Fundamentos metodológicos e epistemológicos para a ação coletiva (ativa e passiva)

AutorGustavo Viegas Marcondes
Ocupação do AutorBacharel em Direito pela Universidade Estadual Paulista (UNESP)
Páginas47-63

Sob a perspectiva técnica, o Processo Civil coletivo configura menos uma ramificação autônoma da ciência jurídica e mais uma modalidade, ou uma espécie, do Direito Processual Civil. Com efeito, o objeto, os princípios informadores, e em certa medida a metodologia e os demais traços que norteiam o Processo Civil coletivo são comuns aos mesmos elementos que caracterizam o Processo Civil clássico. São espécies do mesmo ramo da ciência jurídica, muito embora guardem, cada qual, elementos próprios e peculiaridades que os distinguem um do outro1.

Ainda sob a perspectiva técnica, cumpre destacar que o Processo Coletivo, na realidade, não representa uma evolução, ou uma quarta fase metodológica do Processo Civil clássico. Não se trata propriamente da superação da fase instrumentalista, tampouco de uma nova onda renovatória de acesso à Justiça. O Processo Coletivo desenvolve-se paralelamente ao Processo Civil clássico, de sorte que ambas as modalidades coexistem e deverão coexistir enquanto houver conflitos de natureza individual e também de natureza coletiva a serem dirimidos pela intervenção do Estado.

Sob a perspectiva histórica propriamente dita, o Processo Coletivo encontra antecedentes muito anteriores ao próprio desenvolvimento científico do Direito Processual Civil clássico, que remonta ao final do século XIX, pela obra de Oscar von Bülow2.

Desde meados da era medieval há relatos e indicações históricas seguras da existência de pleitos judiciais deduzidos sob a perspectiva coletiva, ainda que sem a base científica que só viria a ser desenvolvida séculos mais tarde3. Dessa forma, também não se pode dizer que o Direito Processual Civil clássico, por estar cientificamente estruturado, anteceda cronologicamente o processo coletivo, embora este, atualmente, se valha, em grande medida, de todo o arcabouço técnico construído e aperfeiçoado naquele.

A propósito, Diogo Campos Medina Maia aponta percucientemente que o surgimento das primeiras ações coletivas no direito europeu medieval, na realidade, remonta ao século XII, época marcada pelo sincretismo processual, na qual não havia, ainda, qualquer investigação acerca da efetiva representatividade das partes ou mesmo do conceito e alcance da ideia de grupo:

[...] impende ressaltar que o direito processual também não era tido como ciência autônoma, conforme conhecemos hoje, mas mera sucessão de atos procedimentais, confundindo-se mesmo com o direito material. A aparição das primeiras ações coletivas é datada do século XII, época da escola dos glosadores de Bolonha, quando não havia teorias sobre pressupostos processuais, condições da ação, etc., teorias estas que só foram estabelecidas a partir de meados do século XIX, com o desenvolvimento do direito processual como ciência. Vivia-se em um período em que vigorava o sincretismo processual. Por esta razão, afirma Stephen Yeazell, em conhecida obra sobre a evolução das ações coletivas medievais, que a esta época não se discutia sobre a representatividade das partes ou sobre o conceito de grupo, mas apenas sobre o mérito do litígio.4

Uma considerável e absolutamente respeitável parcela de insignes processualistas costuma identificar a natureza individual ou coletiva da tutela jurisdicional unicamente a partir do interesse (ou direito) objeto da demanda. Segundo esse posicionamento, será coletiva a ação que tenha por objeto qualquer pretensão de natureza difusa, coletiva em sentido estrito ou mesmo individual homogênea5.

Essa conceituação parece levar menos em consideração a estrutura fundamental do processo do que os objetivos perseguidos numa determinada demanda, ou seja, o tipo de tutela jurisdicional, se individual ou coletiva, para esses estudiosos do processo, não decorre do modo pelo qual efetivamente se presta a jurisdição, mas sim do próprio litígio ou do interesse jurídico em disputa. Em suma, decorre do objeto do processo.

Nesse sentido, Camilo Zufelato esclarece que, de fato, o objeto litigioso é responsável pela determinação da natureza individual ou coletiva do processo, destacando que outros elementos identificadores, tais como o regime de determinação da coisa julgada e a própria legitimidade ativa são mais efeitos do que causa para o fim dessa ordem de classificação.

Parte da doutrina consigna que para o reconhecimento dos pontos essenciais de uma ação coletiva, em contraposição às ações individuais, a atenção deverá estar voltada para o objeto do processo, a legitimação para agir e o regime da coisa julgada, pontos esses que as distinguem das ações relativas ao processo civil tradicional de cunho individualista. A partir desses dados, poder-se-ia caracterizar a ação coletiva como sendo “a ação proposta por um legitimado autônomo (legitimidade), em defesa de um direito coletivamente considerado (objeto), cuja imutabilidade do comando da sentença atingirá uma comunidade ou coletividade (coisa julgada).

