A Fundamentação dos Direitos Humanos

AutorLuiz Fernando Coelho
Páginas265-294

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33. As doutrinas metaéticas

As soluções preconizadas para as antinomias do direito humanitário procuram suporte em opiniões divergentes sobre a fundamentação dos direitos humanos. É ponto de encontro entre a filosofia do direito e o direito constitucional, eis que ambos remetem a critérios metaéticos para responder à indagação: por que alguns direitos devem constar da constituição e outros não? Existe alguma hierarquia entre os direitos humanos, constitucionalizados ou não, e por que alguns são tidos como cláusulas pétreas? Em resposta a esse questionamento, almeja-se uma solução depurada de misticismos e crenças religiosas ou ideológicas, um embasamento racional.

O problema está vinculado às relações entre moral e direito, moral e justiça, justiça e direitos humanos, o público e o privado, interesse individual e interesse social, entre outras. Mas há uma questão subjacente, a das relações entre política e direito, quando se entende que as ações concretas para a efetivação dos direitos humanos dependem de opções ideológicas. Neste caso, a necessidade de racionalização das alternativas assume uma postura cientificista que busca subsídios para a ação política.

E aí surge outra antinomia que repercute no campo teórico. Se os direitos humanos são absolutos e universais, é esta a razão que legitima sua adoção pelos ordenamentos jurídicos. Entretanto, na medida em que esse caráter é rejeitado como não científico, qual a separação possível en-

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tre a percepção de direitos humanos como imperativo moral e como categoria legal? Entre os direitos do homem e os do cidadão? Entre os direitos humanos como objeto de políticas legislativas e como elemento da ordem legal positiva? Como superar o imenso fosso que separa a definição doutrinária dos direitos humanos e sua existência em condições de efetividade por parte dos cidadãos? Entre a igualdade formal das pessoas com relação aos seus direitos básicos e as consideráveis desigualdades sociais e econômicas? Entre a compreensão dos direitos humanos impregnada da tradição cristã dominante no Ocidente e o particularismo de diferentes crenças em várias nações e culturas?

As bases filosóficas para solucionar tais ponderações têm sido cultivadas sobretudo em direito constitucional. É que a ênfase na necessidade de positivar certas prerrogativas básicas, outrora calcadas em sua projeção jusnaturalista ou ético-religiosa, ocorreu ao sabor das lutas liberais que convergiram para o constitucionalismo, a maior conquista das revoluções burguesas na Europa iluminista. Articulada com a filosofia positi-vista, a teoria da constituição desenvolveu a noção de direitos fundamentais, os elencados nas cartas magnas dos Estados como tais, o que acabou por provocar certa confusão semântica a respeito da diferenciação entre direitos humanos e fundamentais.

Como já estudado no capítulo inicial, a tendência que acabou prevalecendo foi a de atribuir aos direitos fundamentais a característica de positividade constitucional, deixando-se para a filosofia do direito a caracterização dos direitos humanos, não necessariamente circunscritos aos textos, mas, na medida do possível, identificados com os direitos fundamentais.

Tendo em vista essa distinção, o problema da fundamentação dos direitos humanos seguiu o caminho da busca dos alicerces da constituição, o que engendrou posturas que recebem as mais diversas denominações. Assim, há textualistas, substancialistas e procedimentalistas, os quais enfatizam, respectivamente, o texto constitucional, o conteúdo material de suas normas e os procedimentos inerentes à tarefa de argumentar com fulcro na constituição. Além dessas, outras expressões denotam a profusão de doutrinas, o que aumenta a complexidade do problema e alimenta a especulação acadêmica. Existem, por exemplo, opiniões que se intitu-

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lam sensualismo e construtivismo, e também intuicionismo, pragmatismo e utilitarismo, significantes exaustivamente empregados, mas com significados sempre renovados. Todas dedicam-se à investigação de conteúdos eticamente expressivos que possam conduzir a uma definição concreta de direitos fundamentais, bem como servir de critério para o discernimento de quais e por que devem constar da carta magna. A resposta a esta última questão introduz a metaética dos direitos humanos.

Uma opinião generalizada situa o problema entre as duas orientações tradicionais, vistas como em oposição: juspositivismo e jusnaturalismo. Essa dicotomia pressupõe uma noção de direito natural como ordem normativa superior ao direito positivo, funcionando como instância crítica para sua avaliação ética. Em Kant, os princípios jusnaturalistas são decorrentes da recta ratio (razão correta), que o direito positivo traduz em normas coativas. Em Hobbes, os mandamentos do direito estatal são indispensáveis para a convivência social, e, uma vez postos pelo soberano, se autorregulam e autoalimentam, sendo o direito natural o fundamento de sua legitimidade.

