
correta compreensão de modo a fundamentar e justificar a existência
do direito à diversidade. Será demonstrado que, se tais textos
normativos presentes na Constituição de 1988 forem adequadamente
compreendidos, o direito à diversidade surge como uma decorrência
necessária da correta compreensão desses fundamentos
constitucionais, de modo a formar uma teia de valores integrados.2
Nesse sentido, todo o trabalho será desenvolvido a partir de uma
filosofia para ouriços, como denominou Ronald Dworkin em sua
última obra antes de sua morte (DWORKIN, 2014). Essa ideia foi
retomada pelo autor norte-americano a partir de um verso de
Arquíloco, antigo poeta grego, que outro filósofo político importante
de nome Isaiah Berlin popularizou entre nós. Citando Ronald
Dworkin:
A raposa sabe muitas coisas; o porco-espinho sabe uma só, mas muito importante.
O valor é uma coisa muito importante. As verdades do bem viver, do ser bom e de
tudo o que há de maravilhoso não apenas são coerentes ente si como também se
reforçam mutuamente: o que pensamos sobre cada uma dessas coisas tem de
resistir, no fim, a qualquer argumento referente às demais que nos pareça
convincente. Vou tentar ilustrar pelo menos a unidade dos valores éticos e morais:
apresento uma teoria do bem viver e do que precisamos fazer para as outras
pessoas e do que não podemos fazer com elas se quisermos viver bem.
Essa ideia – a de que os valores éticos e morais dependem uns dos outros – é um
credo; sugere uma maneira de viver. Mas também é uma teoria filosófica ampla e
complexa (DWORKIN, 2014, p. 3).
No espaço desse texto, não se terá possibilidade de apresentar
toda essa teoria filosófica ampla e complexa. Para maiores detalhes,
a indicação de outras obras, como Omai (2014a, 2015b e 2015a,
nas quais há detalhes sobre a filosofia, ampla e complexa, do ouriço),
e a própria obra de Ronald Dworkin (2014) que trata da matéria. E
aqui, uma breve explicação sobre o título da obra de Dworkin e à
própria citação dessa obra aqui feita. Afirmou-se, linhas atrás, que a
pretensão é desenvolver o tema do Direito à Diversidade a partir de
uma filosofia para ouriços. Contudo, na citação da obra de Dworkin
tal como feita a tradução para o Brasil, aparece a expressão porco-
espinho, em vez de ouriço. Afinal, faz diferença a mudança do nome
do animal?
Acredita-se que sim. Embora no Brasil as pessoas confundam o
ouriço com o porco-espinho, na verdade, biologicamente, são
animais distintos e, para o que interessa ao desenvolvimento deste
texto, a diferença fundamental entre os dois animais se encontra nas
suas respectivas formas de defesa. O porco--espinho se defende de
seus predadores soltando os espinhos do corpo; já o ouriço, usa todo
o corpo para se defender, que os espinhos de seu corpo não se
desgarram dele. Assim, quando na versão original, Dworkin intitula
sua obra Justice for hedgehogs, ou seja, Justiça para ouriços, quer
demonstrar que uma filosofia para ouriços significa que pretende
criar uma justificação filosófica para a integração de todos os valores.
Em outras palavras, tal como o ouriço que utiliza todo o seu corpo
para sua defesa, um filósofo--ouriço utiliza toda uma teia de valores
que se integram e se apoiam mutuamente para demonstrar a
verdade e independência do valor. Daí porque tal teoria se configura
como um credo e uma maneira de viver também.
Para o sucesso do trabalho, será o presente texto em três partes.
Na primeira, será mostrado como o valor da diversidade enquanto
direito fundamental se liga à dignidade humana, estabelecida na
Constituição de 1988 como um dos fundamentos da República
Federativa do Brasil. Em um segundo momento, pretende-se
demonstrar que o direito fundamental à diversidade também se
integra com a própria forma democrática, unindo-se, portanto, à
própria ideia de Estado Democrático de Direito também assumida
por todos enquanto forma de vida política. Por fim, na parte final do
presente trabalho, pretende-se demonstrar que o direito
fundamental à diversidade se integra aos direitos de igualdade e
liberdade.
1. O direito à diversidade e a dignidade humana
Para que se possa demonstrar de que modo a diversidade
enquanto valor e enquanto direito fundamental se liga ao valor da
dignidade humana, é preciso reconstruir de uma forma consistente a
própria ideia de dignidade humana. Isso porque, como afirmado em
outro trabalho (OMATTI, 2015b), no Brasil a ideia de dignidade
humana tem sido inflacionada a tal ponto que, tendo servido para
justificar decisões as mais diversas, acaba por ser esvaziada, que
não se sabe mais o que de fato a dignidade humana pode significar.
Chegou-se a uma situação tão disparatada e absurda no Brasil que o
Supremo Tribunal Federal já defendeu a inconstitucionalidade de
uma lei do Rio de Janeiro que regulamentava a briga de galo com
base na violação à dignidade da pessoa humana! Afirmou o Ministro
César Peluso, à época Presidente do STF, nessa decisão, em seu voto,
assim:
Ministro Gilmar Mendes, se Vossa Excelência me permite intervir não,
evidentemente, para servir de fundamento, porque não seria o caso, mas para
pensar –, acho que a regulamentação não está apenas proibida pelo artigo 225; acho
que a lei ofende também a dignidade da pessoa humana, porque, na verdade,
implica, de certo modo, um estímulo às pulsões mais primitivas e irracionais do ser
humano. Noutras palavras, a proibição também deita raiz nas proibições de todas
as práticas que promovem, estimulam e incentivam ações e reações que diminuem
o ser humano como tal e ofendem, portanto, a proteção constitucional à dignidade
da pessoa humana, que é fundamento da República.
Embora o Ministro Peluso tenha dito que esse argumento que
vinculava a proibição da briga de galo com base na violação à
dignidade da pessoa humana não pudesse ser usado como
fundamento, constituindo-se apenas como um obter dictum, ou seja,
um argumento lateral ou não fundamental, tal argumento lateral ou
subsidiário contou com a adesão tanto dos Ministros Ayres Brio
como do atual Presidente da Corte, Ricardo Lewandowski.
Então, com Dworkin, pode-se afirmar:
A ideia de dignidade foi manchada pelo mau uso e pelo uso excessivo. A palavra
aparece regularmente nas convenções de direitos humanos, nas constituições
políticas e, de modo ainda mais indiscriminado, nos manifestos políticos. É usada
de modo quase irrefletido, quer para proporcionar um pseudoargumento, quer
simplesmente para acrescentar uma carga emocional ao discurso: as pessoas que

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