A ideia de ação coletiva, contudo, tem sua caracterização determinada essencialmente pelo objeto do processo, ou seja, pela natureza dos direitos tutelados. Ainda que outros elementos sejam relevantes para distingui-las da ação individual, como a legitimidade ativa e a coisa julgada, esses elementos decorrem das características do objeto litigioso do processo, ou seja, são consectários da natureza transindividual desses direitos.6

Sérgio Seiji Shimura, por sua vez, embora anote que o denominador comum presente em todas as chamadas ações coletivas seja, de fato, os “extremos do procedimento”, ou seja, as regras relativas à determinação da legitimidade para a causa7 e dos efeitos – objetivos e, principalmente, subjetivos – da coisa julgada, considera que a natureza individual ou coletiva de determinada ação decorre da natureza do interesse jurídico tutelado:

Para nós, a expressão “ação coletiva” (não individual) constitui-se em gênero que alberga todas as ações que tenham por objeto a tutela jurisdicional coletiva (direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos), diferenciando-se da “ação individual”, que tem por finalidade veicular pretensão puramente subjetiva e particularizada.

[...] o ponto comum reside nos extremos do procedimento: legitimidade ativa concorrente e disjuntiva e a coisa julgada erga omnes ou ultra partes.8

Evidentemente, o objeto da demanda, ou seja, o pedido efetivamente formulado no bojo da ação, assumirá sempre imprescindível relevância para se estabelecer qual a natureza do pleito, o que se dá também no âmbito do Processo Civil individual. Contudo, parece-nos inescapável a constatação de que íntima relação que há entre o objeto do processo e o pedido formulado, tornaria o Processo Coletivo uma modalidade de processo exclusivo do autor coletivo.

Veja-se, por exemplo, que uma determinada demanda que veicule um pleito de natureza difusa será tão coletiva quanto uma outra que veicule pretensão de direito coletivo stricto sensu, ou uma pretensão de natureza individual homogênea, nada obstante os objetos de cada uma sejam essencialmente diferentes uns dos outros.

Por outro lado, ao se eleger o objeto do processo como o critério efetivamente definidor da natureza individual ou coletiva da demanda, parece haver uma inversão de premissas, na medida em que o item a ser definido, ou seja, a ação, deverá ser preexistente ao critério responsável pela definição, ou seja, o pedido efetivamente deduzido em juízo. Daí porque nos alinhamos à parcela de processualistas que deixa de identificar a natureza da tutela jurisdicional – se individual ou coletiva – com o objeto do processo, para identifica-la a partir do modo de conhecimento do litígio e entrega da prestação jurisdicional.

A propósito, Rodolfo de Camargo Mancuso aborda tal questão, sem necessariamente fazer uma correlação entre objeto da tutela jurisdicional e pedido formulado na ação. Esclarece o autor que a dimensão coletiva alcançada pelo resultado da ação é o que a caracteriza como uma ação coletiva, e não a mera aglutinação de titulares do interesse em disputa num dos polos do processo.

Impende ter presente, nesse passo, que uma ação recebe a qualificação de “coletiva” quando através dela se pretende alcançar uma dimensão coletiva, e não pela mera circunstância de haver um cúmulo subjetivo em seu polo ativo ou passivo; caso contrário, teríamos que chamar de “coletiva” toda ação civil onde se registrasse um litisconsórcio integrado por um número importante de pessoas, como se dá no chamado “multitudinário”.

Na verdade, uma ação é coletiva quando algum nível do universo coletivo será atingido no momento em que transitar em julgado a decisão que a acolhe, espraiando assim seus efeitos, seja na notável dimensão dos interesses difusos, ou ao interior de certos corpos intercalares onde se aglutinam interesses coletivos, ou ainda no âmbito de certos grupos ocasionalmente constituídos em função de uma origem comum, como se dá com os chamados “individuais homogêneos”.9

É certo que uma das classificações possíveis para o tipo de tutela jurisdicional leva em consideração unicamente a natureza do litígio, ou seja, a natureza do Direito Material subjacente ao conflito de interesses verificado entre as partes. Assim, o processo do trabalho veiculará uma demanda de natureza trabalhista, o Processo Penal veiculará uma demanda de cunho penal, o Processo Eleitoral veiculará uma demanda dessa natureza e o Processo Civil, por sua vez, veiculará uma demanda de natureza cível. Por essa ordem de pensamento, o Processo Civil coletivo veiculará uma demanda de natureza coletiva.

Entretanto, a quase totalidade dos processualistas que procuram identificar a natureza da tutela jurisdicional – se individual ou coletiva – exclusivamente a partir da qualidade do interesse jurídico em disputa, também se mostra praticamente uníssona ao pontuar que um único conflito, ou uma única situação de fato, poderá ensejar pleitos de natureza difusa, coletiva em sentido estrito e ainda individual homogênea, a depender do conjunto do pedido e da causa de...

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