Trata-se de um reducionismo que revela a tradição ocidental tendente a certo nível de abstração e apego a universalismos conceituais e que não esgota as possibilidades teóricas de uma classificação de doutrinas. Principalmente, porque a teoria do direito natural remete ao passado, a uma natureza-essência apriorística que condicionaria toda a evolução social, restringindo a razão a um trabalho de descoberta. E essa descrição do direito natural, que satisfez a necessidade de melhor entendimento dos ordenamentos positivos, já não se coaduna com a exigência de concreção da ética atual, que tratou de superar o apriorismo doutrinário que se contentava com as concepções expressas em fórmulas vazias de conteúdo.

Assim, é preferível ampliar essa tipologia para dar conta de orientações que não poderiam subsumir-se, ainda que parcialmente, àquelas tradicionais, pois oferecem aspectos que poderiam enquadrá-las ora num, ora noutro modelo.

A eleição do bem como meta a atingir constitui critério de classificação das reflexões morais em dois grupos: doutrinas teleológicas e deontológicas.

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As teleológicas definem o bem como o que convém buscar, independente de qualquer outra consideração, e o justo como a maximização do bem. Elas se subdividem em perfeccionistas e utilitaristas. As teleológico-perfeccionistas objetivam o alcance de um bem supremo, tal como em algumas utopias, desde Agostinho de Hipona. Assim, o bem é definido de acordo com a qualidade das obras produzidas por uma cultura. Já as teleológico-utilitaristas almejam o bem possível dentro das circunstâncias históricas hic et nunc (aqui e agora). Nessa definição, o justo é considerado a maximização da soma das satisfações dos desejos dos indivíduos.

As deontológicas afastam-se da ideia do bem ligado à justiça, pois não o especificam independentemente do justo, ou não definem a justiça como a maximização do bem. São conceitos liberais235 que não consideram outra justiça a não ser a que resulta da aplicação de regras de conduta aceitas como justas, na apreciação de Hume, e também as apreciações do tipo kantiano, como em Rawls, que não utilizam nenhum princípio de maximização do bem. Ao contrário, supõem que a idealização do justo limita as pretensões legítimas. Por exemplo, não se deve levar em conta a satisfação do senhor em dominar o escravo se os princípios de justiça excluírem esse tipo de relação social.

Contudo, uma colocação deontológica não é indiferente às consequências da escolha de uma regra, mas nada obriga a pensar que a situação resultante da escolha de regras justas corresponderá à maximização do bem, seja qual for o seu conteúdo. É nesse sentido que Rawls fala do primado do justo sobre o bem.

As doutrinas deontológicas subdividem-se em intuicionistas e construtivistas. As intuicionistas privilegiam a percepção do bem, tanto no plano individual quanto no social, o bem comum, e inadmitem a possibilidade de hierarquizar as diferentes facetas do justo. Arguem que a complexidade das questões morais desafia qualquer tentativa de dar-lhes uma imagem sistemática que possibilite certo grau de acerto das decisões. As construtivistas tomam por referencial as ações humanas na construção do bem comum e admitem a possibilidade de hierarquizar as diferentes concepções do justo, tendo em vista o critério da maior ou menor utilidade.

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Confundem-se, portanto, com o utilitarismo, mas atribuem maior importância aos princípios, considerados de validade universal, enquanto as posturas utilitaristas são consequencialistas, isto é, apegam-se às consequências do agir humano como critério metaético.

Outra divisão recorrente leva em conta dois tipos, doutrinas universalistas e historicistas. Uma se empenha em encontrar um critério que possa globalizar os direitos humanos independentemente da história, a outra preconiza que esses direitos não são em si mesmos universais, mas fruto de uma evolução histórica.

Finalmente, deve-se a John Rawls uma classificação bipartite que considera a busca de princípios metaéticos tidos por evidentes, em contraposição a uma tendência naturalista, que consiste em introduzir definições de conceitos morais em termos de conceitos não morais. Este segundo tipo exige uma demonstração de que as declarações assim equiparadas com os juízos morais defendidos são as verdadeiras.236A maior parte das teorias que apontam para uma solução que possa subsidiar a ação política para a implementação e garantia dos direitos humanos espelha uma oposição entre duas orientações, uma de caráter apriorístico e outra de fundo empírico, que se pode dizer, por analogia, aposteriorístico; a priori e a posteriori têm por referencial a experiência histórica e oferecem, portanto, similitude com as universalistas e historicistas.

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